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CAPÍTULO 3 – ARGUMENTAÇÃO NAS APS

3.6 A ARGUMENTAÇÃO CONSEQUENCIALISTA NAS AUDIÊNCIAS PÚBLICAS

Para Perelman (1993), os pontos de partida da argumentação poderão incidir sobre o real: os factos, as verdades e as presunções ou sobre o preferível – os valores, as hierarquias e os lugares do preferível. Dessa forma, a linguagem e o senso comum designam por fatos e verdades elementos considerados objetivos que se impõem a todos, assim, não podemos deixar de observar o auditório e a sua atitude a respeito de certo ponto de vista argumentativo. Por isso, ao admitir que os fatos e as verdades são princípios considerados por todos como dados estáveis, não seria necessário reforçar a adesão a seu respeito. Essa condição permanece até que seja contestada pelo auditório, nesse caso, seria necessário demonstrar que não é razoável o que se alega para contestar, e isso poderia ser feito desqualificando o argumentador ou o próprio argumento. Assim, os fatos e as verdades são admitidos como opinião comum ou pela opinião dos especialistas, e para torná-los desqualificados para o status, basta mostrar a incompatibilidade com outros fatos ou verdades.

A AP inicia-se por discutir uma norma (fato), contestada por verdades (dogmas – religiosidade, teorias – cientificidade) e também por outro fato: a Constituição, que, hierarquicamente na condição de valor, é superior a qualquer norma no Ordenamento Jurídico. Para Perelman e Olbrechts-Tyteca (2000), a argumentação não se baseia apenas em valores, abstratos e concretos, mas na hierarquia entre esses valores especificamente entre grupos (concretos x concretos e abstratos x abstratos). A dificuldade em estabelecer uma racionalidade jurídica justificatória decorre da necessidade de atender à segurança jurídica, um dos pilares de um Estado Democrático. A segurança jurídica é necessária, pois dela se regulam as formas possíveis de alteração dos esteios constitucionais, a fim de se manter os elementos que orientam o Ordenamento Jurídico. A utilização de valores na Jurisdição Constitucional é motivo de questionamento sobre a redução da segurança jurídica, tendo em vista que a hierarquia é analisada a cada caso, quando há conflito entre princípios (valores abstratos que ao ser inserido conteúdo, transforma-se em valores concretos) nos casos concretos (hard case)136. Assim, “todos os elementos do real formam uma hierarquia sistematizada, devendo o que é causa e princípio ocupar posição de superioridade ao que é efeito ou conseqüência” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2000, p. 91).

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Esse conteúdo que dá concretude ao valor é introduzido na interpretação e uso desse valor, quando ele se transforma em cogente e eficaz.

A partir do momento que se estabelecesse uma hierarquia de valores baseada na preferência, ao lado dessa, teremos uma hierarquia baseada na quantidade, e percebemos que a estrutura de uma argumentação baseada em valores é mais importante que os próprios valores, tendo em vista que os valores são comuns a vários auditórios, mas o modo como são articulados, organizados e hierarquizados é que os distingue. Assim,

a hierarquia de valores são decerto, mais importantes do ponto de vista da estrutura de uma argumentação do que os próprios valores. Com efeito, a maior parte destes são comuns a um grande número de auditórios. O que caracteriza cada auditório é menos os valores que admite do que o modo como os hierarquiza (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2000, p. 92).

A AP é subsidiada pela questão de valores, tendo em vista que o relator considera importante colocar em discussão o conhecimento existente (a norma produzida pelo legislativo) e o interesse de sua permanência no Ordenamento Jurídico, a partir da necessidade de analisar a norma quanto à compatibilidade com a Constituição Federal, aos princípios e valores constitucionais. A hierarquia entre valores não é estática e os fundamentos que permitem a sua escolha no processo é tão múltipla quanto o universo dos valores, é isso o que Perelman e Olbrechts-Tyteca (2000, p. 93) apontam quando dizem que as hierarquias na prática utilizam das relações “entre a certeza de um conhecimento e a importância ou interesse que ele pode apresentar”. Isso ocorre porque se criam incompatibilidades, obrigando a escolhas entre valores.

