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Trabalho de Campo estrategicamente situado e de investigação-acção

Cap.I Teorias estruturantes e Conceitos operativos

I.4. Esboço de uma teoria antropológica do habitar contemporâneo

I.4.1. Da Antropologia Urbana à Antropologia do Espaço e das Cidades

I.4.2.1. Trabalho de Campo estrategicamente situado e de investigação-acção

O nosso objecto é a população residente no Bairro da Malagueira – no processo de apropriação-personalização das suas casas – que é uma comunidade (ainda) por imaginar, se nos reportarmos ao conceito criado por Benedict Anderson: «all communities larger than primordial villages of face-to-face contact (and perhaps even these) are imagined. Communities are to be distinguished, not by their falsity/genuineness, but by the style in which they are imagined.» (1983: 55-56) A Malagueira enquanto unidade espacial vivida, ainda não tem um modo (style) de ser imaginada. Porque, por um lado nas cidades todos os bairros têm limites fisicamente difíceis de definir (Cordeiro, 1997; Costa, 2008), e nesse sentido, as suas fronteiras são voláteis porque são construídas socialmente – mais mental que materialmente. Na Malagueira, por outro lado, no que respeita ao aspecto físico e geográfico não é difícil delimitar o espaço construído do bairro, apesar de agregar outros espaços que não foram construídos de raiz, mas foram requalificados como os bairros de Stª Maria e Senhora da Glória, a sua mancha branca em 27 ha não passa despercebida na paisagem que envolve as muralhas de Évora para quem chega pela auto-estrada de Lisboa. A dificuldade em delimitar a Malagueira reside, sobretudo, na sua fragmentação em diversas unidades residenciais, quarteirões, que se expandem pelos 27 ha unicamente “cosidos” pelas condutas que transportam as infra-estruturas e pela avenida principal que vai entroncar numa via que nasce na Praça do Giraldo.

Mas, quanto ao segundo sentido de construção social das fronteiras do bairro instala-se um processo dinâmico de representações – passadas e presentes – que ainda está por concluir. É uma identidade em construção – «pode falar-se com pertinência em identidade quando certos atributos sociais são destacados nas representações cognitivas e nos sentimentos de pertença e distinção, quer

relativamente aos próprios sujeitos» (Costa, 2008: 496), quer ao próprio bairro, e, neste caso, o sentimento de pertença é ténue. Respondendo os nossos informantes sempre evasivamente na questão de pertença à identidade “Bairro da Malagueira”,43 por isso afirmámos que a comunidade “Malagueira” está por imaginar. Mas em termos distintivos funciona positiva e negativamente, através do conflito entre uma identidade em construção pelos habitantes – de comum bairro residencial e uma outra cristalizada desde a origem do bairro e estigmatizada por largos sectores da população da cidade de Évora – como bairro social. Há habitantes que interiorizam o estigma do “bairro social” associado à Cruz da Picada e os que o recusam, mas a realidade ainda é mais complexa do que aqui deixamos escrito e estudaremos mais à frente através das perspectivas emic.

Se o bairro assume uma problemática identidade como o poderíamos observar? Se logo à partida assumíamos estes riscos, com a entrada no terreno e a verificação que os habitantes viviam como num apartamento e que em cada rua a diversidade de apropriações expressas apesar de grande não contemplava todas as variáveis possíveis, mas muito menos fornecia “um” padrão cristalizado, bem como as áreas bem delimitadas dez anos antes na primeira estada no terreno, em 2001, eram agora mais difusas e simultaneamente mais hierarquizadas obrigando-nos a reflectir sobre o trabalho de campo no que respeitava ao “terreno” e à amostra.

Estes factores, que estavam em desacordo com a nossa experiência de dez anos antes, fizeram-nos recuar e recordar as reflexões de Graça Índias Cordeiro sobre o seu trabalho de campo num bairro popular lisboeta. A autora admitiu a frustração de transportar para o terreno as técnicas de recolha antropológica tradicionais: «o trabalho de campo decorrera sem observação participante, a perspectiva holista pura e simplesmente não existira, o método comparativo primara pela ausência» (1997: 26- 27), daí tinha decorrido: «a incapacidade em olhar a complexidade própria de uma realidade urbana, altamente diversificada e contrastada, circunscrevera-me o

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Como já afirmámos antes, a Malagueira – que será mais fácil definir enquanto freguesia aglutinadora de vários bairros – torna-se um objecto escorregadio nas mãos do cientista social pois, devido às representações sociais de status, existem três Malagueiras com histórias e práticas bem diferenciadas. E cada grupo quer marcar bem a sua distinção em relação aos outros. E esta é uma das razões de estarmos perante um locale optimum para estudar a relação actor social-habitat, dada a diversidade dos grupos sociais em presença e das suas representações.

