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Breve Etnografia do habitat na Região Alentejo Central e confrontação final com um projecto de habitação social “estrangeiro” para futura comparação

Cap.I Teorias estruturantes e Conceitos operativos

I.4. Esboço de uma teoria antropológica do habitar contemporâneo

I.4.3. Breve Etnografia do habitat na Região Alentejo Central e confrontação final com um projecto de habitação social “estrangeiro” para futura comparação

Quando falamos em unidades urbanas – uma aglomeração, unidade espacial ou unidade residencial temos que ter presente que: «A organização do espaço em unidades específicas e articuladas, segundo os arranjos e os ritmos dos meios de produção nos parece relegada às distinções da prática em termos de regiões.» (Castells, 1983: 555) A unidade “região” é incontornável e será a escala mais larga que referenciamos – como área cultural, mas num sentido que se aproxima de Jorge Gaspar (1972) em A Área de Influência de Évora – Sistema de Funções e Lugares

centrais, escreve a abrir o Prefácio: «Os problemas da hierarquia e relações de

dependência de funções e lugares centrais» tinha estado fora da agenda da investigação, mas o autor propunha-se definir «a área de influência de Évora. O território organizado por esta cidade, cerca de 7500 Km2 e 185000 habitantes em 1970, de delimitação relativamente fácil e com elevado grau de homogeneidade». Esta área de influência é bem evidente na presença em toda a Malagueira de uma população que só muito raramente provém de fora do distrito e que diminuiu muito acentuadamente nas zonas rurais. Quando pensamos numa área de influência não temos só em conta o movimento centro→periferia, mas igualmente periferia→centro. São dinâmicas e práticas culturais que funcionam nos dois sentidos.

Como Gertz dizia: “não há lugares em geral” e nós concluímos que há linhas de força de valores e práticas sociais locais que têm mais pertinência (e permanência) que outras mais voláteis. Somos, assim, levados como Pina Cabral «a procurar a existência de protótipos socioculturais que funcionem como elementos agregadores da região vista como um “campo de diferenças”». (1991: 105) E as diferenças serão grandes entre os diversos grupos de status e socioprofissionais, etc. Já vimos que a este segmento da realidade sociocultural PC designa por protótipo e é mais exactamente a casa, a partir dela construiu as “regionalidades socioculturais”: estudou o Alto-Minho, que destacamos, e parte das Beiras, Trás-os-Montes, operando num quadro de regiões, mas integrando neste “artefacto” – casa – toda a mundividência social que a envolve e lhe dá sentido. Regiões que tinham uma “forte identificação” entre «a identidade social e o território que controlam» (PC, 1991: 101). Entretanto, também J. Bastos trabalhou num quadro de regiões ao nível da identidade social:

«A investigação dos processos identitários e das identidades sócio-históricas parece, assim, exigir não o isolamento de uma dada escala de pesquisa (um “isolat” social) mas a articulação de diferentes escalas dos processos identitários, indo desde os macro-níveis das relações internacionais e das estratégias morais até ao micro-nível da auto- representação pessoal, passando necessariamente pelas identidades categoriais intermediárias (de gerações e de sexos) bem como pelas identidades regionais e locais (quando diferenciadas tensionalmente entre si).» (Lição: 2005: 5)

Sobre a região que nos ocupa, o Alentejo assume uma “depressão identitária”, o Inquérito de J. Bastos deu como traços identitários assumidos pelos próprios, em primeiro lugar: «os alentejanos são amantes da limpeza», este item é preponderante na ocupação do espaço doméstico e na sua valorização, como verificámos no terreno.

E é um dado adquirido, até pelo senso comum, como uma obsessão. No inquérito assumem-se como alegres e faladores (Bastos, 2000: 129). «Os “alentejanos” constituem-se assim, na sua estratégia identitária, como modelo invejável para os portugueses de outras regiões, ao sacrificarem a auto-afirmação à sociabilidade expansiva.» (ibidem: 131) Os alentejanos procedem como todas as outras regiões purificam a sua auto-representação isentando-se dos defeitos que vêem nos outros. Ninguém em Portugal se diz tão “feminino”, e “exemplar de boa ruralidade”, mas são também processos identitários “contraditórios” escreve J. Bastos (ibidem: 132).