Nessas circunstâncias, precisamos dos lugares para fundamentar os valores e as hierarquias entre os valores, os quais pertencem à doxa, e são formulados na disposito ou

taxis. Além do mais, a incompatibilidade entre valores no Ordenamento Jurídico, não gera a

exclusão do valor no sistema, como ocorreria com a norma, que perde a validade e a eficácia, pois:

Enquanto o que se opõe ao real e ao verdadeiro não pode ser senão aparência, ilusão ou erro, o conflito entre valores não acarreta necessariamente, a desqualificação

do valor sacrificado; pelo contrario é porque nos atemos ao que sacrificamos que o sacrifico é doloroso: um valor menor permanecer, apesar de tudo, um valor

(PERELMAN, 1993, p. 49) (Grifos nossos).

Segundo MacCormick (2008, p. 26),

A questão de uma teoria da argumentação como justificação não é saber qual o argumento efetivamente convence um júri ou um juiz em particular, mas qual

deveria convencer qualquer instância decisória racional. Nesse sentido,

Perelman sugere que um ‘auditório universal’ proporcionaria um teste definitivo: qualquer argumento capaz de convencer um auditório composto por todas as pessoas inteligentes e cuidadosas disponíveis, dispostas a analisar questões apresentadas de forma desinteressadas, seria um argumento adequado (Grifo nosso).

Ainda que nosso objeto de análise não passe pela recepção, compreendemos que, ao ampliar através dos mecanismos midiáticos o alcance da AP, haveria uma possibilidade de encontrar teoricamente esse auditório universal, em que os argumentos produzidos devem alcançar a compreensão de todo e qualquer sujeito dessa comunidade fixada histórica e socialmente.

Nesse sentido, MacCormick (2008, p. 136), defende que “alguns tipos e alguns conjuntos de consequências devem ser relevantes para justificação das decisões”, ainda que haja uma hierarquia para que isso ocorra no olhar de Perelman (1993). Isso, porque

As decisões não são justificadas em termos de efeitos diretos e imediatos nas partes envolvidas apenas (e é isso que os casos difíceis produzem um mau direito), mas em termos de uma proposição jurídica aceitável que descubra o presente caso e seja, portanto, disponível para outros casos semelhantes (satisfazendo assim a exigência de justiça de que os casos iguais sejam tratados de forma igual) (MACCORMICK, 2008, p. 136).

A igualdade é requisito do próprio Estado Democrático de Direito, como princípio e valor, e a perspectiva de que a justiça aplique os mesmos recursos a situações iguais, coloca- nos frente às decisões judiciais em Instâncias recursais, inclusive em Tribunais Superiores. Inserindo nessa condição o STF, em que essas decisões deverão ser cumpridas em geral na sociedade e não apenas para as partes litigantes, temos também que pensar na isonomia, que trata de situações desiguais, as quais devem ter tratamento específico. No STF, as questões de repercussão geral ganharam inclusive a possibilidade de se tornarem Súmula Vinculante, que é a proposta de MacCormik (2008, p. 138),

O que dá caráter distintivo das decisões judiciais em casos concretos é que, especificamente nas cortes de apelação, e em qualquer medida em que se exista em um dado sistema jurídico uma prática de seguir precedentes ou mesmo uma regra exigindo isso, a decisão universalizada torna-se um tipo de regra que os outros

juízes deveriam seguir ou modificar, salvo quando estivessem diante de um caso que pudesse ser considerado distinto do caso anteriormente julgado (Grifos

nossos).

A decisão define qual regra será recepcionada a partir da apresentação de um fato em relação à norma. No Direito, a possibilidade de se apresentar uma demanda é diretamente proporcional à possibilidade de se apresentar uma defesa, utilizando-se do mesmo Ordenamento Jurídico disponível e do mesmo fato, narrado em versões distintas. A própria aplicação da norma é um processo argumentativo-interpretativo, pois o uso das fontes pode ser visto como um processo de pré-interpretação, em conformidade com o que prevê MacCormick (2006; 2008). Segundo Bustamante (2013, p. 281),

O caráter discutível ou discursivo do direito e a concepção de fontes do direito como materiais “préinterpretativos”, ao invés de respostas definitivas à questão da validade de uma regra, são profundamente consistentes com a ambição de MacCormick de construir uma teoria normativa da argumentação jurídica.

A argumentação aqui prevista deve reconstruir a noção de justiça em conformidade com o Estado Democrático de Direito, mais do que no Estado de Direito, pois é fator intrínseco à noção de justificação, a fim de alcançar uma universalidade, requisito de toda decisão judicial. Nesse sentido, MacCormick (2005, p. 98) nos diz que “justificar é demonstrar que algo é correto” e “demonstrar que algo é correto, é demonstrar que, sob qualquer ponto de vista objetivo acerca do assunto, o ato deve ser realizado, ou pelo menos deveria ter sido realizado, em vista das características e das circunstâncias do caso”. Nesse sentido, pode existir o interesse em persuadir o auditório universal com elementos particulares, que se embasam em uma justificativa para definir os meios e os fins.

