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O Contexto das problemáticas da habitação e da identidade social

Cap.I Teorias estruturantes e Conceitos operativos

I.1. O Contexto das problemáticas da habitação e da identidade social

Castells (2003a) ao definir os processos de construção da identidade dos actores sociais, nas sociedades contemporâneas, oferece-nos a possibilidade de reconstruir um “sujeito” que estava espartilhado e segmentado em diversos papéis sociais. Sobretudo na construção das identidades “de projecto” e “de resistência”,16 a última resiste à segregação urbana, inscrevendo esta resistência associada a um determinado lugar, e a primeira “produz sujeitos”.17 Esta produção de “sujeito” é sempre colectiva, uma vez que os actores sociais não constroem as suas identidades solitários, ou de indivíduo a indivíduo, mas em processos complexos em relação com os outros actores sociais. O sujeito social desenvolve-se a partir de uma «identidade primária (uma identidade que estrutura as demais)» (ibidem: 3) e que vai, a partir daí, atribuir significados a toda a sua experiência de vida.

Para nós essa identidade “primária” é constituída à volta da experiência da e na habitação do actor social. Na sua morada, no seu “lar” – território que personalizou e a que chama “seu”. O habitat que construiu para viver. Heidegger, em vários ensaios sobre o habitar, deu um forte contributo às investigações empíricas, afirmava que «la manera según la cual los hombres somos en la tierra es el Buan, el habitar. Ser hombre significa: estar en la tierra como mortal, significa: habitar. La antigua palabra bauen

16 CASTELLS conclui: «a identidade destinada à resistência, leva à formação de comunas, ou comunidades (…) É provável que seja esse o tipo mais importante de construção de identidade na nossa sociedade.» (2003a: 6, o bold é nosso) Como se percebe, o “lugar” do “ser” social está sempre presente.

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«Os sujeitos não são indivíduos, mesmo considerando que são constituídos a partir de indivíduos. São o actor social colectivo pelo qual indivíduos atingem o significado holístico na sua experiência. Neste caso, a construção da identidade consiste num projecto de vida diferente» (Ibidem: 7 e 9).

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significa que el hombre es en la medida en que habita».18 Na sua perspectiva, a actividade humana por excelência é o “habitar”, conclui-se.

A História mostrou a centralidade da casa como unidade fundamental ao conhecimento da vida social das sucessivas épocas. Para não recuar excessivamente, e mantendo-nos nas civilizações do Mediterrâneo, na Idade Média a «célula de base é a família camponesa, incarnada tanto quanto possível na perenidade de uma casa e na vida quotidiana de um grupo doméstico de pessoas residentes sob o mesmo tecto», mas esta unidade organizava ainda outros elementos dela dependentes: «a lareira da cozinha, os bens e as terras, os filhos, as alianças conjugais.»19 Mais do que um objecto, uma estrutura construída, a casa apresenta-se como uma mundividência social. Nos nossos espaços rurais – apesar de desestruturados pela Política Agrícola Comum (PAC) e pela pluri-actividade de grande parte, senão a maioria, dos seus membros – esta realidade mantém-se ainda hoje, como nos afirmam os antropólogos (Armindo Santos, 1992, Pina Cabral, 1983, 1984, 1987, 1991, Raminhos, 2004).

Nas cidades, fortaleceu-se a relação intrínseca de um actor social a um espaço/território que controla – seja uma casa ou apartamento, uma barraca ou um quarto de pensão – todo o ser humano tem um espaço de resistência, um núcleo duro de identidade onde constrói o “seu” habitat. E quando essa relação deixa de se processar é a ruptura definitiva do actor social com a sociedade envolvente, diz Castells: «uma vez que a pobreza se transforma em miséria e exclusão social – ou seja, quando se vai parar às ruas – o estigma instaura-se, e a destruição da personalidade e das redes sociais só faz agravar o sofrimento».20

18 E continua: «Cuando se habla de hombre y espacio, oímos esto como si el hombre estuviera en un lado y el espacio en otro. Pero el espacio no es un enfrente del hombre, no es ni un objeto exterior ni una vivencia interior. No hay los hombres y además espacio; porque cuando digo “un hombre” y pienso con esta palabra en aquel que es al modo humano, es decir, que habita». (HEIDEGGER, 1951/1994: 2-8) 19 Numa época em que ainda não estava claramente definido quer o conceito de “família”, quer o de “domicílio”, “casa” representava ambos os conceitos, fundindo-os num só sentido. E estas observações são válidas quer para as casas dos cátaros, quer para as casas dos católicos, comunidades estudadas por Le ROY LADURIE (1975: 56-57). Está aqui presente a tese de Lévi-Strauss sobre a casa como sendo um objecto-processo que faz a síntese de diversos níveis da realidade: residência e grupo doméstico.

20 Do mesmo modo, se associa a exclusão à ausência de um habitat, igualmente relaciona o desenvolvimento económico e social (asiático, neste caso) a políticas de habitação: «Os projectos habitacionais desempenharam um papel fundamental na integração social. No caso de Hong Kong, o aluguer de um imóvel nos projectos de habitação popular era a cidadania de facto concedida a uma classe trabalhadora formada, em grande parte, por imigrantes. No caso de Singapura, o projecto e a 45

Conclui-se que o actor social desterritorializado não existe, o actor social fora do seu “lugar” – casa, habitat ou território móvel, como uma tenda ou roulotte – entra em crise e destrói-se. Aliás, em Portugal, a construção social da imagem do mendigo- vadio, como especialmente foi destacada pelo Estado Novo, e estudada por Susana Trovão P. Bastos, dá-nos bem a ideia do que representava aquele que era errante, sem casa nem raízes, para as culturas instituídas. Era o “mau-português”: «O vadio- mendigo e suas almas gémeas foram transformados num tipo irreal, numa essência. Ganharam uma dimensão mitológica profunda. (…) neles foi cristalizado o mito da individualidade, da ausência e/ou recusa do laço e do contrato social». (1997: 272)

O vadio pretende desconhecer o bem e o mal e recusa qualquer espécie de submissão, ou mesmo, relação social – «numa espécie de anarquismo e promiscuidade permanentes, sem lei nem chefe, sem casamento nem família, sem pátria nem Deus.» Portanto o deserdado dos deserdados é o que vagabundeia sem “lar” onde regressar e assim se confunde e transfigura a sua identidade ameaçada da “dissolução” num “não- tempo” de “retorno ao indiferenciado”. Este vagabundo era potencialmente “perigoso” (ibidem: 273). Esta construção social do mendigo-vagabundo, sobretudo associada a uma sociedade ainda ruralizada, perdeu força com tanta gente sem casa nos grandes espaços urbanos que gerou, até, a nova designação de “sem-abrigo”, mas registe-se para que se compreenda o valor que a “casa” pode assumir no imaginário social.