Como todos os processos sociais as identidades são conflituais e dinâmicas, são menos afirmativos e mais preocupados com “a sociabilidade comunitária”. O papel da mãe é determinante e assumem um padrão educacional “permissivo”, único em todas as 9 regiões consideradas por J. Bastos: «os alentejanos oferecem-se, assim, nas suas contradições identitárias, como os representantes modelares da educação feminina “permissiva” e de uma vida comunitária em que as mulheres têm um papel educacional sobressaliente.» (ibidem: 135) Estas indicações são preciosas para compreender as relações de vizinhança e o estilo de vida das populações na Malagueira. Mas voltemos ao habitat.

Siza não é alheio a estas regiões culturais, sobretudo pela atenção ao vernáculo que sempre dispensou nos seus projectos (Cf. Belém, 2012) Há na obra de Siza Vieira uma vontade de retornar às origens presente no seu modo de projectar, na pesquisa que faz das formas “simples” como elemento estruturador das suas casas e construções, tanto quanto no objecto final. A própria participação dos usuários é uma prática de construção no mundo rural, onde os “proprietários” são sempre chamados a discutir o programa com o construtor. É ele que nos diz que, a propósito da Quinta da Malagueira: «a participação dos futuros utentes, originada pela revolução, era o irreprimível motor de transformação que influenciou o método.» A participação dos futuros utentes é essencial para planear e construir casas para as pessoas. Siza põe duas condições: serem pessoas «especificamente ligadas a um lugar» e serem «comunidades já consolidadas.» (Siza, 2000: 107-109) Na Malagueira tratava-se de uma “Associação de Moradores”, inicialmente, que depois se tornou Cooperativa de

habitação. Esta maneira de trabalhar remete-nos para a arquitectura vernácula e para os seus métodos:

O vernáculo «hace referencia a sociedades preindustriales y modernas en las que existen profesionales de la construcción, pero en las que el programa constructivo es bien conocido por el usuario-consumidor, que tiene en el proceso de definición un peso específico muy importante. (...) en lo relativo al tamaño, exigencias familiares, relación con el lugar, etc., pero nunca respecto a la forma (...) Los modelos son resultado de la colaboración generacional y de la que existe entre el artesano que construye y el usuario demandante. (...) la cualidad vernácula hace referencia asimismo al ámbito local entendido como el perfil de un área geográfica determinada (regional, comarcal, etc.).» (Ramos & Cossío, 1998: 37.)

Poderíamos ainda acrescentar que em Álvaro Siza há uma integração do construído no espaço envolvente, que, igualmente, remete para uma maneira de construir mais próxima da arquitectura tradicional/vernácula do que da arquitectura contemporânea. A preocupação com a natureza, não como elemento cénico, mas como parte integrante do programa é também típica em Siza. Na Malagueira não só respeitou as pré-existências naturais (as linhas de água, as árvores, etc.) e as físicas (dois moinhos abandonados, um sistema de elevação de água, etc.),54 como reivindicou até a construção popular55 do Bairro clandestino de Stª Maria, a par das influências claras da arquitectura tradicional do centro da cidade de Évora – particularmente as casas pátio. Podíamos continuar nas influências com o Aqueduto, as arcadas da Praça do Giraldo e até as ruas estreitas do casco velho, para proteger do estio do Verão, etc… as referências à envolvente são muitas, para lá da própria adaptação topográfica ao terreno. Não foram feitas quaisquer terraplanagens.

54 O respeito pelas pré-existências era uma das condições de Nuno Portas no Projecto da Malagueira, mas esta atitude está presente no trabalho de Siza desde os primórdios – não alterou a posição de qualquer pedra na Piscina das Marés em Leça de Palmeira (1966), como mais recentemente na Escola Superior de Educação de Setúbal (1993) adaptou um dos edifícios para não arrancar um pinheiro que estava implantado no terreno.

55 A arquitectura “popular” é um conceito diferente de “vernacular”. Esta é uma arquitectura funcional tradicional ao lugar, a primeira é sobretudo uma técnica construtiva da população não profissional, indiferentemente se é rural ou urbana. O “popular”: a «tradición popular, como traducción directa e inconsciente a las formas físicas de una determinada cultura, se relaciona con la cultura de la mayoria» e deve ser considerada «como la traducción espacial y constructiva de los usos y los significados, relacionándola con ele conjunto de la sociedad», estudando esta relação «de modo más amplio deben tratarse aspectos correspondientes a las relaciones históricas del grupo humano y su complejo histórico- cultural» Outra particularidade a reter é o excesso estrutural: «las muestras de arquitectura popular más sencillas en las que puede observarse la ausencia de técnicos de oficios de la construcción específicos (carpinteros, canteros, etc.) reflejándose en un mal aprovechamiento de las características de los materiales empleados, que redunda en un sobredimensionado de los elementos estructurales» (RAMOS & COSSÍO, 1998: 62).