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horizonte de pesquisa a um punhado de homens fechados no espaço e no tempo lúdicos da laranjinha. Por outras palavras, a cidade escapara-me.» (ibidem: p.27) Quando precisamente o que procurava era o conhecimento dessa mesma cidade.44

Isto é, não podemos excluir a envolvente e os sistemas em rede que são criados (chamemos-lhes settings, sites, ou redes). Também aqui se questionava o “presente etnográfico” sem História, sem mobilidade e sem relações – isolados num sítio – criando a reificação/essencialização de uma “cultura” que chegou a ser considerada uniforme. Não considerando as elementares segmentações em ricos/pobres, homem/mulher, jovens/idosos, crianças/adultos, além dos grupos étnicos... Compreendemos que o lugar – rua – e esta “cultura” de satisfação ou não-satisfação residencial tinha que ser segmentada e interrelacionada em settings e em distintos grupos, e não a rua monolítica fechada sobre si própria. Diz George Marcus: «an object of study that cannot be accounted for ethnographically by remaining focused on a single site of intensive investigation.» (1998: 79-80)45 E faz a proposta do objecto ser estudado num espaço relacional multi-situado que funcionará comparativamente, no entanto, Marcus fornece uma opção ainda mais segura – o trabalho de campo “estrategicamente situado”:

«This strategically situated ethnography might be thought of as a foreshortened multi- sited project and should be distinguished from the single-site ethnography (…) The

strategically situated ethnography attempts to understand something broadly about the system in ethnographic terms as much as it does its local subjects: It is only local circumstantially». (1998: 95-96, o bold é nosso)

44 A deriva, não tanto do corpus teórico, mas inerente ao próprio objecto-problemática, leva a autora a permanentemente circular «no limiar entre a antropologia, a sociologia e a história» (ibidem: 26)… «ponto de vista sociológico e antropológico, à la foix” (ibidem: 28), vai levar a autora a um conceito novo: «a observação com tendência a participante» (ibidem: 30). Era levada a certas práticas clássicas na Antropologia, como a residência in situ, «mais pelo cumprimento de um dever ritual iniciático do que pelo interesse dos objectivos da pesquisa» (ibidem: 34, em rodapé). Práticas que depois abandonava no decorrer da investigação no terreno e atribui as suas opções metodológicas aos «limites éticos de uma “antropologia perto de casa”» (ibidem: 35) e à complexidade do terreno urbano como «uma realidade que requer outros instrumentos de observação mais sofisticados do que apenas o olhar mais ou menos distanciado de um indivíduo solitário» (ibidem: 40, rodapé). Confrontámo-nos com estas mesmas questões, por isso as transcrevemos aqui.

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A evolução da Antropologia, na perspectiva da pós-modernidade foi passar da «intensively-focused- upon-single site of ethnographic observation and participation while developing by other means and methods the world system context», como, por exemplo, usar a História local e os seus arquivos, para uma Antropologia que «moves out from the single sites and local situations of conventional ethnographic research designs to examine the circulation of cultural meanings, objects and identities in diffuse time-space.» (Id., ibid.: 79)

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Esta observação-recolha-análise “estrategicamente situada” é “glocal”, contempla o global e o local, em toda a sua plenitude e diversidade, num processo dinâmico sem fim. Apesar de se questionar o lugar, acaba por se voltar sempre à identidade localizada dos sujeitos sociais: porque «”no one lives in the world in general” (Geertz, 1996). Vivemos todos em lugares mais ou menos imaginados, mas espacialmente localizáveis, e a nossa relação com os lugares é um elemento fundamental para a construção das nossas identidades» (Silvano, 1998: 61). Assumimos, então, uma relação dialéctica, porque na sociedade urbana contemporânea «a questão da identidade deixa (…) de ser limitada ao espaço dos indivíduos ou das comunidades em estudo (o lugar) para passar a integrar as interacções que estes estabelecem com os espaços exteriores.» (ibidem: 63) E estes espaços exteriores são para nós a relação dinâmica – histórica e sincrónica, simultaneamente – do lugar “Malagueira” com os outros lugares próximos que são: Malagueira-Évora/cidade e região envolvente. A partir da unidade social primária – a casa, o espaço doméstico.

