• Nenhum resultado encontrado

A Problemática do espaço e da sua apropriação

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2019

Share "A Problemática do espaço e da sua apropriação"

Copied!
611
0
0

Texto

(1)

Introdução

Percurso pessoal do Investigador

Uma tese de doutoramento é, tradicionalmente, o corolário de um relativamente longo período de investigação que culmina a formação científica do doutorando e está indissoluvelmente ligada, seja qual for a problemática, ao «quadro teórico em que se inscreve o percurso pessoal do investigador» (Quivy & Campenhoudt, 1992: 103), diz um manual de grande circulação. Registe-se que a nossa formação básica, tanto a Licenciatura em Estudos Portugueses – em que coube não só o estudo da Língua, Linguística e História, como a Literatura e a Cultura portuguesas, como o Mestrado, particularmente, denominado Culturas Regionais Portuguesas – promoveram um campo de formação interdisciplinar e de abertura aos processos de compreensão do sistema-mundo em que se enquadram as Ciências Sociais e promoveram uma inequívoca prática de investigação interdisciplinar. A dissertação de mestrado, subordinada ao título: Da vida social em Elvas: as instituições de sociabilidade na viragem do século XIX para o século XX, correspondeu a uma problemática e a uma metodologia próprias do campo antropológico e consolidou a prática interdisciplinar.

No entanto, as Ciências Sociais têm vivido de costas voltadas umas para as outras, sempre com escassas excepções, tentando distinguir claramente os campos de investigação, o que nem sempre é fácil: «cada disciplina ou especialidade tende aí, com efeito, a preocupar-se com firmar fronteiras, tão nítidas quanto possível, face a disciplinas mais antigas, influentes e consagradas» e a consequência disto é a «fragmentação artificial das Ciências Sociais».1 O nosso projecto tenta contrariar esta tendência dando uma conclusão à formação interdisciplinar de base e avançando “com possibilidades de desdobramentos práticos diversificados” sujeitos “a critérios de validação” (Pontos Programáticos, CRIA, 2012), nomeadamente no campo da avaliação

1 J. Ferreira de Almeida e J. Madureira Pinto (1986: 60), e concluem: «Nem sempre, aliás, serão positivos os efeitos de um tal trabalho de demarcação, já que ele pode conduzir, e até certo ponto tem conduzido, à fragmentação artificial das ciências sociais, à indesejável feudalização, poucas vezes compensada pela busca de complementaridades e de recíprocas fertilizações que a pluri e a interdisciplinaridade propõem».

1

(2)

da satisfação residencial e do Planeamento urbano enquadrados na Antropologia das

Cidades e do Espaço.

Numa perspectiva de raiz antropológica, «o espírito de cooperação, diálogo interdisciplinar e mesmo, em alguns casos, transdisciplinaridade que se viveu na década de 80 parece ter sido abandonado.» E foi-o em nome do “corporativismo disciplinar”, a referida delimitação de territórios serve os membros incrustados nas instituições, mas não serve as disciplinas, escreve Pina Cabral (1998: 1082). Muitos afirmam que a Antropologia só agora começa a estudar as sociedades complexas e urbanas, mas já desde os anos 50 que isso acontece: «Depois de meio século de estudos continuados sobre meios urbanos, a Antropologia não terá nada a dizer sobre planeamento urbano?» (ibidem) Esta tese responde a esta pergunta.

***

Quando, em 1998, pela nossa observação empírica, fomos surpreendidos pelo comportamento altamente civilizado e moderno das pessoas – de todos os extractos sociais – no recinto construído da Exposição Mundial (Expo’98), em Lisboa, fomos levados a interrogar a influência do espaço construído no comportamento das pessoas. Nem a Teoria da Arquitectura, nem tão pouco as Ciências Sociais explicavam porque os indivíduos não tinham o mesmo comportamento que nos grandes ajuntamentos de população – Festas dos Santos Populares, grandes concertos de música, ou grandes eventos desportivos, estádios de Futebol, etc. – onde além de pouco polido, o comportamento chega a ser agressivo, ou no mínimo, altamente competitivo. Foi esta interrogação – pode o espaço construído influenciar de algum modo o comportamento social dos indivíduos – que foi o ponto de partida, a pergunta de partida, da nossa investigação. Tentámos encontrar e construir um corpus teórico que desse respostas à nossa pergunta de partida.

A Problemática do espaço e da sua apropriação

A Problemática do espaço e sua apropriação está há muito presente em muitas áreas de investigação. Veja-se a noção central, para os estudos históricos, de complexo histórico-geográfico: «complexo para dar a ideia da multiplicidade de componentes e

(3)

factores que o constituem, histórico porque situado nos tempos que os homens vivem,

e geográfico porque ocupando uma mancha espacial que não é mera representação cartográfica, mas sim uma realidade multiforme de geografia física e humana.» Esta é uma perspectiva, na nossa óptica, essencial para trabalhar o espaço, mas demasiado abrangente – citamos o texto fulcral Noções operatórias na abordagem global das sociedades de Magalhães Godinho (1974: 171). No campo da Geografia Humana, a malha analítica é mais densa, Orlando Ribeiro2 foi pioneiro e é de referir Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico (1941, 1962 e 1967), onde as questões dos tipos de construção, materiais, habitats e estilos de vida das populações são abordadas e abriram caminhos para a Antropologia operar.

Nos anos oitenta a Sociologia Rural contemporânea portuguesa (Afonso de Barros, José Madureira Pinto e Aida Valadas de Lima destacam-se) começa a registar nos seus estudos uma nova realidade espacial em transmutação permanente: «parecem remotos os tempos em que a cidade e o campo eram visualizados em perspectiva dicotómica e as relações entre ambos eram consideradas em termos de oposição.» (Barros, 1990: 43) Na realidade, o processo de aculturação tinha sido, em Portugal, nos últimos vinte anos (1960-1980), extremamente violento. Esta descaracterização, este brutal processo de aculturação que mudou a face da terra, nas palavras de Teotónio Pereira (1988), é que gerou a sociedade complexa que temos hoje, o estudo de qualquer pequena parcela da nossa realidade actual, terá sempre de passar pela compreensão deste processo que criou um novo paradigma de articulação / integração espacial: o espaço integrado, pluriactivo e multifuncional (Afonso de Barros), isto é, o espaço camponês tradicional transformou-se num novo espaço continúo – urbano-rural – onde se articula o espaço urbano/industrial/serviços, que se vai deslocando do litoral para o interior, em agricultura de pluri-actividade, em que um

2 Sobre este autor escreve Pina Cabral (PC): «As categorias de identidade podem ser criadas, podem ser

apropriadas por determinados grupos, podem receber uma vida nova por razões que não são necessariamente as mesmas que estiveram na sua origem e podem ser destruídas». (1991a: 97) Discute-se a não correspondência de um Estado Nação, forçosamente, mesmo com fronteiras delimitadas há muitos anos, com uma área cultural. Aquilo «a que Orlando Ribeiro denomina “as unidades sentimentais”», PC considera que estas unidades serão sempre “conceptuais” e nunca “territórios” (ibidem), em Portugal há várias regiões e mesmo que um investigador as não considere qualquer entrevistado autóctone da Malagueira se dirá “alentejano”. O autor remete para o estudo no Noroeste português onde considera que as casas são outra escala a considerar das unidades sociogeográficas (ibidem: 101). Voltaremos ao tema.

3

(4)

ou mais elementos da família rural trabalham fora da exploração rural familiar. Este

continuum claramente observável no litoral é designado, nos dias de hoje, pelos urbanistas, como conurbação.

Este fenómeno da pluriactividade desintegrou o espaço social e cultural de vizinhança que caracterizava os papéis sociais, os estatutos e as relações das sociedades tradicionais, procedendo à feminização e envelhecimento da força de trabalho nos campos e ao fim da entreajuda espontânea, instalando-se o princípio do isolamento da unidade familiar e de uma entreajuda calculada. As sociedades de interconhecimento e coesão, em que as leis da tradição eram enculturadas pela socialização, vão ser substituídas, uma vez em contacto com a indústria e com o espaço urbanizado, pela competência simbólica em que os agentes revêem os seus papéis sociais (na comunidade rural, bem como na comunidade industrial/serviços) criando novos valores e novas relações reconstruindo simbolicamente todo o espaço social. No nosso trabalho de campo os entrevistados provinham em grande parte dos campos envolventes a Évora e do Alentejo, e esse facto era expresso de diversas formas.

