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CAPÍTULO 1 – O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: contextualização histórica,

1.5 A APLICAÇÃO DO DIREITO: QUESTÕES HERMENÊUTICAS

1.5.1 Métodos de interpretação constitucional

Cegos pela estupidez, não viam que cada lugar da caminhada estava cheio de beleza. A felicidade não se encontra no final. Dito pelo Guimarães Rosa: “a coisa não esta nem na partida nem na chegada, está é na travessia.” (Rubem Alves)

Com o Estado Social, as constituições assumem a forma de autênticos pactos reguladores de sociedades heterogêneas e pluralistas, na qual há grupos e classes com interesses antagônicos e contraditórios. Isso possibilita uma nova interpretação constitucional, que

[...] já não se volve para a vontade do legislador ou da lei, senão que se entrega à vontade do intérprete ou do juiz, num Estado que deixa assim de ser o Estado de Direito clássico para se converter em Estado de justiça, único onde é fácil a

união do jurídico com o social (BONAVIDES, 1994, p, 424) (Grifos nossos).

Com a junção do jurídico e do social, os modernos métodos de interpretação constitucional caracterizam-se, pois, pelo abandono do formalismo clássico, pensado a partir de um Direito privado, e pela construção de uma hermenêutica pensada em um Direito público, capaz de dar conta da complexidade da Constituição e de suas especificidades para a construção de uma hermenêutica material da Constituição, dentre os quais podem ser destacados três, todos formulados por alemães: a) método integrativo ou científico-espiritual; b) método tópico; c) método concretista (BONAVIDES, 1994, p. 434).

No método integrativo ou científico-espiritual, temos a definição de Constituição como “[...] um conjunto de distintos fatores integrativos com distintos graus de legitimidade. Esses fatores são a parte fundamental do sistema, tanto quanto o território é a sua parte mais concreta.” (BONAVIDES, 1994, p.436).

Assim, o intérprete constitucional deverá

[...] prender-se sempre à realidade da vida, à “concretude” da existência, compreendida esta sobretudo pelo que tem de espiritual, enquanto processo unitário e renovador da própria realidade, submetida à lei de sua integração (BONAVIDES, 1994, p.436).

Nessa teoria, a busca pelo “espírito da Constituição” e fatores extraconstitucionais são considerados, como um sistema de valores e um elemento de integração comunitário (integrativo). Assim, a base de valoração, ou seja, os valores expressos e tutelados pela Constituição (econômicos, sociais, políticos e culturais) operam como valores de interpretação coletivos dos cidadãos e devem ser compreendidos e aplicados. Por isso, é conhecido como método valorativo ao recepcionar que algumas partes da Constituição teriam apenas valores e não normas, como, por exemplo, o preâmbulo da CRFB/88. Nessa teoria

considera-se, além dos valores, a realidade social de cada momento histórico. Concordamos com Canotilho (1993) quando diz que esse método tem feição mais política do que jurídica, podendo, com isso, gerar uma indeterminabilidade e mutabilidade de resultados, podendo promover certa insegurança jurídica.

O método tópico, desenvolvido por Theodor Viehweg e Josef Esser, sendo de autoria do primeiro a obra “Tópica e Jurisprudência”, publicada em 1953, caracteriza-se como uma “arte de invenção” e, como tal, uma “técnica de pensar o problema”, elegendo-se o critério ou os critérios recomendáveis para uma solução adequada (BONAVIDES, 1994). Viehweg (2008) insurge contra a forma de pensamento sistemático e apresenta a importância de outra forma de pensamento: o problemático, considerando esse mais adequado, pois permite dar valor às peculiaridades de cada caso ao invés de cair no formalismo do pensamento sistemático. Segundo Viehweg (2008, p. 34), o conceito de problema utilizado pelo método é

[...] qualquer questão que consinta aparentemente mais de uma resposta e que pressuponha, necessariamente, uma compreensão provisória conforme a qual toma o cariz da questão que se deve levar a sério, justamente se buscará, pois, uma resposta única como solução.