Esta necessidade de adaptação dos métodos às realidades sociais e à sua investigação é, agora, um trabalho nosso. Porque, compreendemos que o “sistema residencial” de Jacinta e José – emigrantes portugueses em França permanentemente a mudarem da casa de porteira do centro de Paris para a casa própria da periferia e ainda para a casa dos progenitores no “torrão natal” – exija uma etnografia multisituada (Silvano, 2001). Igualmente compreendemos que as comunidades diaspóricas que vivem entre Índia-Moçambique-Portugal-Inglaterra para serem estudadas exigem uma etnografia multisituada (Susana Bastos, 2001). Mas se entendemos que há factores de mobilidade, também os há de fixação:46 a casa da Malagueira, o bairro, a região é centrada numa Cidade – Évora – com uma cultura urbana fixa num território onde está sedimentada há séculos:

«Na verdade, à evolução linear do crescimento das cidades corresponde a constituição hesitante, feita de avanços e recuos, daquilo a que chamamos cultura urbana. Como campo teórico, centrado em redor de um conjunto específico de práticas sociais, mentalidades e estilos de vida que se forjam, comunicam e reproduzem na cidade, a

46 A fixação que aqui se aborda respeita ao colectivo, no nível individual dos actores sociais serão os nossos informantes a falar dela no Cap.III.

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cultura urbana tem uma história própria, iniciada nos meados do século XIX, sob o pano de fundo da industrialização europeia.» (Fortuna, 2001: 3)

A Malagueira é assim um bairro com bairros lá dentro, é uma unidade residencial moderna que agrega em si mesma bairros de tradição popular. Este factor de ser parte da cultura urbana de uma cidade é um item indispensável, que pode ser trabalhado de muitas maneiras, mas não pode ser omitido que é uma parte estável de uma cidade. O bairro construído de raiz pelo desenho de Siza que recusou a destruição dos bairros populares que o envolviam e mantiveram-se, desse modo, vastos núcleos urbanos eles mesmos com tradições de “bairros populares” – os Bairros de Santa Maria, Senhora da Glória e das Fontanas, por exemplo – com “manifestações de identidade cultural” que:

«encontram uma dimensão-chave de explicação no facto de, a um tempo de maneira entrelaçada em profundidade com os meandros relacionais locais e de modo não menos decisivamente atravessado por lógicas múltiplas de articulação com o exterior, o bairro ser um contexto social onde se elaboram formas singulares de cultura popular urbana.» (Costa, 2008: 171)

Esta relação dentro-fora, mobilidade-fixação, mantém-se, mas o edificado está lá, as relações actor social – habitat também, mesmo que se projectem no exterior! Quer dizer, num locale o que conta é a construção da consciência do lugar, das práticas agenciadas pelos actores sociais dentro do bairro e na sua relação com o exterior. A nossa investigação é, sem dúvida, uma etnografia estrategicamente situada num lugar dentro de um projecto multisituado, em rede, organizado em sistemas de settings (Rapoport 1990, 1997, 2000; O’Neill, 1991; Silvano, 1998, etc.) «Pôr em causa a noção de lugar (ou de estudo de lugar) significa interrogar-nos sobre a sua construção. O lugar como refere Appadurai (1988), foi uma prisão metonímica para encarcerar nativos.» (Silvano, 1998: 60) Contra esta tendência monolítica propõe-se a “multilocalidade” como alternativa à figura de lugar. No nosso trabalho a partir da casa chegamos ao bairro, à cidade, até à sua relação com toda a região – esta é observada e ponderada nas representações simbólicas e práticas sociais dos cidadãos da Malagueira, em toda a sua multiplicidade.

Todo o estudo sobre o habitat, o seu acesso e respectiva satisfação ou insatisfação, se inscreve num quadro político de direitos e garantias constitucionais.