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Esta região é muito estudada etnograficamente e entendida a “casa” como “protótipo sociocultural” ou “marcador étnico”, nas palavras de outros, fomos procurá-los na região que trabalhamos, primeiro no trabalho contemporâneo de José Cutileiro (1977), onde encontrámos umas poucas referências de carácter etnográfico, mais preocupado em analisar as relações sociais. As relações com o habitat são mediadas por essas relações entre ricos e pobres: a tradição diz “a mulher em casa, o homem na praça”, recorda Cutileiro, a mulher está no domínio privado, o homem está no domínio público:

«a fim de garantir a subsistência dos seus. A este mundo só deveria, em princípio, ter acesso o homem, enquanto a mulher deveria ficar resguardada em casa. Todavia, tal divisão de papéis só é possível entre os membros dos grupos mais privilegiados. As mulheres dos latifundiários e dos grandes proprietários vivem muito mais confinadas nas suas casas, cuja disposição e arranjo interior reforçam este isolamento. Nas casas dos proprietários, a cozinha dá para o pátio das traseiras, pelo que na maioria das vezes se torna necessário atravessar toda a casa para aí se chegar. O aposento mais próximo da rua é quase sempre o escritório do marido. Na maior parte das casas dos trabalhadores rurais a porta para a rua dá acesso directamente à cozinha, o que deixa as mulheres da casa em íntimo contacto com o mundo exterior.» (1977: 140-141)

Cutileiro insistirá nesta protecção às mulheres dos lavradores, que só saem depois do pôr-do-Sol com uma criada, e tudo para obras de caridade ou ócio… As mulheres ricas não são “mulheres” são “senhoras” e atribui-se-lhe o “dona” (1977: 141-142) Sobre o marcador étnico habitat temos que recorrer a uma obra emblemática da Etnografia portuguesa: Através dos Campos, usos e costumes agrícolo-

alentejanos, de José da Silva Picão ([1903] 1983): «Uma das características mais

notáveis da planície transtagana são os montes, isto é, as casas de residência nas herdades, que simultaneamente e por via da regra se aplicam também a sedes das lavouras que se exploram nas mesmas herdades.» (ibidem: 25) Depois divide os montes em cinco classes que vão dos acastelados e solarengos até aos que não excedem “três a seis casitas baixas” (ibidem: 26), sejam solares ou casitas, ambos gerem a vida agrícola da herdade e são instrumentos de trabalho onde se albergam homens e ferramentas, além dos bens produzidos. Sobre as casas de habitação dos lavradores escreve: «compreende: casa de entrada, um indeterminado número de quartos, sala de jantar, dispensa, cozinha, amassaria, casa de pão, etc. (…) de notável as cantareiras de loiça, estanho, arame e cobre que ornamentam as paredes, de alto a

baixo, em flamantes estanheiras e sanefas de pinho, tintas de azul e encarnado.» Concluindo: «É o fracasso da lavoura – o seu luxo caseiro, que a vangloria bastante quando estranhos lho gabam.» (ibidem: 25, 26, 28)

E é este carácter de apresentação/exposição dos materiais que nós queremos destacar, porque não é senão um “marcador étnico”, um “emblema” cultural que aquela região usa como processo distintivo. (Cf. “domestic display” em Appadurai56 ou Miller, etc.) Usa ou usava? É uma pergunta que queremos responder na nossa tese.

Quanto ao cruzamento de classes que representa esta exposição das “cantareiras” e/ou “estanheiras”57 creio não haver discrepâncias entre uns e outros a não ser na qualidade das madeiras e dos conteúdos em louça, pelo que se percebe na obra de Picão é que os lavradores são muito cientes do seu regionalismo.58 Os latifundiários que viviam em Lisboa e especulavam financeiramente além de receber as suas rendas eram tradicionalmente designados como “proprietários”, não como lavradores. Picão descreve a situação entre os operários agrícolas: trabalham nas herdades e a maioria reside nas pequenas aldeias e vilas que estão mais próximo.