Como podemos perceber, esse método retoma a tópica aristotélica, modificada pelo viés ciceroniano criando o debate a fim de buscar a solução do problema. A tópica é atribuída a Aristóteles, quando tratou do método de investigação que permitisse ao ouvinte raciocinar sobre problemas partindo de opiniões geralmente aceitas,

Nosso tratado se propõe encontrar um método de investigação graças ao qual possamos raciocinar, partindo de opiniões geralmente aceitas, sobre qualquer problema que nos seja proposto, e sejamos também capazes, quando replicamos a um argumento, de evitar dizer alguma coisa que nos cause embaraços (ARISTÓTELES, 1973, 100a §18).

Nesse sentido, tópico ou tópica é proveniente da palavra topos, cujo plural é topöi. Os

topöi podem ser considerados esquemas de pensamento, formas de raciocínio, de

argumentação, pontos de vista ou lugares comuns. Esses pontos de vista são extraídos de vários lugares, tais como jurisprudência dominante, senso comum, doutrina, princípios gerais do direito, dos quais se servem os operadores do Direito (NOVELINO, 2009). Assim,

Da tópica clássica, concebida como uma simples técnica de argumentação, a corrente restauradora, [...], compôs um método fecundo de tratar e conhecer o

problema por via do debate e da descoberta de argumentos ou formas de

argumentação que possam, de maneira relevante e persuasiva, contribuir para solucioná-lo satisfatoriamente (BONAVIDES, 1994, p.449) (Grifos nossos).

A principal crítica feita a esse método é a de que “além de poder conduzir a um casuísmo sem limites, a interpretação não deve partir do problema para a norma, mas desta para os problemas” (CANOTILHO, 1993, p. 210). Com a tópica, a norma e o sistema perdem o primado: são rebaixados à condição de meros pontos de vista ou topöi, cedendo lugar à hegemonia do problema, formando-se algo antissistêmico. No entanto, Perelman e Olbrechts- Tyteca (2000, p. 130) entendem que a tópica não se opõe à ideia de sistema, pois,

[...] ante à aplicação rígida e irrefletida das regras de direito. Permite, ao contrário, o desenvolvimento de argumentos jurídicos, de controvérsias em que, tendo sido evocados todos os pontos de vista, poderá ser tomada uma decisão ponderada e satisfatória. Como a segurança é um dos valores centrais no direito, que

contribui para o respeito às regras do direito, dos precedentes, dos costumes e hábitos sociais, os partidários dos tópicos jurídicos jamais podem perder de vista os inconvenientes da incerteza em matéria de direito (Grifos nossos).

Os autores consideram os tópicos como princípios58, os quais fundamentam o ponto de partida de uma decisão. A possibilidade de recurso aos princípios gerais de Direito deve vir acompanhado de uma escolha legitimada pelo auditório, amplamente reconhecido pelo senso comum, embasado nos princípios gerais do Direito, cujo grau de importância aumentou após a Segunda Guerra Mundial.

Os tópicos jurídicos podem ser entendidos não como uma forma de enfraquecimento do pensamento sistemático, mas como uma maneira de problematizar, ou seja, de aprofundar questões que se colocam no bojo de uma discussão. Ao invés de banalizar o uso de argumentos, valoriza-os na medida em que desenvolvem o raciocínio no âmbito de um discurso jurídico. Na verdade, são eles que movimentam a endoxa e permitem a argumentação jurídica pelos raciocínios, como uma especificidade da argumentação geral.

É por isso que Perelman (2000) afirma que a utilização dos tópicos jurídicos significa ao invés de impor um dogmática e prática, elaborar uma práxis que guia-se por raciocínios jurídicos, assim, não impor Direito à razão e à justiça, mas conciliá-los.

Assim é que suas contribuições mostram-se inseparáveis do paradigma retórico- argumentativo, no qual se inserem, cuja temática retornará quando tratarmos das questões argumentativas a respeito dos valores, baseada na perspectiva de Amossy (2006; 2010). O

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Perelman recorre aos princípios gerais de direito elaborados por Gerhard Struck em Jurisprudência Tópica, dentre os quais se destacam: o lex posterior derogat legi priori, Lex especialis derogat legi generali; in dubio

pro reo o in dubio pro libertate. Ainda, segundo Szynwelski, (2004, n.d) “ChaimPerelman faz mencão ao

catálogo de sessenta e quatro lugares jurídicos contidos no livro Jurisprudência Tópica (TopischeJurisprudenz), de Gerhard Struck, indicando algumas amostras que contem princípios gerais do Direito, máximas ou adágios, entre os quais: lei posterior revoga lei anterior; coisa julgada e tida como verdade; o pretor não se ocupa de questões insignificantes; a condenação não pode ultrapassar o requerido; in dubio pro reo; as exceções tem interpretação escrita; na duvida, deve-se dividir em partes iguais; o silêncio não obriga a nada; o Direito exige sanções.