Preocupados com uma aculturação do espaço arquitecturado não orientada e destruidora, os Arquitectos Portugueses, através da sua Associação, desenvolveram entre os anos 55 e 60 um Inquérito à Arquitectura Regional de que resultou uma série de Monografias sobre a Arquitectura Popular Portuguesa em todas as suas regiões, publicadas em três volumes.3

Um trabalho sistemático sobre todas as regiões do país.

Registavam: quando nos anos 60 «ventos eufóricos de mudança e de progresso, dominados por uma lógica individualista e desordenada, varreram a terra portuguesa, num afã de apagar as marcas de um passado que era preciso sepultar para sempre. A ignorância e uma noção deturpada dos valores patrimoniais, vigentes na época - ambas cultivadas pelo Salazarismo - deram livre curso à descaracterização e à destruição de um espaço edificado [e] longamente sedimentado no seio de sociedades estáticas e fechadas». (Teotónio Pereira, 1988)

3 Outro trabalho de fôlego sobre a habitação/habitat no espaço continental foi dirigido pelos

engenheiros do Instituto Superior de Agronomia (ISA) – Inquérito à Habitação Rural – «a habitação rural é encarada no Inquérito a partir da área disciplinar da economia agrária, tal como esta era praticada nos anos de 1930 e 1940» (Leal, 2000: 150). O que descrevem é a insalubridade das casas e a miséria da população, este estudo publicado em dois Volumes pela Universidade Técnica de Lisboa, em 1943 e 1947, é geralmente pouco estudado, se exceptuarmos o texto de João Leal referido. Para Leal foi este estudo que começou a problematizar nos anos 40 a ficcionada “casa portuguesa”.

4

(5)

Na realidade todas as formas de cultura tradicional foram atingidas. Estes

estudos que citamos são uma abordagem importante que enquadra o nosso trabalho, baliza-o. A Malagueira é, em larga medida, uma resposta planificada de passagem das sociedades fechadas das aldeias-vilas portuguesas ao mundo contemporâneo da vida urbana quotidiana da cidade de Évora.

A Etnografia portuguesa também se ocupou do tema da arquitectura e sua apropriação, mas sistematização só a vamos encontrar em 1969, em Construções Primitivas em Portugal de Ernesto Veiga de Oliveira, Fernando Galhano e Benjamim Pereira. É feita uma prévia distinção entre “abrigos” e “construções” «os primeiros são construções sumárias e normalmente muito exíguas, de habitação temporária ou mesmo ocasional, em certos casos móveis», “construções primitivas” eram: «edificações fixas e para habitação ou utilização permanente ou normal, obedecendo a sistemas de construção bem definidos com nítida diferenciação tipológica ou regional.» (1994: 4) Os autores criam uma tipologia regional, fortemente ilustrada, e com um registo descritivo elucidativo no que diz respeito às plantas das construções (circular vs. quadrangular), tipos e formas de telhados (cónicos, em falsa cúpula, etc.), materiais utilizados (vegetal vs. pedra, ou compósitos), técnicas de construção, etc.

Ainda de Veiga de Oliveira e Fernando Galhano foi publicada recentemente uma compilação dos seus trabalhos (entre 1947 e 1986) na área da arquitectura regional, é inevitável a analogia com o trabalho do Sindicato dos Arquitectos – o

Inquérito (1961), como regista João Leal – esta «é a mais completa investigação etnográfica e antropológica sobre o tema em Portugal», os autores pretendiam proceder a uma “cartografia da arquitectura tradicional” (2000: 201 e 203). Dizem os autores: «a casa rural é mesmo concebida não apenas como um abrigo, mas sobretudo como um verdadeiro instrumento agrícola que é preciso adaptar às necessidades de exploração da terra (...) ou seja: segundo a sua função agrícola, expressão do ambiente natural.» Em síntese «a casa é acima de tudo um produto do Homem, um facto de cultura, e será no próprio Homem e nas leis da sua criação cultural que se devem procurar a razão de ser e a explicação decisivas da casa que é a sua obra» (ibidem: 13), concluem.

(6)

A Problemática do Espaço foi submetida a novo impulso direccional, em 1991,

com a publicação de Lugares de Aqui, Actas do Seminário “Terrenos Portugueses”

apresentou-se como tema de trabalho a uma série de Antropólogos: o lugar - «um lugar também nos oferece dimensões bem mais difusas e filtradas de apropriação e definição social». É opinião dos seus organizadores, Brian O’ Neill e Pais de Brito, que «um olhar atento focado sobre as inter-relações entre as unidades de espaço e as formas de apropriação social desse espaço pode tornar-se especialmente frutífero.» (ibidem: 15)

Pretendia-se investigar «a complexidade da definição e apropriação social do espaço, e da estruturação divergente das unidades-base que formam esse espaço» (ibidem: 14), a que nos associamos, estudando, não só, o bairro, a aldeia, ou a cidade, mas, sobretudo as suas unidades mínimas de produção e significação, depois dos arquétipos muro e cobertura que geram todas as formas construídas, as construções na sua pluralidade: todo o tipo de edifícios: a casa, a igreja, a loja, os edifícios da comunidade, sejam de assistência ou de lazer, bem como as suas unidades mínimas: a cozinha, o quarto, a sala, a escada, o telhado, a porta, a janela, a empena, o saguão, o pátio. São partes integrantes da realidade quotidiana da população habitante do nosso estudo na sua apropriação do espaço privado e público.

Cultural Studies e Amos Rapoport

Recorremos finalmente, na primeira fase de embasamento, aos Cultural Studies, na sequência da Geografia Cultural, pareceu-nos a mais apta ferramenta para entender a casa tradicional e/ou urbana e as suas problemáticas. David Ley explica que: «the folk house presents a synthesis of pre-modern geography, a right regional integration of local materials and local traditions in the context of a local physical environment. The connections between culture and environment are writ large in the visible texture of built form.» (Ley, 1993: 128) E conclui, que a casa tradicional tem sido um dos traços fundamentais para caracterizar a difusão cultural entre povos. Mas, na sua opinião, têm de ser vencidas duas fundamentais omissões desta disciplina: a primeira é não se preocupar com quem constrói: «the man, women and children who were the builders of the structures do not appear in the accounts.» Depois, as relações

(7)

sociais são obliteradas: «the social relations implicated in the creation of spacial form

have not been included in the research agenda. (...) The discription and classification of house forms has been an end in themselves which has not required a questioning posture towards social processes.» (ibidem: 128-129)

David Ley analisou e tentou compreender, também, o sentido cooperativo da habitação social em Vancouver, nos anos 80, utilizando uma metodologia empírica de grande rigor descritivo, mas que era impossível de sistematizar noutros territórios, com outros tipos de construção, para posterior conceptualização:

«the diversity of design elements and materials, colour and the postmodern strategy of façade articulation, with recesses, projections, gables and, in one instance, a double wall providing ‘protection’ from a major thoroughfare. Equally important was the issue of scale. (...) The separation of automobiles from pedestrian circulation contributed further to the human scale of the built environment. (...) other symbolism was resolutely domestic, with such elements as porches, gables, chimneys and picket fences providing the textual discourse of ‘home’. At least one building had chimneys, but no fireplaces, in order to consolidate the domestic symbolism.» (ibidem: 139-140-142)

Vamos encontrar na nossa investigação todos estes itens da narratividade doméstica: as chaminés, as lareiras, etc., mas um espaço urbano significativamente diferente.

Igualmente essencial, num segundo momento do embasamento, foi o trabalho de Amos Rapoport que desde 1969, com The house form and Culture, desenvolveu uma investigação sobre as relações entre o espaço construído e os comportamentos humanos. Investigação que conhece o seu corolário com as suas propostas de leitura dos espaços construídos como settings: lugares que definem a “situação” de uso, as regras adequadas e os comportamentos aceitáveis para nele participar através de chaves inscritas no lugar: the situation, the rules, and the ongoing and appropriate behaviour are communicated by cues in the setting.4

4 Amos RAPOPORT (1997: 9-20). Fazendo uma síntese dos seus ensinamentos diremos que os espaços são construídos para sustentar “actividades” e tipos de vida (as formas são desenhadas pelas actividades). As actividades são expressões de cultura e a sua hermenêutica passa por interpretar: 1. a actividade ela mesma; 2. como é realizada; 3. como é articulada com outras (em sistema); 4. o significado da actividade (para todos os grupos nela envolvidos). A realização da actividade tem como variáveis a serem especificadas, passo a passo: 1. os sistemas específicos de actividades; 2. a ordem das sequências da actividade; 3. a natureza (significado/significante) das sequências; 4. como se articulam entre si ou são isoladas entre si; 5. quem é envolvido ou participa ou é excluído na sequência; 6. onde

7

(8)

Com Rapoport (1969), a matriz vernácula das construções humanas passou a

fazer parte da agenda da teoria da Arquitectura para análise dos edifícios da tradição erudita tanto quanto da popular, o edifício deixou de ser uma gramática interna do espaço para passar a ser integrado num sistema mais vasto que o integrava – o sistema sociocultural, influenciado sobretudo pelo ambiente natural e material da região e pela tecnologia disponível na época.

