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CAPÍTULO 4 – OS POLOS ARGUMENTATIVOS NA AUDIÊNCIA PÚBLICA: doxas

4.3 O DISCURSO RELIGIOSO NO DISCURSO JURÍDICO

A religiosidade já foi amalgama do Direto, principalmente, no Direito arcaico ou antigo, principalmente por não ter determinações escritas e as regras de regulamentação serem conservadas pela tradição, tornando-se abstratas, o que limitava a sua interpretação (CASTRO, 2007). Esse era manifestado pelas repetições de fórmulas, por atos simbólicos, palavras sagradas, gestos solenes, e era pela força dos rituais e não pelo seu conteúdo que o Direito se fixava. O discurso religioso fundamentava-se em gestos, atos e palavras, que significam, dentro de cada cultura, valores éticos-morais-jurídicos, cujos limites era impossível de ser verificado.

As manifestações mais antigas do Direito – as sanções – estavam ligadas às sanções rituais, que utilizavam uma linguagem expressiva e assumiam um caráter tanto repressivo quanto restritivo, na medida em que era aplicado um castigo ao responsável do dano, mas também uma reparação à pessoa injuriada. Portanto, os efeitos jurídicos eram determinados por atos e procedimentos, que, envolvidos pela magia e pela solenidade das palavras, transformavam-se num jogo constante de ritualismo (CASTRO, 2007).

Cada organização social possuía um Direito único, através de expressões específicas da linguagem nas suas diversas modalidades, não se confundindo com outra forma de organização, já que era relativamente diversificada. Isso porque a separação no tempo e no espaço fez com que se produzissem mais dessemelhanças que semelhanças entre os grupos.

Observamos que o Direito antigo não nasce de uma pessoa, mas nasceu espontaneamente e inteiramente de princípios. Esses eram oficialmente construídos por instituições jurídicas, sendo uma das mais antigas e até hoje conhecida, ainda que de forma diferenciada, a família, derivando então “das crenças religiosas universalmente admitidas na idade primitiva desses povos e exercendo domínio sobre as inteligências e vontades” (COULAGES, 1975, p. 68).

O Direito arcaico parecia não estabelecer diferença entre prescrições civis, religiosas e morais. Nesse período era um Direito ritualístico, posteriormente, modificou-se essa perspectiva com a difusão da técnica da escrita, somadas à compilação de costumes

tradicionais (CASTRO, 2007). O costume passa a aparecer como expressão da legalidade, de forma lenta e espontânea, instrumentalizada pela repetição dos atos, usos e práticas. Por ser objeto de veneração e respeito e assegurado por sanções sobrenaturais, dificilmente o homem primitivo questionava sua validade e aplicação, desse fato, assegurava-se a legitimidade de sua aplicabilidade.

Nessas sociedades, havia uma identidade forte e a retórica procede dessa mesma identidade. Isso porque as questões são pouco problemáticas e as respostas, convenientes, visando reforçar completamente a identidade do grupo e de cada um dentro do grupo. Há de fato o ethos, o pathos e o logos, mas não há lugar ainda ao diferente (MEYER, 2010). Podemos dizer que a gregariedade social se dá pela identidade e não pela diferença. O mediador, quando há necessidade de intervir, destina, por determinados ritos religiosos, a importar a diferença divina dentro da identidade comunitária que é assegurada. A religião é cosmológica, e a retórica mediadora das diferenças no seio da tribo (MEYER, 2010, p. 216).