método ora analisado não exclui a possibilidade de utilização conjunta do método concretista, desenvolvido por três juristas: Konrad Hesse, Friedrich Müller e Peter Häberle, sendo que, este último é considerado o mentor do STF. Aqui, cada um deles ofereceu valiosas contribuições para o desenvolvimento desse método. Dessa forma, o método se complementa através de três elementos essenciais: a norma que vai concretizar, a compreensão prévia do intérprete e o problema concreto a solucionar. Nesse sentido,

Os intérpretes concretistas têm da Constituição normativa uma concepção diferente daquela esposada pelos adeptos de outros métodos, porquanto não consideram a

Constituição um sistema hierárquico-axiológico, como os partidários da interpretação integrativa ou científico-espiritual, nem como um sistema lógico- sistemático, como os positivistas mais modernos. Ao contrário, rejeitam o

emprego da idéia de sistema e unidade da Constituição normativa, aplicando um

“procedimento tópico” de interpretação, que busca orientações, pontos de vista ou critérios-chaves, adotados consoante a norma e o problema a ser objeto de concretização. É uma espécie de metodologia positivista, de teor empírico e casuístico, que aplica as categorias constitucionais à solução direta dos problemas, sempre atenta a uma realidade concreta, impossível de conter-se em formalismos meramente abstratos ou explicar-se pela fundamentação lógica e clássica dos silogismos jurídicos (BONAVIDES, 1994, p.440) (Grifo nosso).

Para compreender melhor esse método, é necessário descrever as contribuições de cada autor. Assim, o método concretista para Hesse diz que o teor da norma só se completa no ato interpretativo e a concretização da norma pelo intérprete pressupõe uma compreensão desta; essa compreensão pressupõe uma pré-compreensão. Streck (2000, p. 244) apresenta o desenvolvimento lógico de Hesse:

Assim, partindo de Gadamer, Hesse mostra como o momento da pré-compreensão determina o processo de concretização: a concretização pressupõe a compreensão do conteúdo do texto jurídico a concretizar, a qual não cabe desvincular nem da pré- compreensão do intérprete nem do problema concreto a solucionar. O intérprete

não pode captar o conteúdo da norma desde o ponto de vista quase arquimédico situado fora da existência histórica, senão unicamente desde a concreta situação histórica na qual se encontra, cuja elaboração (maturidade) conformou seus hábitos mentais, condicionando seus conhecimentos e seus pré- juízos (Grifos nossos).

Para Hesse, a concretização e a compreensão só são possíveis em face de problema concreto, sendo um único processo a determinação do sentido da norma constitucional e a sua aplicação ao caso concreto.

Finalmente, a interpretação tem significado decisivo para a consolidação e preservação da força normativa da Constituição. A interpretação constitucional está submetida ao princípio da ótima concretização da norma (“GebotoptimalerVerklichung der Norm”). Evidentemente, esse princípio não pode ser aplicado com base nos meios fornecidos pela subsunção lógica e pela construção conceitual. Se o Direito e, sobretudo a Constituição, têm a sua eficácia condicionada pelos fatos concretos da vida, não se afigura possível que a interpretação faça desta tábula rasa. Ela há de contemplar essas condicionantes, correlacionando-as com as

proposições normativas da Constituição. A interpretação adequada é aquela que

consegue concretizar, de forma excelente, o sentido (Sinn) da proposição normativa dentro das condições reais dominantes numa determina da situação

(HESSE, 1991, p. 22) (Grifos nosso).

Verificamos que estão envolvidos nesse método três elementos básicos: como já dito, o problema a ser resolvido, que não se resolva pela aplicação dos outros métodos; a norma a

ser aplicada e concretizada; a compreensão prévia do intérprete (ideia de um círculo fechado

de intérpretes), sendo que essa compreensão seria tanto do problema como da norma a ser concretizada (NOVELINO, 2009). Não é a concepção concretista realizada pelo STF, tendo em vista que não é qualquer um que deveria interpretar a constituição.