Nos dias de hoje, a ideia de que um edifício não pode estar desintegrado da “paisagem cultural” que o envolve (cultural landscape é um conceito desenvolvido por Rapoport e pelos Cultural Studies [Mike Crang, Peter Jackson, etc…]) instalou-se no ensino das Faculdades de Arquitectura, mas teve o seu despertar no texto que citamos e nos anos seguintes desenvolveu-se definindo conceitos e métodos do que é hoje a base dos Environmental Behaviour Studies. Rapoport introduziu a noção de que o usuário da casa deve ser o centro da avaliação da satisfação residencial de uma casa, obrigando o arquitecto a conhecer as coordenadas socioculturais das populações que quer servir. Interrogou a qualidade residencial (environmental quality) e criou as categorias a partir das quais a mesma devia ser avaliada (Ekistics, 1973).

Ao paradigma da Arquitectura: form follows function, Rapoport acrescentou um outro paradigma antropológico: function follows activitties. Todo o edifício serve uma função e essa função é determinada pelas actividades das pessoas que o usam. A casa/edifício é um sistema organizado que pretende servir determinada população com determinados estilos de vida (life style) que são objectivamente reflectidos em determinadas actividades. Registo que esta era a perspectiva de Veiga de Oliveira e de Fernando Galhano. Para saber da sua validade funcional há que analisar os sistemas de actividades que lá se processam e se estão em consonância com o espaço desenhado/construído (1990, 1997, 2000…). Este é o processo de analisar objectivamente a satisfação residencial de uma dada população num dado espaço construído, sabendo se o espaço facilita ou dificulta as suas actividades.

Sabemos também por Rapoport que este sistema de actividades está organizado em sistemas de “settings” (áreas culturais onde se inscrevem as pessoas, os

ocorrem; 7. quando ocorrem. Tudo em sistema. Resumindo no que toca a actividades, há que saber: quem faz? o quê? onde? quando? quem é envolvido e/ou excluído? e porquê?

8

(9)

objectos, os edifícios e os equipamentos e onde as relações sociais têm lugar) (1990,

1997, 2000…) – como no Bairro que estudamos, analisá-lo passa por compreender estes sistemas, se são congruentes ou não, e como se articulam entre si estas relações entre casas, ruas, objectos e práticas sociais. É sabido que, tradicionalmente, para os usuários de bairros sociais, entre o que eles desejam (want) e o que eles precisam (need) nem sempre há congruência – porque para estes grupos sociais a “imagem” é mais importante do que os aspectos materiais e económicos do habitat (1973).

Desmantelando as noções de cultura, paisagem, habitat, habitação, etc., foram sucessivamente construídos, por Rapoport, uma série de conceitos operacionais que tornavam o estudo da casa (que é “mais do que um lugar onde se vive”, ibid.) e do modo de habitar uma actividade científica com objecto e métodos rigorosos. Depois de cruzar a teoria da arquitectura com a Antropologia, fá-lo com a Etologia (1973) para definir: limite ou espaço do “lar” (home range), áreas fulcrais do lar e residenciais (core areas), território, jurisdição e distância interpessoal (personal distance). Especifica os conceitos de privacidade, que envolvem a “densidade” da habitação e a densidade residencial e a noção de excesso de residentes (crowding) (1975) – essenciais para a avaliação pelos usuários da sua própria casa.

Mas foi com a noção de personalização do habitat/casa que definiu (criando um sistema operacional) a estratégia e metodologia da investigação sobre a qualidade residencial. A personalização é a tomada de posse sobre o espaço – apropriação. Como nas sociedades contemporâneas as casas são compradas e/ou arrendadas já estruturadas espacialmente, resta ao usuário através do mobiliário e decoração construir o seu próprio espaço – definindo-o pelos objectos e sua relação com eles. Assim, Rapoport estrutura o espaço da habitação/residência em elementos fixos, semi-fixos e não-semi-fixos (arquitectura; mobiliário e objectos; e comportamentos e sistemas de actividades) (1982, 1990…).

Foi após o contacto com a sua obra e com o próprio Amos Rapoport – que acompanhou o nosso trabalho de investigação ao longo de oito anos (2000-2008) – que sentimos necessidade de definir o objecto de estudo, foi o que fizemos, dando início a um trabalho de campo exploratório no Bairro da Malagueira em Évora.

(10)

O objecto de estudo – Siza Vieira: Quinta da Malagueira / Évora

Eleger um objecto específico de estudo – delimitar o campo da investigação – foi uma tarefa que nos propusemos, escolhendo o Bairro da Malagueira em Évora, de Álvaro Siza Vieira, trata-se de uma obra de grande alcance arquitectónico, social e político: a construção de um bairro de habitação social nasceu da experiência do SAAL, a seguir ao 25 de Abril. Projecto que tentou confrontar-se e resolver os problemas de habitação social neste país.5 A Malagueira foi uma consequência do SAAL, mas ultrapassou-o largamente.

O Bairro da Malagueira oferece a possibilidade de estudar de um ponto de vista macro e micro social, porque se ocupa um espaço de 27 hectares e 1.200 habitações, os grupos sociais que ocupam hoje as casas são de diversa proveniência espacial e de distintos grupos sociais: desde vendedores ambulantes (tendeiros) até professores universitários. Registe-se ainda a presença de algumas famílias de portugueses ciganos.6 O projecto urbano do bairro foi altamente premiado no estrangeiro – Prince of Wales Prize in Urban Design, 1988, pela Harvard University Graduate School of Design, os Quaderns (1983) e muitas outras revistas da especialidade dedicaram-lhe dossiers extensos. Do nosso ponto de vista, a sua mais interessante característica – para além de ser um habitat flexível, são casas evolutivas, portanto adaptável ao uso dos residentes7 – provém do facto de ser uma consequência (embora indirecta) das acções SAAL e ter sido negociado com as populações. Estes factores oferecem a oportunidade de efectuar um estudo de caso de um processo de arquitectura e design urbano contemporâneo, que, iniciando-se em 1977, ainda está por concluir, em confronto com as apropriações de uma população socialmente diversificada.

Fisicamente o Bairro da Malagueira confina com Évora. A Avenida que rasga ao meio a Malagueira é a continuação de um importante eixo viário que vem de dentro

5

Habitação social é uma designação que Álvaro Siza contesta, afirma: «A habitação é uma presença constante na cidade e é sempre social.» (2000:107)

6 Para delimitarmos em micro-cosmos, como a Antropologia adopta metodologicamente, basta

segmentar estas populações associadas a espaços concretos para obtermos essa pequenas amostras que são posterormente comparadas. Todo este tópico é desenvolvido à frente.

7 O que só por si é extremamente relevante por ser caso raro nas nossas edificações de carácter social,

na altura da sua construção nunca se tinha experimentado a este nível – 1.200 habitações – a casa evolutiva. Nós não possuímos sequer informação do uso da casa evolutiva, a qualquer escala, na habitação social em Portugal anterior à experiência da Malagueira.

10

(11)

da Cidade. O Bairro é composto por 1.200 habitações que se espraiam em 27 ha. São

1.200 famílias e foi planeado para 4.120 habitantes. Os fogos são moradias unifamiliares “duplex” – são casas-pátio muito comuns na região. Apresentam à partida 4 tipos distintos, variáveis pelo número de quartos e pela disposição da escada de acesso ao piso superior (José P. Duarte, 1999).8

A Malagueira nasceu da experiência do SAAL, um projecto que estava a ser discutido com uma Associação de Moradores, a seguir ao 25 de Abril (1975-1976), mas em consequência da tumultuosa situação política vivida no país – com a rápida extinção do SAAL após o 25 de Novembro de 1975 e os primeiros Governos ditos Constitucionais – acabou por ter uma outra orientação, embora a Associação de Moradores de S. Sebastião se tenha mantido como foco dinamizador na forma institucional de uma Cooperativa. Por parte da Câmara Municipal de Évora (CME) tratava-se de resolver particulares problemas: Em 1975, Évora tinha cerca de 40.000 habitantes, dos quais 2/3 habitavam fora das muralhas, distribuídos por 29 bairros “clandestinos”. Destes bairros, apenas 6 possuíam já um estudo urbanístico, 12 não tinham água, 17 não tinham esgotos e 24 não tinham arruamentos. (CME) Segundo outras fontes chegaram a ser registados 43 bairros ilegais – aglomerações de casas, algumas bastante numerosas – sem saneamento nem licenciamentos.9

O objectivo da Malagueira era, portanto, resolver problemas de falta de oferta de habitação – de qualidade e a preços acessíveis – e planificar as urbanizações para impedir os loteamentos clandestinos. Houve, no entanto, proveniências espaciais e sociais diferentes da comunidade que lá se instalou. Inicialmente foram os

8

Foi ainda criado um dique que originou um lago de grandes proporções. Nestes 27 ha os relvados são uma constante, os baldios coexistem, no entanto, e outras zonas arborizadas pontuam o espaço, igualmente com as ruas de cada lote de casas. Ruas em “calçada portuguesa” que são diferentes das ruas alcatroadas de acesso e circulação automóvel – estas ruas interiores foram no entanto “recuperadas” pelos usuários para estacionamento de veículos automóveis. Há 540 garagens destacadas dos fogos e alguns parques públicos de estacionamento. Há áreas de serviços, lojas e restauração, além de um grande supermercado – todo o espaço é cruzado por uma conduta aérea onde estão todas as infraestruturas, excepto os esgotos.