Como sustenta a Constituição da República Portuguesa:47 Todos têm direito para si e

para a sua família a uma habitação de dimensão adequada em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar (Artº.65º.

Habitação e Urbanismo), para que isto seja possível, incumbe ao Estado a prossecução de uma política de habitação, urbanismo e ordenamento do território que contempla vários factores explicitados ao longo do texto constitucional a fim de garantir uma casa a cada família que dela necessite, e não tenha meios próprios para o fazer.

Este texto tem, nos dias de hoje em que se debate as funções do Estado, levantado várias questões e suscitado muitas perplexidades, sobretudo porque a tendência geral europeia vai no sentido de privatizar o sector de habitação social e diminuir o peso do Estado na vida social: «The commitment of the state to provide decent and affordable housing for lower-income households has fundamental built-in contradictions regarding present day’s call for efficiency, cost-effectiveness and diminishing government involvement.» (Eva T. van KEMPEN, 1993: 100)48 E isto acontece por diversas razões que não cabem aqui ser discutidas, mas leva a que as políticas de habitação em Portugal se não funcionam a contra-ciclo europeu – é o que significa a manutenção do Artº. 65º., mesmo que não seja cumprido – pelo menos apresentam especificidades próprias. Pensamos que elas resultam do facto de Portugal não ter tido necessidade de reconstruir o parque habitacional no pós-II Guerra Mundial, como em toda a Europa, e de a industrialização portuguesa ter começado muito tarde, atingindo um grau significativo somente em meados do século XX (anos 30-40).

Baptista Coelho ([BpC] 2012) exprimiu recentemente a sua surpresa por a população portuguesa ter revelado num estudo – "A Qualidade da Democracia em Portugal: a Perspectiva dos Cidadãos", realizado por António Costa Pinto, e outros – que «a Habitação é considerada por maior número de inquiridos como direito social

47 Aprovada no pós-25 de Abril, a 2 de Abril de 1976, mas com as últimas alterações em 1997. 48

Este facto tem implicações políticas: «The post-[II]war expansion of state involvement promoted political i.e. democratic rather than economic, control over the sector. The new combination of decentralisation and privatisation indicate a lesser role for democracy in the politics of housing. Economics will become more important than democracy in determining the shape of housing also because those most in need are marginalized and powerless both in politics and in the market in this new state of affairs.» (Ola SIKSIÖ, 1993: 34)

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"Pouco ou nada garantido"». Na sua perspectiva seria “nadíssima” a resposta certa... BpC continua:

«a surpresa tem a ver com a discrepância entre estes resultados e a quase ausência de uma política habitacional que tem marcado a realidade portuguesa desde há anos, uma situação provavelmente marcada pela dificuldade de financiamentos comunitários nestas áreas, mas uma situação que não se pode manter, pois afecta necessidades habitacionais básicas, o bem-estar de muitos cidadãos, e a saúde urbana de muitas cidades e povoações.»49

O campo político deste debate parece evidente. Estudar a Malagueira é entrar no campo político mais geral e mais digno – “le politique”50 – a gestão do comportamento dos actores sociais em comunidade, assim como na mais superficial luta dos poderes autárquicos partidários – “la politique”. Seja pelo aspecto de garantias constitucionais do direito à habitação a quem não o pode satisfazer pelos seus próprios meios, quer por uma perspectiva de planeamento urbano, que para Castells é uma questão intrinsecamente política:

49 Numa perspectiva de abordagem a estes projectos de “habitação social” que defende e se assemelham muito à realidade da Malagueira, BpC desenvolve a necessidade de se prestar mais atenção à Habitação de Interesse Social (HIS), conceito que substitui a Habitação a Custos Controlados, e que para o autor tem grandes potencialidades de integração social: «Há que considerar, ainda, que esta perspectiva, hoje essencial, de um alargado grupo de pessoas poderem/deverem poder ter apoios do Estado em termos habitacionais e do habitar é uma situação, ou um problema, que constitui simultaneamente uma vantagem potencial importante em termos do desenvolvimento de uma mixidade social activa que é vital para o sucesso das operações; e pensa-se aqui num amplo leque de soluções de habitar específicas, por exemplo, para idosos, para jovens sós, para casais, para pessoas que precisem de apoios diversos, para formas de habitar específicas, para soluções integradas de habitação e equipamentos sociais e/ou serviços vários, etc. (…) Há ainda que ter em conta que a melhor maneira de velar pelo bom futuro das intervenções de HIS - sempre numa perspectiva de construção nova e/ou reabilitação - é considerá-las como podendo servir um muito amplo leque de habitantes, que poderão ser ou não socialmente carenciados». BpC desenvolve neste artigo da Infohabitar (2012) online uma série de itens a serem contemplados em boas práticas do Estado.