Por isso, os argumentos consequencialistas tornam-se importantes na construção argumentativa, e, nas APs, são oriundos de áreas teleológicas (finalísticas), que, normalmente, preocupam-se com a implementação de objetivos. Em nosso caso, segundo programas políticos, as projeções das possíveis consequências decorrentes da decisão serão consideradas pensando-se em juízos probabilísticos ou em dados empíricos, que foram produzidos nas APs. Como exemplo, MacCormick (2008) apresenta a história de um precedente sobre a separação de gêmeos siameses em que uma vida deveria ser sacrificada. O autor diz que o recurso embasado na santidade da vida pode proteger ambos os direitos, a escolha do direito seria pelo menor dos males, mas nenhuma separação de gêmeos que pudesse envolver inevitavelmente o sacrifício de um deles poderia jamais ser conduzida legalmente, independente da vontade dos pais a respeito da sobrevida de uma das crianças, ou o quanto severamente ficasse comprometida a condição da outra criança.

Essas argumentações apresentadas tratam de consequências, mas consideram as implicações lógicas da decisão, ou seja, a razão para elas importarem depende do contexto em que estão inseridas. Nesse sentido, a separação dos gêmeos não poderia ser realizada sem uma regra que a justificasse, em circunstâncias raras e desagradáveis, a cirurgia, que seria capaz de salvar a vida de um irmão à custa da vida do outro (MACCORMICK, 2008).

No nosso ordenamento já há uma regra semelhante, exatamente tratando da possibilidade de aborto quando a vida da mãe esteja comprometida pela continuidade da gestação, sendo essa uma das permissões legislativas no Código Penal. Na mesma lógica, podemos entender o desenvolvimento argumentativo consequencialista na ADPF n° 54, quando os valores envolvidos também lidam com a vida: vida da gestante ou do feto. Isto,

principalmente,quando, na AP, discutiu-se também a santidade da vida, e, nesse caso, podemos ampliar a observação para a ADI n°3.510, segundo o mesmo motivo, discussão sobre a vida. A decisão consequencialista é aquela que atende ao implemento de um objetivo, estabelecendo como justificativa a eleição de um critério com um ou mais efeitos desejáveis e justificáveis, como, por exemplo, promoção social, função de utilidade, eficiência econômica. Entretanto, é necessário que se compreenda que existem elementos de fundo moral que interferem também na decisão, como no exemplo citado e nas APs em análise, quando, só não se permitiu o embasamento decisório em uma moral religiosa, tendo em vista a laicidade do Estado.

Segundo Atienza (2006, p. 119), para MacCormick, tanto a argumentação prática, em geral, quanto a argumentação jurídica, em especial, cumprem, essencialmente, uma função justificadora. No mesmo sentido, Perelman e Olbrechts-Tyteca (2000, p.556) dizem que nas sentenças “já não se contenta em mostrar a correção formal, mas se esforça em torná-las convincentes”.

Vale lembrar que a obra de MacCormick (2006; 2008) trata de análises feitas em jurisprudências britânicas, principalmente inglesas e escocesas, e que o processo decisório no Reino Unido é vantajoso por envolver a prática de cada juiz em apresentar seu parecer publicamente, engajando todos em uma discussão pública em si, o que leva a uma exposição das melhores razões decisórias. Mesmo assim, a metodologia aproxima-se e muito das decisões do STF, nas quais os ministros também apresentam, cada um, suas razões.

MacCormick (2006) noticia que seu estudo é fundado na visão do processo de argumentação como um processo de justificação, afinal, toda a decisão deve ser justificada com bons argumentos e as deliberações jurídicas – ou argumentações – fixam comportamentos, ordenam consequências face à verificação de determinadas condições e apresentam um modelo para o mundo e não do mundo (MACCORMICK, 2006). Disso, “Não pode estar em questão se as deliberações jurídicas descrevem o mundo com precisão ou sustentam previsões verdadeiras sobre acontecimentos naturais” (MACCORMICK, 2006, p. 131). Nesse processo, as deliberações ocorridas nas APs permitem o questionamento do comportamento esperado do sujeito como permissiva de ação em conformidade com a recepção ou não da constitucionalidade da norma.