9 As populações que habitavam dentro da Cidade viviam em fogos superlotados, pois os mais jovens dificilmente abandonavam o lar paterno – as casas disponíveis tinham preços inflaccionados. O 25 de Abril e as suas consequências naquela região tinha produzido uma significativa migração e deslocação de populações para fora das suas aldeias de origem. Ainda consequência do 25 de Abril era a consolidação das Associações de Moradores em Cooperativas promotoras de habitação social. Foi para estes que a Malagueira foi pensada e desenhada – só mais tarde se instalaram populações carenciadas – as de etnia cigana e um grupo a quem os residentes chamam “tendeiros” – que são pequenos comerciantes ambulantes de rua.

11

(12)

cooperantes da Cooperativa Geraldo Sem Pavor e, no momento seguinte, da

Cooperativa Boa Vontade. O Fundo de Fomento de Habitação (depois IGAPHE) uma vez iniciado o processo, integrou-o e foi responsável por 418 fogos (de 1.200, lembramos) até que em Março de 2004 cedeu a custo zero à Câmara Municipal os fogos que entretanto geria e hoje são 200 os administrados pela edilidade através da HabÉvora. Nos fogos do IGAPHE estavam locados os residentes de etnia cigana e tendeiros, representando, no entanto, menos de 5% dessa população, ocupando uma parte reduzida destes 418 fogos primitivos, em áreas que acabaram por ser delimitadas, isto é, segregadas. A estes acresce o grupo de residentes (mais abastado) que licenciaram directamente os seus lotes com a CME tomando como seu encargo directo a construção das casas segundo o desenho mestre. Há ainda a considerar as áreas da Malagueira de residência antiga de construção popular que não foram demolidas, antes foram requalificadas e integradas no bairro, pelo saneamento, pelos acessos e serviços que são fornecidos a toda a população, é sem dúvida uma população muito heterogénea, nas palavras do Arq. Nuno Lopes, membro da equipa de Siza Vieira, a Malagueira é bem o espelho da sociedade portuguesa – o país em miniatura, o retratozinho. A esta equipa deve ser acrescentado o senhor Bandeira, desenhador, um elemento fundamental ao desenvolvimento do bairro pelo conhecimento profundo que tinha do projecto e pelo apoio permanente que oferecia à CME, em 1987 junta-se à equipa de Siza Vieira um jovem arquitecto paisagista formado pela Universidade de Évora – João Gomes da Silva, com quem passam a ser desenhados “em conjunto” os espaços verdes. São impossíveis de referenciar as dezenas de arquitectos estrangeiros que acompanharam in loco o desenvolvimento dos trabalhos, com estadas mais curtas ou mais longas.

Se tinha elegido um objecto optimum para o meu estudo/investigação, e se tinha um objectivo: fazer a avaliação pós-ocupacional do bairro de uma perspectiva antropológica, não tinha ainda uma metodologia para abordar o bairro, quer conceptualmente quer uma orientação para os indicadores a observar no campo, como é que os ia trabalhar no terreno?

(13)

As múltiplas perspectivas de análise do espaço doméstico

Foi com estes materiais que foi delimitado o objecto de estudo, mas a abordagem no terreno e a perspectiva de análise só foi construída sob a orientação de José Gabriel Pereira Bastos. Através da Antropologia Estrutural–Dinâmica perspectivam-se as relações sociais à volta da casa na sua apropriação-personalização como um processo de construção identitária. A Antropologia Estrutural-Dinâmica possui um padrão integrativo: assumindo uma dimensão cognitivo-emocional e psico-sociológica – central nos processos de construção identitária à volta da casa. Seguimos ainda, mais especificamente, os estudos antropológicos contemporâneos do espaço/habitat de Mary Douglas, Janet Carsten & Stephen Hugh-Jones, Preston Blier, e Daniel Miller, entre outros.

A FEANTSA (European Federation of National Organisations Working with Homeless People) criou o Programa Catch (2006) para, em partenariado com os diversos países europeus combaterem a exclusão social, particularmente o fenómeno dos sem-abrigo. Criou para isso um léxico comum europeu – a European Typology on Homelessness and Housing Exclusion (ETHOS), portanto, para poder construir o conceito “homeless” definiu “home”:

«In order to define homelessness in an operational way, FEANTSA has identified three domains which constitute a home, the absence of which can be taken to delineate homelessness. Having a home can be understood as having a decent dwelling (or space) adequate to meet the needs of the person and her/his family (physical domain), being able to maintain privacy and enjoy social relations (social domain) and having exclusive possession, security of occupation and legal title (legal domain).» (2006: 6)

O nosso estudo investiga o espaço doméstico como “home”. Este conceito foi adoptado como “key finding” por uma comunidade alargada de especialistas e investigadores, e nós assumimos como nosso. Este home, casa-espaço doméstico, é um espaço habitado, apropriado por uma família que pode assumir muitas formas.

Estamos de volta ao grupo familiar sem perder de vista a casa-home, unifiquemo-los então: home is an embryonic community diz Mary Douglas:

«”Where is your home?” It is always a localizable idea. Home is located in space, but it is not necessarily a fixed space. It does not need bricks and mortar; it can be a wagon, a caravan, a boat, or a tent. It need not be a large space, but space there must be, for

home starts by bringing some space under control. Having shelter is not having a

(14)

home, nor is having a house, nor is home the same as household. (…) So a home is not only a space, it also has some structure in time, and because it is for people who are living in that time and space, it has aesthetic and moral dimensions.» (1991: 289)

A autora sustenta que a casa reprime para educar: «This is the point at which biological pressures to provide for the care of the young have to be invoked.» (ibidem: 306) A casa é um espaço em que os mais novos e os mais velhos são particularmente defendidos, o uso da casa de banho é feito a horas certas para preservar precisamente esses mais frágeis da exposição e para manter a sua privacidade. O uso da dispensa também é severamente vigiado por todo o grupo doméstico, não se dê o caso de numa altura de necessidade urgente faltarem as provisões. Por outro lado apresenta uma leitura “maternal” do processo doméstico:

«This home emerges as the result of individual strategies of control defended respectively in the name of the home as a public good. Ideally the mother operates the system, so does the father, and so, undoubtedly, do the children. It is extremely coercive, but the coercion is anonymous, the control is generalized. The pattern of rules continually reforms itself, becomes more comprehensive and restrictive, and continually suffers breaches, fission, loss at the fringes. (ibidem: 306)

Mary Douglas situava-se num campo urbano, mas a Antropologia só recentemente chegou às cidades, regressemos a Claude Lévi-Strauss que foi o primeiro a estudar sistematicamente o problema do habitat, fá-lo pela primeira vez em Tristes

Trópicos (1955) a partir daí não mais abandonou a questão. Dando-lhe várias

perspectivas ao longo do seu trabalho. Carsten e Hugh-Jones (1995) ao referir as “house societies” dizem que são um contributo importante de Lévi-Strauss, não tanto por propor uma nova abordagem no estudo do parentesco, como por abrir «a more holistic anthropology of architecture which might take its theoretical place alongside the anthropology of the body.» Para os autores isto representa “an alternative language of the house” que a centra de novo nos seus factores próprios (e menos nos aspectos económicos e de parentesco, onde a casa andava perdida): «Seeing houses “in the round” enables us to focus on the links between their architectural, social and symbolic significance.» Uma abordagem desta natureza permite explorar «the potential but often neglected significance of architecture in anthropological analysis.» (1995: 2) Assim a arquitectura do espaço doméstico entra na agenda antropológica.