50 Sobre o político e o que o envolve: os poderes, os contra-poderes, a maneira de o alcançar e exercer, as dinâmicas sociais da luta de classes, etc., há que esclarecer – «l'essentiel, ce sont les variantes et les combinaisons que chaque groupe invente sur ces thèmes. Mais pour les cerner et les comprendre il faut se référer à tous les autres aspects de la vie du groupe, à la dynamique sociale dans tout sa complexité. (...) Ne pas l'admettre revient à réduire le politique à la politique». (Ravis-Giordani, 1983: 182-183) Os debates político-partidários locais sobre a Malagueira devem ser considerados na categoria “la politique”. Político é definido como: «Le politique est l’ensemble des processus – institutionnalisés, ritualisés, personnalisés ou non – par lesquels un groupe social (ou une partie de ce groupe) contenant en son sein dês sous-groupes, ou se rattachant à d’autres groupes du même type que lui, conteste ou confirme, bref restructure sans cesse la hiérarchie dês valeurs, des intérêts, dês conduites, qui le constituent en tant que groupe.» (ibidem : 178, em itálico no original) E conclui: «Le résultat étant, selon l’expression de G. Gurvitch, un processus tantôt souterrain, tantôt explosif de structuration, destructuration et restructuration du groupe social. Ainsi defini, le politique apparaît comme le mode d’expression priviligié de la structure sociale, prise en un sens dynamique et historique.» (ibidem) Onde se percebe que é impossível cristalizar as estruturas sociais.

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«Uma unidade urbana não é uma unidade em termos de produção. Ao contrário, ela apresenta uma determinada especificidade em termos de residência, em termos de “quotidianidade”. Ela é, em suma, o espaço quotidiano de uma fracção delimitada da

força de trabalho. (…) Trata-se do processo de reprodução da força de trabalho: eis a exacta designação, em termos de economia marxista, do que se chama a vida

quotidiana”.» (1983: 556-557)

Estudar o urbano é também estudar o processo capitalista de rentabilização dos solos, a especulação imobiliária e os processos mais largos da sociedade de consumo, por isso o urbano deve ser considerado como um produto social – produzido e produtor de dinâmicas – «e a ligação espaço-sociedade deve ser estabelecida como problemática, como objecto de investigação mais do que como eixo interpretativo da diversidade da vida social» (Ibidem: 170), e cultural. «Com efeito, a sociedade não é pura expressão de culturas em si, mas a articulação mais ou menos contraditória de interesses» (ibidem: 172), a sociedade, os processos socioculturais não são mais que a expressão da luta de classes que se projecta no tempo e no espaço. Por estas razões, que na nossa perspectiva são intrínsecas ao objecto-processo em estudo, o nosso trabalho não poderia deixar de ser de investigação-acção. E estas perspectivas estão a instalar-se nas práticas dos investigadores contemporâneos. Isabel Guerra põe a hipótese de uma:

«etnografia interaccionista, elaborando com os próprios actores as definições contraditórias das situações, procurando as vias de emancipação pessoal, institucional e sociopolítica, etc. Na senda de Geertz (1973) e apoiando-se no carácter reflexivo e de mudança que a cultura possui, concebe-se a construção do conhecimento de si, do seu lugar no mundo, etc., como uma prática social entre profissionais e populações na identificação das situações, procura de projectos exequíveis e capacidades de reconstrução de identidades e destinos.» (2011: 10)

As perspectivas positivistas de distanciamento, neutralidade e objectividade ainda são escolhos a enfrentar pelos investigadores, como se fosse possível a um investigador no seu trabalho de campo ficar indiferente aos anseios das populações. E mesmo que fosse possível a um cientista social não se envolver com a população, no trabalho de terreno, ao dar voz às populações e ao quadro em que a investigação opera serão sempre patentes as contradições de projectos e interesses dos actores