Na antiguidade clássica, o sagrado permanecia no Direito. Segundo Ferraz Junior (2007, p. 56), em Roma “o direito, forma cultural sagrada, era o exercício de uma atividade ética, a prudência, virtude moral do equilíbrio e da ponderação nos atos de julgar”. É nessa época que surge a jurisprudência como forma de qualificação da prudência. Porém, somente quando a jurisprudência deixou de ser praticada por leigos e passou a ser exercida por juízes profissionais é que se torna possível construir um conjunto teórico capaz de preencher os claros que existiam nas fórmulas e esquemas de ação até então existes162. Tal fato ocorre com o Concilium Imperial e seus jurisconsultos, no Império, cuja influência se manifesta pela forma dos responsa163. Essa forma é o início de uma teoria jurídica entre os romanos, o que inicialmente é feito por argumento de autoridade, ou seja, argumentava-se pouco. Então, não há desenvolvimento lógico de premissas e conclusões, limitando-se a apoiar suas decisões no fato de já terem sido firmadas por personalidades de reconhecido mérito na sociedade romana (FERRAZ JUNIOR, 2007). O poder da autoridade, nesse momento, é aderente à competência, como prevê Charaudeau (2016), ao afirmar que não é só um saber, e sim um saber-fazer na realização e na execução de tarefas tanto manuais quanto intelectuais. Nesse sentido, podemos ter a competência de saber-fazer sem conhecimentos, como em alguns domínios de atividade,

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Segundo Ferraz Junior (2007), o direito até então não apresentava proposições jurídicas materiais, por exemplo, o edito do pretor consistia em esquemas de ação para determinados fatos-típicos e em formulas para condução de processos, assim, pode-se dizer que não apenas faltavam certas regras para preenchimento das lacunas como também as formulas eram apenas molduras que deveriam ser preenchidas pelas questões práticas apresentadas.

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Essas mais tarde apareceram “[...] em uma forma escrita, em termos de uma informação sobre determinadas questões jurídicas levadas aos juristas por uma das partes, apresentadas no caso de um conflito diante de um tribunal” (FERRAZ JUNIOR, 2007, p. 50).

tais como o esporte, os trabalhos manuais e artesanais, mesmo que a autoridade venha de uma combinação de entre saber e saber-fazer. Este pode também ser reforçado pela experiência da pessoa, um saber-fazer adquirido pela prática. A autoridade também ocorre em função da pessoa pelo seu saber como conhecimento e domínio de atividade na qual exerce sua atividade intelectual em acumular conhecimento, elaborar conceitos e dominar a palavra daquele contexto.

Com o advento do cristianismo, ocorreu uma distinção essencial entre a esfera política e a religião em si, pois nessa época o homem passou a ser um animal social e não mais um animal político como se determinava na polis grega. A sociabilidade diferia da gregariedade animal devido a um novo conceito que surge: dignidade humana, que será retomado em nosso discurso atual, mas com valores diferentes. Segundo esse conceito, o homem, ao ser a imagem e semelhança de Deus, era livre e possuía o livre arbítrio; porém, para ter a salvação, seu destino deveria obedecer à Ordem Divina que se estabelecia pela lei, como expressão máxima (FERRAZ JUNIOR, 2007).

Aqui, o Direito não perdeu seu caráter sagrado, mas diferia do que pensavam os romanos quanto à sacralidade, que, para eles, era imanente, ou seja, com caráter mítico da fundação, que referencia aos antepassados e aos costumes advindos dali.

Os saberes prudenciais da Idade Média deviam conhecer e interpretar a ordem de maneira peculiar, já que esses eram saberes distintos, ainda que houvesse certa subordinação; ao passo que, para os romanos, o Direito era um saber das coisas divinas e humanas.