(15)

Mas o que nos diz de tão especial Lévi-Strauss (1992) no seu artigo mais

referido pelo actuais investigadores da casa – “Maison” –, em síntese:

«Par rapport au clan ou au lignage, la maison possède donc des caractères distinctifs qu’on peut énumérer comme suit. La maison est 1) une personne morale, 2) détentrice d’un domaine 3) composé à la fois de biens matériels et immatériels, et qui 4) se perpétue par la transmission de son nom, de sa fortune et de ses titres en ligne réelle ou fictive, 5) ténue pour légitime à la condition que cette continuité puisse se traduire dans le langage de la parenté ou de l’alliance, ou 6) le plus souvent les deux ensemble.» (1992: 435)

As “sociedades de casa” refazem, para Carsten e Hugh-Jones, os conceitos de descendência, herança, aliança, linha agnática, linha uterina, endogamia, exogamia e toda a teoria geral do parentesco. Assumindo que a casa, e a sua continuidade, se sobrepõem (politicamente) a todos os outros princípios e regras sociais: «the house as a grouping endures through time» (1995: 7). Inspirado nas casas nobres da Idade Média europeia que segundo Lévi-Strauss têm como função a fusão de categorias: «The house thus gives an appearance of unity to opposing principles made equivalent to each other.» (ibidem: 8) Assim as casas transformam-se num híbrido: «transitional form between kin-based and class-based social orders» (ibidem: 10). Este é um salto qualitativo na abordagem tradicional do vernáculo. Libertando a casa quer das categorias que serviam meramente os estudos de parentesco, quer a sua abordagem mais materialista nos traços tipo “picket fences and barnes” já criticada pelos Cultural Studies e que servia para criar mapas culturais e zonas de influência. A casa assume uma identidade que cruza os bens materiais, que são tanto a sua estrutura ou elementos decorativos, como bens imateriais – da tradição, por exemplo – ultrapassando a estrutura de parentesco e a classe social sem omitir qualquer das duas. Estas perspectivas são reutilizadas por Pina Cabral, mesmo quando não o refere.

Pierre Bourdieu estudará a casa Cabila de uma perspectiva integrada no universo simbólico cultural daquela população naquela área geográfica – o Norte de África. Toda a casa Cabila é uma metáfora do Mundo, sustenta no essencial (1963/4-1969, 2002). Este texto é tão divulgado e citado que nos dispensamos de o rever.

Suzanne Preston Blier (1987) faz um estudo de cruzamento entre a Arquitectura e a Antropologia no Togo. Na arquitectura do Togo, o antropomorfismo é considerado como um “universal” da arquitectura (ibidem:118), sendo as associações

(16)

entre o homem e a casa e as suas práticas quotidianas uma evidência: «Daily and ritual action connected with the house reinforces its human identity.» (ibidem:124, o

bold é nosso), que é levada à total identidade entre quem a habita e a própria casa: «the Batammaliba image of the human is thus conceptualized in the house.» E conclui: «Human identity, however, is viewed by the Batammaliba as comprising not only a physical or corporal aspect, but also an essential psychological dimension (…) the soul (liyuani – literally “that which is hidden”) of humans and houses is said to be an invisible version of one’s self.» (ibidem:130-131, o bold é nosso) Há como que uma alma que simultaneamente representa o homem e a casa, tanto um homem como uma casa têm uma representação (“alma”) invisível. Esta alma da casa remete directamente para a alma contemporânea da casa estudada por Ekambi-Schmidt (1974).

No habitar das sociedades pré-industriais, diz a autora, o essencial a ser considerado é a transmissão cultural-material que uma casa regista. Nas actuais sociedades a permanente mobilidade leva-nos a questionar esta transmissão, por maior que seja a permanência numa casa (familiar), num bairro, num país. Certo é, no entanto, que continuamente estamos debaixo de tectos. Igualmente certo é o facto de uma casa conter dois registos: o formal (dos arquitectos, geo/demógrafos que segmentam o continúo espacial) – e o simbólico/afectivo que uma casa sempre representa, para o qual necessitamos de uma nova definição de habitar: «El ser sería entonces el lugar del habitar, y la casa un terreno que el hombre se apropria para manifestar su ser, una especie de “coto” de caza privado y netamente delimitado» (ibidem: 27).10

O que caracteriza essencialmente o habitar contemporâneo – urbano e burguês – é a necessidade de personalização: «el carácter más o menos original y personalizado de cada habitación, de cada hábitat surge de la combinación de algunos objectos “superfluos” con los elementos básicos». E quando dizemos “burguês” pensamos em todos os grupos sociais urbanos que vivem na Malagueira, porque a todos é comum

10 Este estudo do habitat a desenvolver terá como centro as actividades domésticas que tem como indicador – o corpo humano: porque «el cuerpo es el centro del “territorio” personal del ser humano, território móvil por esencia, y sabemos que la toma de consciencia del ser está íntimamente ligada a la del cuerpo.» (ibidem: 31)

16

(17)

«la idea de “personalización” que tengan los habitantes para la percepción de su

espaço vivencial (...) lo superfluo crea la personalidad, la originalidad, la variedad.» (ibidem: 53) E conclui-se:

«Nos limitaremos a retener esta idea de la personalidad autónoma de la casa y nos preguntaremos sino será una forma más de proyección del habitante sobre su entorno. Esto nos lleva a aceptar la idea de que la casa tiene un “alma”, y un alma perceptible. (...) el alma de la casa (...) es en realidad el resultado de una sutil apropiación del espacio por sus ocupantes quienes la impregnan con su ser, con su concepción de la vida, con su modo de habitar.» (ibidem: 22)

Finalmente, destacamos Daniel Miller com os estudos sobre o Consumo (dito expressivo). Estamos habituados a ver o consumo como a compra de bens essenciais para o nosso viver quotidiano, mas o conceito “consumir” pode ser alargado à utilização de meios e serviços. Miller propõe essa mesma abordagem aplicada a um Bairro Social e ao uso do “benefício” que dele fazem os que lá vivem – «people are consuming facilities which are provided by the state (…) These are not immediatly consumed but represent long-term changes over more than a decade. Yet, clearly, both the use and changing of theses kitchens could be regarded as consumption.» (Miller, 1997:14)

Por mais problematizações que se quisessem levantar à volta do conceito de “consumo expressivo”, como o próprio sugere,11 ficariam esclarecidas perante o conceito que o autor constrói de “apropriação”:

«Most households strive to make a “home” out of their flat – that is, to create something that they may relate to as specifically their own. This is a process that may take many years of gradual transformation. To describe this gradual making of one’s home, we can use the term “to appropriate”. The term suggests that tenants have to work to achieve this goal and do not feel at home simply by living in a property.» (1997: 14, o bold é nosso)

11

Miller sugere este “combate” à sua teoria do consumo, sobretudo para nós que pensamos em estruturas articuladas em processos dinâmicos o que é o caso da dinâmica produção-promoção-circulação-consumo(procura e oferta)-apropriação é difícil aceitar que o consumo se tornou a peça “mais importante” (ibidem: 26) deste processo. O autor sugere uma apropriação crítica da “apropriação”: «If you just passively “buy” the argument I am presenting to you, you may have difficulty obtaining a good degree. The aim is that you should take these ideas and indeed appropriate them, struggle with them, criticize them, apply your own experience to them and make out of your consumption of them something that becomes your active contribution, an argument which you can identify with as your own.» (ibidem)

17

(18)

Miller criará uma teoria (de belonging) que se vai instalando e consolidando em todos os estudos à volta da casa porque: «A theory of housing therefore has to be largely a theory of consumption.» (2001: 117) No bairro social que o autor estudou as casas ainda são atribuídas e, deste modo, não sendo proprietários, mas arrendatários de uma casa que a Câmara cedeu não se sentem disponíveis para fazer um investimento (como sabemos o maior investimento que um casal faz é no seu home-lar) e o único processo de personalizar, uma vez que não podem fazer alterações significativas na casa, em princípio, é mobilar a gosto: «If they are to develop their self conception as households and neighbourhoods it must be through some form of consumption as appropriation, thought their possibilities of accomplishing this task may well be coloured by their consumption status.» (ibidem)

O porquê de estudar as cozinhas? Porque no«Mass Observation study of 1941-2, kitchens were the key determinate of general housing satisfaction, and remarks to that effect are common from housewives today.» (p.119) O planeamento social do bairro é considerado falhado, sobretudo porque os usuários se sentem afastados das decisões, como meros espectadores, e sem qualquer controlo sobre o espaço e a envolvente. (ibidem: 120) O facto de não poderem comprar as casas era mais uma vez sentido como “estigma” de populações atiradas para os braços do assistencialismo e porque o sonho da “moradiazinha” se impôs a toda a sociedade, cruzando todos os grupos sociais e despromovendo ainda mais os “apartamentos” da Câmara. As similitudes com a Malagueira são bastantes.

