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A Cidade de Évora: Formação do Centro Urbano

Cap.II A Cidade de Évora: evolução e contexto na perspectiva do nosso objecto de estudo

II.1. A Cidade de Évora: Formação do Centro Urbano

A antropóloga espanhola María Catedra, recentemente (8.3.2012), num Seminário organizado pelo Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA) sobre o seu trabalho de campo em Évora, afirmava que «era impossível trabalhar sobre Évora, sem ter que referir a História,86 ela está ali» e concluía: «a Mitologia, uma Capela, uma pedra, uma muralha… estão [presentes] todos os dias e a toda a hora.» Tomamos como nossa esta perspectiva: a História é incontornável, como se verá. As nossas fontes são tanto escritas como orais, uma vez que muitos dos entrevistados no nosso “terreno” foram participantes activos em todo o processo “Malagueira”. Igualmente, é impossível estudar a História deste processo sem recorrer às estórias em que esteve envolvido, desde o princípio, como disse um informante (inf.05): «foi sempre um projecto polémico!»

A epígrafe que citamos no princípio do Capítulo refere os três elementos de maior importância na constituição da Cidade – a presença da Corte por largos períodos, após a Reconquista (1165), a precoce criação da Universidade (1559) e a alta densidade da urbanização muçulmana, como ainda hoje se verifica no Centro Histórico de Évora (CHE). A estes factores determinantes na sua formação só falta referir a sua fundação romana – Liberalitas Julia, nome que recebeu “antes de 27 a.C.”, atribuído por Júlio César ou Octávio. Ebora – «certamente nos fins do Século III d.C., a cidade foi cercada de muralhas.» (Alarcão, 1983: 75) Há vestígios romanos dos eixos geométricos

86 Quando citamos autores de outras disciplinas como a Arquitectura, a História, ou a Geografia, o que realmente estamos a usar são as suas abordagens etnográficas – seja a ocupação do território, seja as casas na sua tipologia ou funcionalidade, seja as práticas sociais que envolvem os actores sociais nestes processos dinâmicos, a apropriação e/ou a vida quotidiana das populações nestes espaços, como afirma Frugoli Jr (2013): o método etnográfico não é exclusivo da Antropologia.

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e rectilíneos, alguns perdidos, outros ainda estão presentes em «certos pormenores no traçado rectilíneo de ruas de Évora (...) o traçado regular das ruas e das praças, com perspectivas valorizadas por monumentos, emaranhou-se nas tortuosas ruelas das aglomerações medievais» (Ribeiro, 1989: 60). Esta forma antiquíssima de fazer cidade a partir de um traçado cruzado – o decumanus e o cardus – foi um processo que Siza Vieira adoptou na Malagueira: «o Plano estabelece como que uma cruz que é um sistema antiquíssimo de construir cidade – e o eixo longitudinal é paralelo a esse eixo da Rua principal das construções clandestinas» (Entrevista, 2011 [ent]).

A cidade romana foi reapropriada pela cultura muçulmana sobre os traçados rectilíneos assentaram os cachos humanos muçulmanos. Nas cidades muçulmanas as casas «abrem para a intimidade de pátios interiores, ruelas estreitas e tortuosas» (Ribeiro, 1989: 60-61), crescem em mancha, estão juntas irregularmente umas às outras, formam muitas vezes becos sem saída, o importante é a intimidade do grupo doméstico para isso se erguem altos muros isolando a vida privada da vida pública. Cria-se também com esses muros uma boa protecção do estio alentejano e dos ventos do Inverno (ibidem). São casas pouco arejadas, mas a ventilação faz-se pelos pátios, em chaminé, uma vez que não existe ventilação transversal. Promove-se a casa pátio.

Estas tendências, forte separação público-privado por muros altos, ruas estreitas e uma cidade em cacho intensifica-se na cidade medieval e é, mais uma vez, uma das características reivindicadas por Siza Vieira para o seu projecto – a estreiteza das vias de circulação e a cidade compacta: «a largura das ruas (…) era para que se produza sombra e diminua o rigor do clima». E acabará por concluir: «No meu espírito inicialmente essas ruas são curtas – são umas ruas de ligação e são ruas curtas – eram pedonais.» (ent) A tentativa de reprodução do espaço urbano intramuros é permanentemente assumida por Siza. Outro elemento determinante neste projecto é a casa pátio que é uma constante no Centro Histórico de Évora (CHE).

As casas pátio inventariadas, hoje, dentro das muralhas, são cerca de 70 (Barbosa, 2000), e são atribuídas à permanência da aristocracia na cidade durante o Renascimento sendo, claramente, reinterpretações das habitações romanas e muçulmanas. Os seus proprietários seriam «famílias da nobreza, detentoras de vastas propriedades agrícolas, a que se juntaram posteriormente grandes lavradores, mas

também pessoas de outras actividades que adoptaram a mesma forma de casa, numa escala mais modesta.»87 (Barbosa, 2000: 116) Esta dignificação da habitação é outra característica que Siza Vieira reivindica para o Bairro da Malagueira que nasceu para grupos sociais desfavorecidos.