«Andam lá pelo campo agarrados à “obrigação”, mas o domicílio estabelecem-no nas povoações. Cada chefe de família tem aí o seu lugar, onde vive habitualmente a mulher e os filhos. Ele em pessoa, só o utiliza quando folga e quando está doente ou desacomodado. Muitos residem em moradia sua, adquirida por herança, compra ou construção. Outros, habitam casa arrendada aos semestres ou por ano, com vencimento no fim de Junho ou de Dezembro. Uma das principais aspirações do criado de lavoura é adquirir de propriedade uma casita na aldeia que o poupe a mudanças e a exigências e caprichos dos senhorios. Ter uns buraquinhos onde se possa alojar é o seu maior empenho. Os que conseguem enfim realizar esse propósito, quase sempre à custa de privações e sacríficios, senão com o auxílio e protecção dos amos, como também

56 «Of course, the best examples of the diversion of commodities from their original nexus is to be found in the domain of fashion, domestic display, and collecting (…) In the logic of found art, the everyday commodity is framed and aestheticized.» (Appadurai, 1986: 28)

57 Cantareiras em Elvas e designadas como estanheiras em Évora. A distinção não é clara, na realidade, nem mesmo para a sobrinha-neta de Silva Picão que vive na Malagueira, depois de ter vivido no Monte do seu tio que herdou – o Monte Alcobaça – e foi uma nossa informante (CAF16): «Pois, cantareira sim… é onde se põe os pratos, exactamente… Em casa da minha mãe… eu não tenho, a minha mãe tem ainda muitas que trouxe desse monte porque entretanto isso teve que ser vendido: desgovernos da família, não é, e acabou por se vender. E a minha mãe por acaso mantem e eu ainda mantenho também muitas coisas antigas, eram desse monte e essas estanheiras e cantareiras… eu por acaso agora isso já baralho um bocado sei que é cantareira mas como vivo aqui há cinquenta anos já chamo estanheira, está a ver?… Estamos a falar onde pomos os pratos, certo? Nas paredes…» Outros dizem cantareira é onde se punha os cântaros da água, e não tinha a dignidade de estar na sala de jantar em exposição.

58 Na obra de Raminhos já citada percebemos que lavradores e trabalhadores agrícolas procedem por igual à mitificação do passado, como se entre uns e outros não existissem diferenças abismais.

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acontece, tomam à casa tal apego, que só a vendem por necessidade extrema, imperiosíssima.» (ibidem: 151-152)

Preferem mendigar a vender a casa! Diz Picão. Quanto às habitações dos camponenes: «Suas ou arrendadas, as mulheres dispensam às moradias inexcedíveis cuidados de conservação, arranjo e limpeza. São o ninho de família, ninho amorosíssimo, a que consagram arreigada afeição, em sacrifícios de tempo, trabalho e dinheiro. (…) Caiações gerais, de baixo a cima» todos os anos por ocasião da Páscoa, Verão ou natal, ou por uma ocasião especial, um casamento, por exemplo. No nosso trabalho de campo, durante esses períodos era evidente a exposição das latas de tintas, às dezenas, mesmo à entrada das grandes superfícies com grandes promoções. «Quem não caiar a valer, em qualquer destas ocasiões, incorre na censura pública, embora seja pobre. Que, em geral, nunca há ensejo para semelhante censura. Faltará dinheiro para pão, mas nunca para meia arrobinha de cal, pelo menos.» (ibidem: 152) É assim no concelho de Elvas, diz Picão, mas por mera observação podemos afirmar que é assim em todo o Alentejo, Évora é claro exemplo do que se afirma. É, na verdade, um emblema-marcador cultural que toda a população assume, o branco das moradias e o display das cantareiras/estanheiras:

Casa dianteira, vistoso mobiliário … «As mesas melhores e mais altas ficam bem visíveis da porta da rua (…) A parede fronteira à rua destaca-se, de entre todas, por exibir as maiores e mais lindas cantareiras, bem como outras decorações típicas e originais. Em cima, na guirlanda ou cimalha de alvenaria, propositadamente construída para tais exibições, salientam-se os tachos de arame, armados uns sobre os outros, dos maiores aos mais pequenos, e a fileira de pratos de estanho, que mais parecem de prata, pelo brilho e apuro da limpeza (…) O essencial é mostrar bastantes loiças e vidros, quantas mais melhor, que as cantareiras tornam-se a pedra de toque, porque se aquilata o arranjo e bom gosto da dona. Por tanto, cada qual faz o que pode, para não ser humilhada pelas vizinhas, no que respeita a “cacos” e coisas tais. Ter a habitação desguarnecida de loiças traduz pelintrice e desmazelo vergonhoso, a que nenhuma mulher se sujeita de boa vontade. Antes passar fome.» (ibidem: 153-154)