Pina Cabral e a “casa” como Unidade Social Primária

Last but not least, Pina Cabral (PC) é a referência obrigatória nos estudos de

habitat (rural ou urbano), demonstra, ao longo de vários estudos, como a casa rural representa toda a mundividência camponesa (1984, 1987, 1991), só mais tarde estudará o espaço urbano. Pina Cabral introduziu três princípios no uso da casa (1991) – partindo do pressuposto que “a propriedade é um facto social”: 1. o da verticalidade dos poderes; 2. o da horizontalidade das legitimações sociais e 3. um uso projectado no futuro como herança. Pensamos que estes três níveis possam reproduzir-se de algum modo, ainda a investigar, nas sociedades urbanas. Pina Cabral (1987) propõe-se,

(19)

ainda, construir regiões culturais,12 nomeadamente a do Noroeste, a partir da

casa/habitat enunciando os padrões culturais omnipresentes em que se sustenta.

O conceito de Unidade Social Primária (USP) que PC criou é importante na nossa investigação (e em parte as áreas geo-culturais), é essencial a estrutura que esta USP significa em termos socioculturais de “ideais” e de práticas. Pina Cabral (1991) diz-nos que área cultural é um conceito-problema pois não tem em consideração a diferenciação socio-estrutural, e é pouco operativa como instrumento comparativo. A estratificação social nas cidades parece ser uma dificuldade acrescida a este conceito, no entanto, uma comparação é necessária para não atomizar os terrenos de estudo (1991: 82-83). PC discute as identidades e os seus níveis local, regional, nacional: «As categorias de identidade podem ser criadas, podem ser apropriadas por determinados grupos, podem receber uma vida nova por razões que não são necessariamente as mesmas que estiveram na sua origem e podem ser destruídas». (1991: 97) Em Portugal há várias regiões e mesmo que um investigador (etic) as não considere relevantes qualquer entrevistado autóctone (emic) da Malagueira se dirá “alentejano”. O autor refere o Noroeste português onde considera que as casas são outra escala a considerar das unidades sociogeográficas (ibidem: 101). No nosso trabalho as categorias emic são confrontadas com as etic.

PC defende a “regionalidade sociocultural”: «como uma área sociocultural dentro da qual se verifica uma particular continuidade cultural e institucional.» Não tem necessariamente fronteiras geográficas bem delimitadas, mas pode tê-las – «ao estudarmos populações tais como as radicadas no Noroeste português, a região será primordialmente uma área sociogeográfica.» (ibidem: 103) Embora, como é óbvio, se possa estender a regiões confinantes. E conclui: «a noção de região sociocultural é necessariamente relativa. Ela depende da perspectiva dentro da qual nos situamos.» (ibidem). Estas reflexões servem-nos a propósito do tema “Alentejo”, uma

12 Sobre “cultura” Pina Cabral acrescentará (2007: 207): «Contudo, os trunfos interpretativos que a antropologia acumulou mostram bem que não está em causa simplesmente abolir os conceitos de “sociedade” ou de “cultura” enquanto instrumentos heurísticos. A suposição de que existem “formas de vida” historicamente situadas que possuem uma relativa sistematicidade interna e que se diferenciam relativamente por relação a outras, continua a ser útil para a prática da antropologia (mesmo em contextos globalizados como aqueles em que actualmente vivemos, onde a separação entre culturas se revela cada vez mais difícil de determinar empiricamente». (O bold é nosso)

19

(20)

conceptualização incrustada na esmagadora maioria dos nossos informantes, mesmo

dos que não são nascidos naquela Região.

Chegámos à questão fundamental – a Unidade Social Primária (USP). A associação entre a família e a casa marca toda a história da Antropologia, diz Pina Cabral, os antropólogos oscilaram em olhar para o espaço habitacional (habitat) ora como residência ora como família (relevando o parentesco). Em Maine e Morgan a história social humana equivale essencialmente a passar das relações de parentesco, às relações de territorialidade (1991a: 113). «Em conclusão, proponho uma categoria puramente descritiva, a unidade social primária. Este conceito seria definido como o nível de identidade social que tem maiores implicações estruturais na integração social das pessoas e na apropriação social do mundo», por um lado, por outro «este será também o nível no qual os participantes reconhecem a integração primária entre a reprodução social e a reprodução humana.» (ibidem: 118) É aqui que se decide a relação social com os outros e se compreende a própria identidade de ego. Diríamos que aqui se produz a condensação entre o ego social e o ego individual e íntimo do actor social.

Há várias considerações a serem tomadas à volta da USP, primeiro há que distinguir parentesco de residência: «household é uma unidade residencial, enquanto que a família nuclear é um grupo de parentesco. (…) podemos sempre encontrar unidades residenciais que sejam maiores que a família nuclear», onde existam co-residentes (ibidem: 125). Ainda teremos de considerar a “casa corpórea”, isto é, o edifício. E para concluir a definição de USP é preciso considerar que dentro dela há «a preocupação com um acesso igualitário dos seus membros à subsistência. A unidade social primária é, portanto, caracterizada pelo consumo comum, para o qual deve existir um fundo comum de propriedade.» (ibidem: 127) Temos então que a “casa corpórea” integra em si três distintas realidades: 1. o sistema de parentesco (a família nuclear geralmente de filiação bilateral, com co-residentes, ou sem eles) 2. a residencial (as práticas quotidianas de vivência em comum e de apropriação do espaço) que erige a casa em símbolo de um grupo residencial (“simbolizada pela casa”); e 3. A subsistência comum, a comensalidade e as formas que ela reveste numa

(21)

economia doméstica que não é só consumo (mas onde este representa um importante

papel a vários níveis).

Com esta abordagem “in the round” dos habitats (Carsten e Hugh-Jones, 1995), PC ultrapassa as perspectivas reificantes e monolíticas das culturas introduzindo fracturas internas e processos dinâmicos. Pode, assim, «procurar a existência de protótipos socioculturais que funcionem como elementos agregadores da região vista como um “campo de diferenças”». (1991: 105) E as diferenças serão grandes entre os diversos grupos de status e socioprofissionais, etc. A casa assume diferentes significados dependendo de onde está implantada, rural, urbano, etc., etc. e é para Pina Cabral o protótipo sociocultural por excelência. Aquilo a que chama unidade social primária USP que deve ser integrada nos outros e com os outros protótipos (ibidem: 104-106). Concluirá noutro texto: «a casa rural não pode ser compreendida como um simples edifício: um objecto sujeito a troca, venda ou arrendamento. A casa é também uma entidade social por meio da qual se adquirem direitos sobre águas, hortas, árvores, acessos, espaços públicos, assim como outros direitos mais vagos, nomeadamente os de “cidadania de lugar”» (1991: 126).

Esta cidadania do lugar, nos dias de hoje, nas nossas cidades, é ainda mais vincada, e é tudo menos um “direito vago”. Nas cidades «as relações de parentesco na Europa são geralmente complementadas e estendidas por outro tipo de relações (…) “ligações pessoais chegam por vezes a exercer mais força que o próprio parentesco, e o mesmo se passa com vizinhos e amigos feitos no bar ou no café” (Lison-Tolona, 1983)». (1991a: 184) Em contraponto, os pais (de classe média) insistem na proximidade das casas dos filhos: «O resultado deste processo é que os irmãos tendem a residir perto uns dos outros, dando origem ao que chamarei vicinalidades (…) Em Portugal, pelo menos, estas vicinalidades são uma das formas mais características da vida familiar urbana.» (1991a: 185) Na Malagueira estas “vicinalidades”, dada a escala da cidade, são ainda mais próximas para as gerações que lá habitam há mais tempo, e/ou com mais idade.

Nos últimos anos (o texto é de 1991), as condições socioeconómicas da maioria da população decresceu e o sector imobiliário, com os seus preços inflacionados, não permite qualquer veleidade à maioria da população urbana. A isto acresce a alta taxa

(22)

anual de divórcios, e sempre em crescendo, de há muitos anos a esta parte. Portanto

as vicinalidades, redes sociais construídas a partir de uma parentela extensa a que se juntam os “amigos” e que acontecem, realmente, estão sempre sujeitas aos processos de reconstrução dos agregados domésticos que a dinâmica social contemporânea lhes impõe.

