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A casa/habitat é um “objecto de estudo” interdisciplinar

Cap.I Teorias estruturantes e Conceitos operativos

I.2. A casa/habitat é um “objecto de estudo” interdisciplinar

A casa/habitat, mais do que um objecto, produto construído ou mercadoria comerciável, é um sistema complexo de relações que tem por centro o sujeito social, e onde ele se constrói identitariamente, satisfazendo as suas necessidades básicas de higiene, aprovisionamento, alimentação e repouso, mas também «privacidade, intimidade, o recolhimento pessoal, a segurança, a realização pessoal, a socialização», que são «aspectos que qualificam as características fundamentais do habitar» (Reis

construção social por intermédio do programa de habitações populares/novas cidades foi essencial na dispersão das tendências interétnicas quotidianas.» (CASTELS, 2003b: 169 e 365)

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Cabrita, 1995: 129).21 Como se infere, esta relação estabelecida entre o actor social e o seu habitat extravasa em muito o nível da objectividade e da racionalidade, inscrevendo-se sem dúvida num campo de estratégias simbólico-afectivas, escreve Isabel Guerra: O alojamento na medida em que permite uma apropriação

personalizada do espaço familiar concede-lhe um estatuto de posse territorial a partir do qual se organiza toda a percepção do espaço (1987: 187). E comentando o

arquétipo residencial da moradia unifamiliar conclui: «a “ideologia” da vivenda advém, possivelmente, em grande parte, da necessidade de territorializar relações afectivas, a partir das quais seja possível reequacionar, de outra forma e com mais segurança, o espaço geográfico e social exterior.» (ibidem)

Estas dimensões afectivas associadas à personalização e apropriação simbólica do habitat podem fazer as investigações sobre este tema flectirem para outras áreas das Ciências Sociais, uma vez que se admite que a escolha (e em certos casos a construção) do habitat familiar seja do domínio do “imaginário”22 pode até conduzir a processos de desrealização em que a Psicologia do Espaço (ex.: Jacqueline Palmade) teria mais a dizer que a Sociologia ou Antropologia Urbanas. Pensando em todas estas complexidades que giram à volta do habitat e dos actores sociais que os usam e com eles se identificam (ou não), Maria João Freitas propôs um recentramento da reflexão

sobre o habitar que passasse de uma abordagem de objectos para uma abordagem de processos relacionais generativos, e isto implicaria uma ruptura com as perspectivas de

interpretação e análise do habitar centradas em dicotomias23 e a construção de um modelo analítico susceptível de atentar às proximidades e posicionamentos relativos

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O autor considera estas as características fundamentais, mas a páginas 12 a 17 elenca dezenas de outras funções características ao “habitar” (que seria fastidioso enumerar aqui), dividindo-as em níveis de “alojamento” e “vizinhança”. A dicotomia pretende realçar «uma interinfluência que se resume numa inserção da vida social na habitação, devidamente filtrada, e uma inserção da vida individual (e familiar) na vida social, devidamente codificada pelas normas sociais.» (ibidem: 17)

22 Teresa Costa PINTO, a propósito da estratégia residencial do clandestino, afirma: «Na definição e estruturação deste projecto é visível o papel de comando do imaginário e de um conjunto de aspirações acumuladas ao longo de uma trajectória de vida convertidas numa praxis quotidiana. Estas mesmas aspirações impõem racionalidades, por vezes difíceis de entender, mas capazes de ocupar um papel importante não só no contorno de um conjunto de constrangimentos como na definição de “destinos sociais” para um “virtual realizável” que impõe ao princípio da realidade o princípio do desejo.» (1998: 35)

23 Por ex.: oposições [entre grupos sociais] e distâncias sociais dos espaços [proximidade física vs distância social], ou entre as dimensões da oferta e da procura de habitação, ou mais genericamente, a oposição entre o Estado e os cidadãos), modelos binários de interpretação que entendemos não corresponder ao objecto em estudo.

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que se encontram em jogo nas coabitações relacionais (Freitas, 2001: 422). Desloca,

portanto, no seguimento de toda a Ciência Social do Século XX, a análise social dos objectos para os processos, para as estratégias dos actores sociais nas suas práticas quotidianas – a casa não é tanto o objecto a ser apropriado, mas o processo de construção de uma identidade social que se joga com os outros.