«O pátio também é um elemento que existe bastante na arquitectura vernacular, no Alentejo, e não só no Alentejo. E não é só por uma referência formal é porque (…) Este pátio funciona como uma transição entre a rua e a casa e que cria uma espécie de microclima – sobretudo como foi recomendado [o muro alto] – mas nem todas as pessoas adoptaram, por razões diversas, quando se faz uma parreira ou uma árvore que produz a sombra. É como que um filtro em relação aos rigores do clima.» (entª)

Da cidade da Idade Média ficaram as Cercas Fernandinas e dada a sua grande dimensão, mais de três quilómetros, permitiu que a cidade crescesse sem sufocar e com um ordenamento regular até aos anos 40 do Século XX. Assumindo sempre uma “legibilidade” do tecido urbano (M.M.Oliveira, 2007: 191), que no fim do Século XX tinha perdido completamente, com periferias que envolviam a muralha e a retalhavam como cidade, não existindo continuidade urbana. «A muralha albergava espaços construídos, mas também grandes cercas de conventos, hortas, jardins, fábricas e rossios, permitindo uma resposta suficiente durante o grande período de crescimento quatrocentista e quinhentista» (ibidem). A tentativa de preservação do perfil da cidade e da sua muralha vai ter um importante papel no desenvolvimento da Cidade no Século XX. Álvaro Siza afirma:

«A encomenda era muito clara, existia um Plano para a Malagueira que de resto se construiu uma pequena parte [Cruz da Picada], com casas do Fundo de Fomento da Habitação (FFH), que eram edifícios em altura, julgo que 7 pisos. Esse Plano que era pensado para toda a zona da Malagueira foi suspenso pela Câmara de então e eu fui chamado com um programa preciso, não se pretendia casas em altura, porque elas iriam cobrir o perfil da Cidade, queria-se habitação baixa, máximo dois pisos, para manter essa relação da paisagem com a colina da Cidade» (ent).88

87 Esta tipologia, casa-pátio, é assim descrita pelo autor: «a entrada é por um pátio confinante com a via pública e a partir do qual se tem acesso à habitação. Esta tem sempre dois pisos, sendo o rés-do-chão ocupado com as dependências de apoio e o andar com a habitação principal. Na grande maioria dos casos, o acesso do pátio para o [primeiro] andar é feito por uma escada exterior de alvenaria ou de pedra (…) À primeira sala sucedem outras, com um grau de privacidade sempre crescente, cumprindo prescrições clássicas para a arte de habitar. Este tipo de habitação tem, em muitos casos, uma comunicação privilegiada com o pátio, através de arcarias, janelas, varandas e terraços, possibilitando zonas de transição entre o interior e o exterior, onde é possível permanecer, fruindo a intimidade do pátio. Isto não significa que a habitação rejeite ter janelas voltadas para a via pública, como acontece nos modelos da habitação islâmica.» (Barbosa, 2000: 116-7)

88 E conclui, definindo o programa que lhe foi imposto: «por outro lado, porque estava a ser feito um Plano para toda a Cidade de Évora, definia-se para esta zona um certo número de princípios. Um deles 160

A Cerca medieval conteve o desenvolvimento da cidade até meados do século XX marcando claramente um dentro e um fora da cidade com todas as suas implicações simbólicas sobre o que seria permitido dentro das muralhas – o urbano – e fora – o não urbano. A tourada que se realizava tradicionalmente no Giraldo passou no fim do Século XIX para o Rossio de S. Brás – o que denota alguma “modernização” sobre o que seria considerado modelo de urbanidade. As próprias muralhas são restauradas nos anos 40/50 do Séc. XX (Abel, 2007/2008: 80).

A Cidade de Évora vai atravessar longos períodos, ora de apogeu, ora de decadência. Entre a ocupação da Reconquista, por Giraldo Sem Pavor, e o Renascimento Évora viveu um longo período de desenvolvimento que terminou no apogeu da Época das Descobertas, que se explica pela riqueza das ordens religiosas no Sul de Portugal e pelo particular interesse votado pela Coroa portuguesa – realizaram- se dezenas de Cortes na cidade, além da presença prestigiante da Universidade. No dizer de Orlando Ribeiro, Évora era “um grande centro agrícola” (ibidem) e assim se manteve séculos. O património arquitectónico está bem marcado pelo esplendor dos Descobrimentos, desde o grande palácio até ao simples pormenor das janelas manuelinas. Se a nível nacional, no Século XVI (1527), Lisboa era já o centro esmagador, em população e actividade económica, do reino, «em segundo lugar vinham Porto e Évora, com populações semelhantes, que correspondiam às “cabeças” de dois dos sistemas urbanos existentes, o do noroeste e o do Alentejo interior.» Acabada a empresa dos Descobrimentos, Évora decaiu, no Século XIX manifesta-se já, claramente, «o início do processo de isolamento e marginalização do interior do país, principalmente do sul, que desde a época muçulmana era a região com maior desenvolvimento urbano. Évora baixa de 3º para 7º lugar.» (TBS, 1992: 60 e 69)