PC regista, referindo-se à burguesia do Porto, a tendência geral de incorporar o novo casal no mundo da família da mulher, só rompido quando a família do marido é de estatuto socioeconómico superior. Por fim, as redes de que PC fala criam um “estilo de vida” – «formam de facto, um grupo com tanta importância sócio-estrutural como a “aldeia” ou o “grupo de descendência local”». (1991a:189) O ideal que Pina Cabral atribui à burguesia portuense parece-nos aplicável a todo o espaço nacional urbano, a saber: que «a casa constituída por uma família conjugal neolocal seja um ideal nesta sociedade». (ibidem: 171) E caracteriza-o como um processo de fissiparação de reprodução tipo sincopado. Quem casa quer casa! Diríamos que é universal e se afirma em todos os lugares: «o que caracteriza as sociedades modernas das grandes metrópoles ocidentais não é o enfraquecimento dos laços dentro da família doméstica (casa, household) mas o enfraquecimento dos laços imediatamente mais abrangentes (a família alargada, a comunidade local).» (ibidem: 183 e155)

No Alto Minho rural «a unidade social elementar é a casa agrícola, a qual é, essencial, mas não exclusivamente, composta pelo casal e seus filhos. A casa retira a sua identidade de uma unidade de comensalidade, residência, gestão e propriedade», a sua ligação à terra é estreita e condição essencial de integração no mundo camponês (1984: 264). «Assim se passa entre a burguesia urbana e o campesinato do Alto Minho. (…) Os termos lar, casa, fogo e família são utilizados por ambos os grupos de status

para referir a unidade social elementar.» Mas há diferenças. «A preferência pelo termo família entre a burguesia urbana reflecte o facto de, para este grupo, a família nuclear ser a unidade social elementar.» Pais e filhos, exclusivamente. «Os camponeses, por outro lado, preferem o termo casa e este é definido diferentemente, uma vez que não é de forma alguma limitado à família nuclear.» (ibidem: 265) A casa, aqui, representa toda a mundividência rural que integra edifícios, pessoas (parentela próxima e distante

(23)

e até outros residentes não pertencentes ao grupo familiar), animais, a terra e os seus

instrumentos de trabalho.

Existe outra e determinante diferença actual entre a casa rural e urbana: «enquanto para a burguesia urbana, existe um corte entre o domínio da família e o domínio da economia, para os camponeses tal diferenciação não tem qualquer significado. Para eles, a casa não é apenas uma unidade de reprodução humana e de consumo, como a família burguesa, mas também de reprodução e de propriedade.» Mas, aqui o termo “reprodução” na esfera camponesa significa antes “produção”, no sentido literal de produção de bens – assumindo, assim, implicitamente, a casa rural como um instrumento de trabalho agrícola. E o autor conclui o seu raciocínio: «As esferas do económico e do familiar – da produção e da reprodução –, que no contexto da visão do mundo burguesa, chegam a ser apercebidas como antinómicas, são absolutamente indestrinçáveis para os camponeses.» (ibidem: 266) Não era assim no princípio da urbanização em massa do mundo rural, onde a casa dos artesãos correspondia ao seu domicílio e à sua oficina/atelier. «De facto, o que para o camponês minhoto distingue uma casa, como unidade social elementar, de um mero grupo de pessoas ligadas por relações de parentesco é a relação directa intensa e duradoura que a casa mantém com a terra.» (ibidem: 266-267)

Susana Matos Viegas estudou uma população – Os Tupinambá na Mata Atlântica do Sul da Bahia, deu um particular realce ao habitat. O primeiro acto de construção de uma “casa de sopapo” é a plantação de um pé-de-caju, outro de coco e finalmente uma roça de mandioca (2007: 78) – a ligação, casa pessoas, meio ecológico é total. A ligação entre o construído e as plantas do quintal é uma relação pessoal – não é suposto um quintal sobreviver ao seu dono, a herança não se põe, dir-se-á mais à frente que em contexto ameríndio o fazer sociedade não passa por «transmitir bens», mas antes «construir pessoas e fabricar corpos» (ibidem:101) e que se pode afirmar que a casa é a “unidade social primária”… Queremos mostrar com esta viagem ao Brasil que o conceito de PC pode ser usado em muitos e diversos contextos e problemáticas, como a identitária, além de realçar a importância da Natureza no construir da casa.

(24)

Sobre a construção e re-construção da identidade trabalhou Raminhos, dando

nova operacionalidade a esta USP, num terreno próximo física e culturalmente do nosso. Raminhos investigou, na Serra de Grândola, a reconstrução identitária da população em confronto com os recém chegados “alemões” – que promoveram, sem o desejar, uma mitificação de um passado socialmente construído pela população para se adscrever distinguindo-se dos “estrangeiros”. Estamos a falar de Fronteiras da Identidade, O “Outro” na Construção de Um Lugar na Serra de Grândola, de Manuela Raminhos: «apresenta-se uma descrição da estrutura social com base na posse da terra e mostra-se como os margaridos, através de um ancoramento no passado cujo eco se faz ouvir através da sua memória oral, constroem a sua identidade.» (2004: 17)

A ligação à terra como prática identitária deve ser das formas primordiais de identidade. Uma informante da autora refere que “aquilo era uma alegria”, mesmo quando não era ou era pouco… Esta informante trabalhou no monte do Tanganhal na sua juventude, em tempos muito difíceis. Uma outra refere que «não era falado com o lavrador mas nós sabíamos que tínhamos obrigação de trabalhar nas herdades deles, mesmo que pagassem menos. Por isso é que às vezes a gente mudava tanto de lugares. Estávamos sempre desassossegados, nunca assentávamos!» (ibidem: 52) Aqui «cada lugar, cada ponto no mapa encerra em si a experiência de vida do seu narrador» (ibidem: 39).

Os assalariados podiam viver nos montes, até em casas que tivessem construído, mas essas casas pertenciam aos lavradores como os montes. «Para os assalariados rurais os montes foram, para além de lugares de habitação, lugares de passagem. O seu grupo doméstico era constituído, na maioria dos casos, por uma família nuclear». Filhos que não precisavam de casar para saírem de casa dos seus pais, muitas vezes. «A terra esteve sempre na posse das mesmas famílias. Estes montes faziam, e continuam a fazer, parte integrante da “casa” do proprietário.» (ibidem: 60-61) «Para os assalariados rurais os “montes”, enquanto lugares de residência eram constituídos normalmente por um quarto e uma cozinha. As janelas eram escassas e, muitas vezes, a porta de entrada era a única abertura destas habitações sem soalho nem tecto forrado.» Delas diz uma informante, mostrando à evidência que a casa é em primeiro lugar o espaço simbólico-afectivo do qual restará sempre uma memória

(25)

afectiva da infância e do tempo nela passada. Sendo este facto um elemento

preponderante na escolha de futuras residências e nas opções que cada actor social sobre esse tema efectuar. Diz a informante de uma casa sem o mínimo de condições de conforto:

«”Ai mãe, quando a gente morou na casinha do seu pai era uma miséria franciscana, nem vizinhança havia.” À noite, na cozinha que não tinha forro, era um frio de rachar. (…) Eu fritava umas talhadinhas de toucinho, fazia uma chocolateirinha de café (…) A minha filha às vezes ainda me diz: “Ó mãe ainda tenho saudades!”. “Ó rapariga não digas isso! [risos] “Ó mãe aquilo sabia tudo tão bem”»… (ibidem: 61)

Não podemos deixar de referir esta memória simbólico-afectiva da informante, no entanto a realidade era bastante limitativa da liberdade de movimentos do assalariado: «o uso do monte do lavrador – era revelador por um lado, da participação do assalariado rural na “casa” agrícola e, por outro lado, da dependência que este tinha em relação ao seu patrão.» (ibidem) Eram quase servos da gleba, era impensável trabalharem para outra casa de lavoura. A autora desenvolve um extenso estudo das relações habitat-identidades que será utilizado comparativamente com o material dos nossos informantes. Além de que, aqui, a “casa” enquanto unidade económico-familiar envolvida pelo meio rural é o eixo, quase exclusivo, à volta do qual se processa a construção identitária dos actores sociais. Mas nas sociedades urbanas a construção identitária, porque não associa a residência à produção do sustento pessoal, é mais complexa. Unidade de produção e unidade residencial são distintas, por isso o processo identitário terá que ter outras âncoras que não as da “produção” da “casa”.