Assim, a religião ficou lado a lado com o governo, mas de forma a controlar o poder do governante e exercer o seu poder, o que se perpetuará pelo Direito canônico, interferindo nas legislações dos países cristãos, inclusive no nosso Direito oriundo do Direito europeu, mais especificamente do Direito português, quando as normas aplicáveis no Brasil eram provenientes de Portugal, Estado católico, cuja religião veio como um dos amálgamas do nosso Direito brasileiro. Como exemplo do afirmado, observamos que a Constituição de 1824 trouxe a fé católica como religião oficial. A Constituição Imperial instituiu um Estado confessional com vínculos jurídicos entre o Poder Político e uma Religião. Somente houve mudança significativa quanto às questões religiosas pelo Estado com a Proclamação da República, pois os republicanos queriam separar a ligação oficial do Estado com a Igreja Católica, o que levou ao Decreto nº 119-A, de 07/01/1890, de autoria de Ruy Barbosa, o qual instituiu o Estado laico, transformando a relação entre Religião e Estado. A determinação de Estado laico é Estado leigo, secular em oposição a Estado eclesiástico (MICHAELIS,n.d). Lafer (2009, p. 226) define laico como “tanto o que é independente de qualquer confissão

religiosa quanto o relativo ao mundo da vida civil”. Assim, “em um Estado laico, as normas religiosas das diversas confissões são conselhos dirigidos aos seus fiéis e não comandos para toda a sociedade” (LAFER, 2009, p. 228) (Grifo nosso).

A laicidade é de suma importância para compreendermos o enfoca da nossa pesquisa, uma vez que iniciamos discutindo a questão da vida e de qual vida haveria a necessidade de proteção, ou seja, deveria ser protegida, mas, por ora, chegamos a questão de direitos de liberdade da mulher que envolve o direito à autonomia procriadora, como decorrência mais elementar daquele direito. Para Lafer (2009, p. 226),

Uma primeira dimensão da laicidade é de ordem filosófico-metodológica, com suas implicações para a convivência coletiva. Nesta dimensão, o espírito laico, que

caracteriza a modernidade, é um modo de pensar que confia o destino da esfera secular dos homens à razão crítica e ao debate, e não aos impulsos da fé e às asserções de verdades reveladas. Isto não significa desconsiderar o valor e a

relevância de uma fé autêntica, mas atribui à livre consciência do indivíduo a

adesão, ou não, a uma religião. O modo de pensar laico está na raiz do princípio da tolerância, base da liberdade de crença e da liberdade de opinião e de pensamento (Grifo nosso).

Um dos exemplos que podemos citar para demonstrar tal fato é a evolução, regulamentação e instituição do divórcio, porque o tema é diretamente ligado com a questão religiosa e os dogmas, porque “A história do divórcio no Brasil traduz uma árdua e calorosa batalha legislativa e social, decorrente de longa e histórica tradição antidivorcista, sustentada basicamente pela Igreja, que erige o casamento em sacramento” (VENOSA, 2007, p. 187).

Resquício do discurso religioso está no Preâmbulo da Constituição de 1988 ao trazer os dizeres “sob a proteção de Deus”, há uma grande discussão quanto a essa menção, pois alguns doutrinadores defendem que os dizeres iriam de encontro com a Liberdade Religiosa. Contudo, Mendes e Branco (2016, p. 28) dizem que há uma

crença generalizada, de resto assumida igualmente pela jurisprudência pátria, de que esse texto inaugural não faz parte da Constituição, carecendo, portanto, de força normativa, muito embora lhe sirva de fórmula política e de vetor interpretativo, na medida em que transmite a mensagem urbi et orbi do legislador constituinte, revelando a origem do seu mandato jurídico-político e aquilo a que ele está obrigado para bem e fielmente exercer os poderes que, nessa procuração, lhe outorga o povo — como detentor inicial, autônomo e incondicionado da soberania nacional —, em momentos singularmente críticos da sua história.

Percebemos que o social atravessa o Direito; ainda que não seja recepcionado diretamente como interveniente do sistema, a expressão está lá. Então, o Direito é influenciado diretamente pelo discurso religioso e os valores que ele professa. O Código Penal não é exceção. Observando-se o período de sua instituição (1942), compreendemos

valores nele inseridos que constroem a doxa da época na imposição do aborto como comportamento típico, ou seja, enquadrado na norma legal, situação propagada culturalmente no universo jurídico internacional também, como se demonstrará no próximo tópico.