Estes marcadores étnicos são, do ponto de vista (algo exagerado) dos arquitectos, uma das ameaças que fazem o projecto arquitectónico e urbano da Malagueira perigar. Os muros das casas das cooperativas que envolvem o pátio são baixos, porque em discussão entre o projectista e os futuros usuários estes pretenderam ter uma “casa como os ricos”, uma casa que pudessem mostrar. Essa é outra das razões da profusão dos vidros e dos grandes vãos de abertura no pátio, com

os muros baixos e os vidros nas amplas vidraças das janelas-portas todos podiam ver as “cantareiras/estanheiras” ricas dos seus proprietários. O “baixinho” – o tradicional rodapé que envolve as umbreiras das portas e janelas e a parte da casa junto ao chão, o alizar – era inicialmente “proibido” por regulamentação interna no bairro porque, diziam, um dia que aceitassem um “baixinho”, no dia seguinte tinham uma mão cheia de cores ao gosto variado dos seus ocupantes em cada casa, quebrando a homogeneidade e foi o que aconteceu apesar da proibição. Hoje já é tolerado com algumas condições.

Já vimos com Raminhos (2004: 105) que a casa se torna, em Santa Margarida da Serra, na Serra de Grândola, o centro da visão do mundo. Um espaço que está em transição do rural para o urbano, na medida em que os montes estão a ser abandonados e as casas da vila estão a ser ocupadas. Os recém-chegados hippies alemães é que estão a ocupar os montes, e esta reurbanização da vila pelos autóctones traz ao de cima as vivências e memórias ligadas ao habitat de antigamente. São como que ressurgências que mitificam o passado, para Fortuna (2001a) é a

destradicionalização que procede à conservação inovadora do elemento tradicional,

mas também podem, e são muitas vezes, ressurgências conflituosas, esta ligação- transição antigo-contemporâneo, rural-urbano, para Ramos (1991, 2007) é a realidade da região de influência de Évora.

Consideramos como Martins Ramos que «no Alentejo, os grandes centros populacionais não deixam de ser comunidades rurais, posto de parte o critério demográfico e tendo em linha de conta hábitos, costumes, modos de vida, tradições, fluxos migratórios internos, etc.» (1991: 230), em entrevista no nosso trabalho de campo (Julho, 2010) confirmou: «não há cidades, há aldeias grandes no Alentejo, se eu for à Praça do Giraldo há 50 pessoas que me cumprimentam…» Ramos no seu re-study da Vila estudada por Cutileiro nos anos 70, a escassos Km de Évora, no século XXI, escreve:

«existem ainda em Vila Velha59 duas esferas perfeitamente demarcadas: a dos homens e das mulheres. O homem é o cavaleiro e o peregrino da rua; a casa é o santuário da mulher. A esfera masculina abarca a rua, a taberna/café, a praça pública e

59 Numa população com “mais de 20%” de reformados pelos dados do autor.

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nomeadamente a Porta da Vila. A esfera feminina afirma-se no espaço doméstico e, acidentalmente, na Igreja.» (2007: 78)

E segundo o autor, hoje, como há 30 anos atrás, e as mulheres quando saem à rua ainda o fazem à pressa. «Um mecanismo que as mulheres usam inteligentemente é a porta (ou a janela). Uma mulher à porta (ou à janela) não abandona a casa e domina a rua.» (ibidem) A maioria das mulheres entrevistadas na Malagueira têm, ou tiveram, uma vida profissional – o que as pôs fora de casa muitas horas por dia, no entanto, quando regressam a casa não são de ficar na rua a conversar, segundo fazem questão de referir. Será que o modelo de comportamento “tradicional” de Vila Velha se reproduz neste bairro “moderno” de Évora? «Logicamente que uma mulher será sempre criticada por passar muito tempo na rua ou na casa das vizinhas.» (ibidem) Não recordo nenhuma excepção a este axioma entre os meus entrevistados, homem ou mulher – ninguém permanece na rua e não frequentam as casas uns dos outros – o que, de certo modo, esbate os interditos femininos que se estendem aos homens.

«[Callier-Boisvert, 1968] cita Silva Picão para colocar em destaque o papel preponderante da mulher nos meios rurais do Sul, em que imperavam a