«A “casa” torna-se, em Santa Margarida da Serra, o centro da visão do mundo. (…) Em Santa Margarida da Serra a “casa” enquanto “unidade social primária” foi o lugar onde os mais novos, para além de aprenderem o valor do trabalho, assim como a sua implicação na esfera económica e familiar, aprenderam as relações que se deveriam estabelecer com as outras unidades sociais.» (ibidem: 105)

A tese fundamental dos autores da Unidade Social Primária – Susana M. Viegas, Manuela Raminhos ou do seu criador – Pina Cabral – é que a casa deve ser analisada em conjunto, integrativamente, o espaço material, os actores sociais que a habitam e as práticas quotidianas devem ter “the same analytical framework” como sugerem Janet Carsten e Stephen Hugh-Jones:

(26)

«The source of the symbolic power of the house does not reside in the house as isolated entity, but in the multiple connections between the house and the people it contains. This is vivid brought out by the fact that a house without people in it is not a proper house. In English we might say it is not a home». (1995: 44)

Nós não nos referimos como USP aos nossos fogos da Malagueira, mas esta visão integrativa é a que adoptamos.

Novas direcções da Antropologia Portuguesa Contemporânea e a Antropologia Estrutural Dinâmica

Entretanto a Antropologia portuguesa instalou-se nas cidades. Filomena Silvano e a Antropologia do Espaço compreenderam a fragmentação das sociedades contemporâneas, dos indivíduos e das suas representações (1994) e que o modo de espacialização contemporâneo engendra um espaço infinito, contínuo, homogéneo – os não-lugares (Augé) – porque são criados em planos de gabinete, que operam com o apoio de mapas, instrumento de homogeneização por excelência. Esta é uma crítica assumida igualmente por planeadores sociais e urbanistas. Ao contrário do espaço tradicional, cheio de fronteiras e símbolos, de História, que é necessário continuar a estudar pois a constituição de lugares é uma das modalidades das práticas colectivas e individuais, os grupos e os indivíduos singulares pensam a identidade a partir do lugar. Apesar de não haver, hoje, lugares isolados, nem os actores sociais serem imóveis; fazer da cultura um “lugar” implica cristalizar culturas “monolíticas e abstractas” num lugar “abstracto” e pretende ignorar que as pessoas e as culturas se movem, não são estáticas num tempo e num lugar, são dinâmicas. Por isso o antropólogo tem que se socorrer de novos conceitos como múltiplos lugares, rede, ou sistema de lugares (2000). O trabalho de Silvano será desenvolvido no Cap.1., e junto com as perspectivas de George Marcus orientarão em grande de medida o nosso posicionamento no terreno.

***

Em Portugal, o único estudo antropológico sobre os consumos – contextualizados no habitat, para (re-)construir a identidade de uma população em diáspora – que conhecemos, é de Marta Vilar Rosales (2008). Os processos de consumo transcendem o “espaço doméstico” e tendem a posicioná-lo «como um contexto fundamental para o entendimento dos relacionamentos entre “pessoas e

(27)

coisas”». Conclui-se que «as “culturas materiais” e as práticas de consumo no contexto

privado da casa são percepcionadas como um contributo particularmente relevante para a discussão das políticas de relacionamento e apropriação do “mundo material” realizadas pelos sujeitos.» (2008: 2) Destaque-se a centralidade da casa na análise a uma grande gama de processos que envolvem os actores sociais nos dias de hoje e que permite uma limitação desses consumos aos das práticas quotidianas, a que a casa sempre vem associada.

«Ou seja, possibilita direccionar a observação para as modalidades a partir das quais os sujeitos interagem, transformam e se apropriam das coisas presentes nas suas casas por forma a estabelecer um enquadramento para a estabilização e integração dos seus projectos quotidianos, para a expressão das suas aspirações e idealizações e para a materialização dos relacionamentos, sentimentos e memórias que marcam as suas experiências de vida.» (ibidem: 3)

E estas memórias não têm que ser, como é o caso, memórias de origem e migração, podem ser e são, em todos os actores sociais, memórias de infância e adolescência, ou de momentos que marcaram as suas vidas. O espaço doméstico como contexto de consumo é importante por 1. valorizar a selecção de uns consumos em desfavor de outros no que este processo tem de “apropriação” que os constituem como “sujeitos” e 2. cria identidade(s) e relacionamento(s) entre os actores sociais que são determinantes «para o entendimento dos relacionamentos, práticas e identidades dos elementos que as integram.» (ibidem : 84)

A casa, o espaço doméstico “tribal” ou “exótico”, foi sempre um objecto de estudo antropológico. Embora nem sempre do mesmo modo, ou como reflexo estrutural da organização social ou como palco de estudos de parentesco. É referido que a pouca visibilidade da casa nos estudos antropológicos dos últimos anos, conforme alguns autores admitem, se deve à sua “proximidade quotidiana” que assim a fez tornar-se transparente (p.87) e dar-se um invulgar protagonismo ao espaço público.

Hoje, a casa já não é mero cenário das práticas sociais, ela intervém, condicionando ou exponenciando as práticas no “contexto privado”, mas sabemos que ela está intimamente ligada às práticas, normas e valores “públicos”. Não será só em casa que as identidades e os poderes são negociados, mas é talvez o espaço

(28)

determinante, pelo menos, no sentido dos actores sociais ganharem forças, em

pequenas batalhas domésticas ou nas suas construções mítico-narrativas familiares, para a “guerra” identitária do espaço público, onde já não haverá “mães” nem “pais”, nem “avós”, nem ninguém do grupo familiar a proteger os mais jovens, por exemplo. Hoje, evidencia-se «a centralidade do espaço doméstico, enquanto entidade socialmente construída, fundamental ao entendimento de muitas das práticas que compõem e estruturam os quotidianos». (ibidem: 87) Uma última perspectiva que queremos relevar: «o conceito de casa “enquanto processo” surgiu da necessidade de discutir o seu entendimento enquanto unidade “fixa” e “sólida”, por contraponto ao carácter dinâmico inscrito na noção de unidade doméstica.» Com este redireccionar dos estudos sobre a casa, relevou-se: «o papel desempenhado pelo espaço doméstico nos processos de mediação que se estabelecem entre as unidades domésticas e o meio social envolvente». (ibidem: 109) Este trabalho é complementar e dá, de certa forma, sequência à USP de Pina Cabral.

***

Especificamente na área da Antropologia Urbana, Graça Índias Cordeiro (1997) tentou identificar certos mecanismos sociais e conteúdos culturais que produzem identidades locais urbanas, no caso do Bairro da Bica em Lisboa, tentou apreender como se lhe pertence, e de que forma um conjunto de sujeitos vivem esta pertença como um projecto de vida na sua cidade. Mas, na sequência do seu trabalho de investigação, em Colóquio que teve lugar no ISCTE, em 2005, “O lugar da rua: Cidade, tempo, sociabilidade”, Índias Cordeiro assume a rua como lugar onde se fabricam interacções, onde se produz sociedade e Yves Lequin, nas conclusões, dirá que o bairro morreu e que todas as análises que partiram dele – são muitas e de ambos os lados do Atlântico – concluíram que a entidade bairro não existia...

A nossa escala procura vários níveis de abordagem e de interacção social nos diversos espaços: residencial-rua-bairro-cidade. E todos os espaços citados têm uma realidade social, que embora com fronteiras moventes, não deixam de ser marcadas simbolicamente. Assumimos o bairro como unidade física a explorar – não como competências heurísticas em si, mas como “campo de análise”/amostra. Estas

Referências

Documentos relacionados

4 Este processo foi discutido de maneira mais detalhada no subtópico 4.2.2... o desvio estequiométrico de lítio provoca mudanças na intensidade, assim como, um pequeno deslocamento

Os tratamentos escarificação química com ácido sulfúrico por 10 minutos e 20 minutos, utilizando-se substrato umedecido com a solução de nitrato de potássio a 0,04% e a embebição

Este trabalho buscou, através de pesquisa de campo, estudar o efeito de diferentes alternativas de adubações de cobertura, quanto ao tipo de adubo e época de

A utilização dos instrumentos previstos no Estatuto da Cidade – em especial, (i) a instituição de ZEIS – Zonas Especiais de Interesse Social, inclusive em áreas vazias; (ii)

6.1.5 Qualquer alteração efetuada pelo fabricante em reator cujo protótipo já tenha sido aprovado pela Prefeitura/CEIP deverá ser informada, com antecedência, pelo

O enfermeiro, como integrante da equipe multidisciplinar em saúde, possui respaldo ético legal e técnico cientifico para atuar junto ao paciente portador de feridas, da avaliação

Requisitos de admissão: os requisitos de admissão são os previstos no art. 17.º da LTFP: Ter nacionalidade portuguesa, salvo nos casos excetuados pela Constituição, lei especial

Estudos sobre privação de sono sugerem que neurônios da área pré-óptica lateral e do núcleo pré-óptico lateral se- jam também responsáveis pelos mecanismos que regulam o