Isso acontece já que a argumentação se pautará por consubstanciar decisões a respeito de temas que não apenas despertam grande interesse na sociedade, mas que são de elevada complexidade, os quais demandam a visão tanto dos interessados como também dos experts. Porém, deverão ser considerados os efeitos da decisão sobre a sociedade em relação à adoção

daquela decisão em qualquer situação semelhante. Frise-se que as APs acontecem, porque os assuntos tratados nas discussões sobre a constitucionalidade da norma ultrapassam os argumentos meramente jurídicos, trazendo para dentro da esfera jurídica, outras esferas necessárias para a decisão, assim comportam argumentos extrajurídicos e/ou consequenciais, de natureza às vezes moral, mas que necessitam de conformidade legal. É nesse sentido que o

epidíctico promoveria a ampliação dos valores a fim de conseguir a adesão à tese.

Nessa condição, já sabemos que a doxa será parte integrante da decisão com o fito de justificar as escolhas dos ministros, mas há todo um movimento para que o lugar de destaque do STF como Supremo Tribunal não se perca enquanto guardião da Constituição e poder de autoridade. É por isso que as consequências não se restringem às implicações para as partes processuais e ao valor da utilidade, alcançando o como a aplicação da norma irá ser recepcionada pela sociedade, devido aos valores tais como: justiça, conveniência pública e senso comum.Nesse caso, ao considerar a perspectiva consequencialista, percebemos que o relator do ADPF n° 54, ministro Marco Aurélio, argumentou em sua decisão, tanto nesta ação quanto em seu voto na ADI n° 3.510, sobre o fato de que inexiste violação na utilização de células tronco embrionárias em pesquisas científicas, porque “sob o ângulo biológico, o início da vida pressupõe não só a fecundação do óvulo pelo espermatozóide como também a viabilidade, elemento inexistente quando se trata de feto anencéfalo, considerado pela medicina como natimorto cerebral” (Grifos nossos). Observamos o argumento científico- biológico sendo utilizado como fundamento da inviabilidade de vida, com um fim consequencialista, ou seja, para ter vida é necessário viabilidade para isso. Compreendemos então que o conceito de consequência não se restringe às implicações para as partes processuais e ao valor da utilidade, mas alcança as consequências da norma em que se baseia a decisão e outros valores como: justiça, conveniência pública e senso comum (MACCORMICK, 2006), ou seja, a toda a sociedade.

Percebemos, como afirma Perelman (1993), que os valores concretos são características de sociedades conservadores e tendem a manutenção do poder e das estruturas sociais, já os valores abstratos são utilizados para críticas e são mais adequados para justificar a necessidade de mudança. Quando os direitos fundamentais passam a embasar os questionamentos sobre a escolha de certo grupo da sociedade, da autogestão da pessoa, e de quem suportaria o ônus da imposição normativa, os argumentos nas APs analisadas são de ordem abstrata. É o que vemos na ADI n° 3.510, quando o relator ministro Carlos Britto, destacou que a Constituição Federal se reporta aos “direitos da pessoa humana e até dos direitos e garantias individuais como cláusula pétrea, está falando de direitos e garantias do

indivíduo-pessoa, que se faz destinatário dos direitos fundamentais à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade” (Grifos nossos). Então, somente o indivíduo-pessoa teria direitos e garantias, portanto, direito à vida.

Além disso, a participação ampla abre-se para formas distintas de saber como argumentos técnico (científicos), argumentos religiosos (dogmáticos).Vemos uma multiplicidade de argumentos e todos inserem o senso comum, seja pela doxa ou endoxa, ligados a valores socioculturais, religiosos ou políticos, que aparecem como carregados de subjetivismo. Assim, o posicionamento dos relatores é de que não haveria valor intrínseco em algo que não é compreendido como vida, que não deve ser protegido independente de qualquer situação; não bastaria apenas a sua existência, mas a possibilidade de ser indivíduo. O valor do sagrado é flexibilizado, flexibilizando dessa forma o valor concreto referente à religiosidade no imaginário brasileiro por argumentos de cunho consequencialista.

Abordaremos com mais atenção os valores envolvidos nas APs no próximo Capítulo e como os valores remetem à legitimidade, utilizando de uma endoxa que se transforma em

doxa. Entretanto, os valores concretos e abstratos já nos demonstram que, para alcançar uma

sociedade democrática, é necessário proteger os valores mais abstratos em detrimento dos valores concretos.

CAPÍTULO 4 – OS POLOS ARGUMENTATIVOS NA AUDIÊNCIA PÚBLICA: doxas