É muito compreensível que Évora se secundarizasse face a cidades que se industrializaram, sobretudo as periferias de Porto e Lisboa, mas também Setúbal, Braga, Covilhã, Guimarães, por exemplo. Concorrendo com isto, depois dos empreendimentos marítimos do Renascimento português, os portos de mar, o Atlântico, e naturalmente toda a extensão da sua orla, assumiram um papel de

era a manutenção da linha de água que atravessa o terreno e a criação de zonas verdes em torno dessa linha de água.»

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desenvolvimento, com o comércio marítimo, que a agricultura e o interior do país não acompanhavam. Em Évora, na verdade, nunca existiu uma revolução industrial e não pôde oferecer a muitos dos seus naturais a desejável fixação: em 1911 era a 10ª cidade do país, em 1940 a 9ª – porque conseguiu concentrar muitos serviços públicos (Carvalho, 1990: 15), sobrepondo-se a todo o Alentejo que decaía vertiginosamente – e em 1981 era a 13ª, considerando exclusivamente a população intramuros, no entanto a cidade já tinha «importantes subúrbios e cuja população não foi considerada, o que poderia trazer alterações significativas» no quadro nacional das cidades (TBS, 1992: 72 e 74).

Para Domingas Simplício a expansão extra-muros inicia-se com a presença da Estação de Caminho de Ferro, em fins do século XIX e princípios do século XX que origina as avenidas Dr. Barahona e Combatentes da Grande Guerra «conduzindo à formação dos bairros do Baluarte, do Ferroviário e do Rossio Ocidental cujos traçados parecem ter sido planeados.» (1997: 113) Também dessa época (1916) é a criação “espontânea” do Bairro dos Leões e Tenente Pereira. Esta expansão está sempre associada às classes trabalhadoras, as classes médias continuarão dentro da cidade intramuros (ibidem).

Sobre o caminho-de-ferro, no século XIX, Borges Abel diz que não veio alterar práticas sócio-económicas: o objectivo era reduzir «os tempos de transporte da matéria-prima até Lisboa» (2007-8: 141) e a matéria-prima necessária à cidade de Lisboa do Fontismo era o carvão – indispensável às indústrias da periferia da capital: Para isso abateram-se as azinheiras (para o carvão) pelo porte eram altamente rentáveis e plantaram-se os sobreiros. Entre azinheiras arrancadas e sobreiros plantados, ficavam extensas áreas desmatadas. É aqui que nasce, diz o autor, a ideia do “Alentejo celeiro de Portugal” habilmente explorada anos mais tarde por Salazar (ibidem).

Em 1920, pela mão do Engº. Schiappa, procede-se ao reordenamento, por Projecto, do Rossio de S. Brás – construíram, e mantêm-se hoje, largos lotes de grandes moradias para os lavradores e altos funcionários da administração, e ainda um bairro popular, que foi ocupado pelas classes médias. Era a expansão para a Estação dos Caminhos-de-Ferro, a possível, mas como a proximidade à cidade era grande

(praticamente colada às muralhas) nunca foi considerada simbolicamente como “arrabalde”, uma vez que a dependência da cidade era total.

A Av. Estação como oportunidade de estender a cidade até à Estação foi uma oportunidade perdida, sustenta Borges Abel, a CUF e os seus silos, bem como a GNR só em meados do século XX se instalam: «Isto é, a vida da cidade muralhada pouco ou nada se alterou com a chegada do caminho-de-ferro, traduzindo, assim, a situação quer de capital administrativa da região, sem necessidade do motor industrial para crescer e desenvolver-se, quer de segunda residência de grandes proprietários» manteve-se (2007-8: 143), se é que não se reforçou. O Boulevard de Évora – a Avª da Estação – com as suas moradias tradicionalistas ou modernistas (nos anos 20 e 30), de proprietários arrojados, mas sempre “orgulhosamente sós” numa expansão que não motivou os eborenses, nem a maioria das suas elites (ibidem: 135).

Aquilo que o autor considera a segunda saída das muralhas, depois da Estação, foi a Fábrica dos Leões, já no Século XX e, de certo modo, originada pela «abertura do Ramal de Mora» (ibidem: 147) pelos Caminhos-de-Ferro. A Fábrica deu origem a dois bairros – o Operário, junto à porta da lagoa, onde já existia uma forte presença operária; e o Bairro dos Leões, Junto à Fábrica. Nos anos 30/40 surgiu o Bairro dos Caminhos-de-Ferro, meia-dúzia de vivendas geminadas com quintal-jardim (logradouro) que, como estavam fechadas sobre si próprias, o autor não considera como tendo «participado no processo de expansão» da cidade, antes as considera um gueto (ibidem: 148-149).