Uma questão a ser considerada nestes processos relacionais é a diluição das relações directas (e objectivas) entre o actor social e o habitat construído no seu uso e (in)satisfação residencial nos outros processos sociais envolventes (e indirectos) a serem considerados. Outros investigadores reflectiram sobre este problema, considerando que em certas pesquisas «a importância do modelo do habitat parece secundarizada face a uma situação familiar e habitacional objectiva, que passa pelas deficientes condições de alojamento, pelo crescimento do agregado familiar e por uma capacidade mínima de poupança.» (Pinto, 1998: 33) Por outras palavras, para alguns autores, o habitat é de secundária importância nas estratégias dos actores sociais – assume uma objectificação reflectida do estatuto social do grupo doméstico que o habita, sobretudo em momentos de crise económico-social. Já antes Isabel Guerra tinha abordado este problema quando evidenciou o trabalho de Jean Remy (1976, 1981): «a sua preocupação central é a de detectar, ao nível das interacções locais, os efeitos próprios do elemento espaço e os efeitos que advêm de outras esferas do social.» A estes efeitos próprios chama “autónomos” e define-os como: «efeitos próprios que não são dedutíveis de outros elementos, embora se encontrem relacionados com eles. Advêm de o espaço se constituir, em termos de vida quotidiana, como uma “condição material de existência”.» (1987: 186) São estes efeitos directos – autónomos – do habitat na inter-relação com os actores sociais que são o nosso “objecto-processo” em estudo.

É evidente que da relação estabelecida entre o actor social e os “efeitos autónomos” do seu habitat decorre uma apropriação simbólica e um fenómeno de “personalização” do território, de que o usuário tirará partido para se projectar nele e dele para os outros. Atribuir ao habitat primeiro um valor de uso (um significado – quem sou e como me represento) e depois um valor de troca (quem quero que os outros imaginem que sou) para negociar com os outros as posições relativas do seu

estatuto social é o eixo central do habitar. É uma perspectiva em que o habitat se torna o processo de comunicação24 primordial consigo próprio, com os outros que o envolvem, mais ou menos próximos, e com toda a sociedade. Este processo não oblitera as condições materiais do habitat nem a procura objectiva de conforto, complementa-a.

Rosales regista estas introduções recentes no estudo do espaço doméstico ao considerar que a casa não depende unicamente do registo estratégico da “família”, mas está em permanente diálogo com outros níveis da vida social como as sociabilidades e as suas redes, normativas ou não. As modas, por exemplo, influenciam a vida da casa e dos seus habitantes segundo os grupos de pertença em que estão inscritos. Assim, reconhece-se «a complexidade do papel desempenhado pela casa, enquanto elemento de mediação entre a unidade doméstica e o meio social em que esta se encontra inserida.» (2008: 102) No caso de famílias imigrantes a opinião dos vizinhos é fundamental (ibidem: 103). Miller (1988, 2001) confirma esta tese. Também o aspecto da família enquanto unidade estável e “homogénea” é contestado, os seus poderes internos são distribuídos de forma muito diferenciada existindo “posicionamentos profundamente desiguais”, deste modo a “família” está em permanente negociação (Rosales, 2008: 104-105): «a casa é um domínio de contestação, onde diferentes interesses se digladiam para definir os seus espaços próprios, através dos quais se procuram localizar e cultivar as identidades pessoais.»

Sobre os “efeitos autónomos”, as condições materiais e objectivas da casa, Rosales atribui-lhes qualidades activas. A casa é também agente, age socialmente sobre os seus ocupantes, não tem uma atitude passiva de “objecto”:

«as casas, enquanto artefactos, possuem um conjunto da características próprias muito especiais, que advêm de uma capacidade orgânica para reunir, dividir, se reestruturar e reorganizar, que lhes permite objectificar os relacionamentos existentes nos processos históricos em que os membros das unidades domésticas se encontram envolvidos.» (ibidem: 106-107)

24 O habitat «para além do seu valor de uso – quer como cenários de vivência quotidiana aos seus residentes ou objecto motivador de intervenções concertadas – verificou-se, ainda, que as dimensões espaciais participavam activamente na relação comunicacional (…) como sistemas de códigos e mesmo como “falas” susceptíveis de interferirem nessa relação.» (M. J. FREITAS, 2001: 437:)

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E continua: «as casas possuem a capacidade de incorporar os princípios que presidiram à sua própria estruturação», as casas têm a sua “história” (ibidem), e esta estrutura reage com a sua materialidade a cada nova mudança, como empiricamente se pode verificar sempre que se quer mudar a mobília, por exemplo.

A casa na sua materialidade actua sobre os habitantes e estes desenvolvem processos de “domesticação” do lar através da apropriação-personalização para seu próprio conforto e para o jogo do estatuto social. A questão que se levanta, a partir daqui, é o “como”. Como é que se processa o uso do habitat pelas actividades quotidianas de personalização, a apropriação simbólica pelos significados que se lhe atribuem, a projecção para os outros do seu próprio habitat, e, simultaneamente, como se constroem as identidades de quem habita aquele território. Responder a estas questões será a matéria da nossa tese e passamos a defini-la no quadro dos processos antropológicos de construção identitária, integrando estas diversas perspectivas sobre a relação entre o actor social e o seu habitat.