Friedrich Müller“tem sua base medular ou inspiração maior na tópica, a que ele faz alguns reparos, modificando-a em diversos pontos para poder chegar aos resultados da metodologia proposta” (BONAVIDES, 1994, p. 456). Segundo Canotilho (1993, p. 215), para Friedrich Müller, o “texto de um preceito jurídico positivo é apenas a parte descoberta do iceberg normativo”, que se transforma no programa normativo, após ser interpretado. Além do texto, a norma constitucional compreende também um domínio normativo, isto é, pedaço da realidade concreta, que o programa normativo só parcialmente contempla.

Assim, a norma constitucional não se confunde com o texto da norma. Ela é mais que isso: é formada pelo programa normativo e pelo domínio normativo. O programa normativo compreende tanto o texto da norma quanto a norma propriamente dita, isso porque o texto é apenas a forma de exteriorização da norma. Nesse método, o texto tem duas funções: dirige e

limita a interpretação. A norma é o comando que se extrai da norma interpretativa, que só se

consumaria a partir da interpretação. O domínio normativo é a realidade social tratado pelo texto da norma, regulada pela norma (NOVELINO, 2009). Nesse sentido, “[...] a interpretação ou concretização de uma norma transcende a interpretação do texto, ao contrário, portanto, do que acontece com os processos hermenêuticos tradicionais no campo jurídico” (BONAVIDES, 1994, p. 456).

Insta salientar que a “análise dos dados linguísticos (programa normativo) e a análise dos dados reais (domínio normativo) são dois processos parciais, separados entre si, dentro do processo de concretização” (CANOTILHO, 2003, p. 216), cabendo ao intérprete da norma articular tais processos. Assim, a normatividade constitucional consiste no efeito global da norma com seus dois componentes (programa normativo e domínio normativo), no processo de concretização, que só se completa quando se chega à norma de decisão, isto é, à norma aplicável ao caso concreto.

Enfim, a teoria de Peter Härbele (1997, p. 13) (mentor do STF), a qual propõe o seguinte:

[...] no processo de interpretação constitucional estão potencialmente vinculados todos os órgãos estatais, todas as potências públicas, todos os cidadãos e grupos,

não sendo possível estabelecer-se um elenco cerrado ou fixado com numerus clausus de intérpretes da Constituição. Interpretação constitucional tem sido, até

agora, conscientemente, coisa de uma sociedade fechada. Dela tomam parte apenas os intérpretes jurídicos “vinculados às corporações” e aqueles participantes formais do processo constitucional. A interpretação constitucional é, em realidade, mais

um elemento da sociedade aberta. Todas as potências públicas, participantes

materiais do processo social, estão nela envolvidas, sendo ela, a um só tempo, elemento resultante da sociedade aberta e um elemento formador ou constituinte dessa sociedade [...] Os critérios de interpretação constitucional hão de ser tanto

mais abertos quanto mais pluralista for a sociedade.

O método concretista da sociedade aberta de Peter Häberle é contrário ao que defende Hesse, quanto a ideia de um círculo fechado de intérpretes, quando se coloca como pressuposto da aplicação concretista a compreensão prévia do intérprete. O método de Häberle é a própria ideologia democrática59, por isso demanda, na sociedade em que for aplicado, alguns requisitos fundamentais, tais como sólido consenso democrático, instituições

fortes e cultura política desenvolvida. Esses pressupostos normalmente não são encontrados

em sistemas sociais e políticos subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, mas é o adotado pelo STF, ainda que nossa sociedade não tenha. Há três pontos balizadores deste método: o alargamento do círculo de intérprete da Constituição; o conceito de interpretação como um processo aberto e público; a referência desse conceito à Constituição mesma, como realidade constituída e “publicização” (BONAVIDES, 1994).

Para Novelino (2009), a teoria de Häberle realmente não seria um método de interpretação, mas sim uma análise relativa ao círculo hermenêutico, ou seja, sobre quem deve interpretar a Constituição, o que nos interessa na presente pesquisa, pois disso demandaria a questão de quem teria legitimidade para a interpretação60. Quanto a esse ponto, como já dito, a teoria de Häberle estaria em contraposição à teoria de Hesse que prevê um legítimo intérprete.

Além disso, temos que pensar que a democracia, na verdade, dever ser um espaço social do dissenso, das disputas, das pluralidades, e mesmo que o consenso ocorra a partir do dissenso, esse consenso não seria instável, pois novos dissensos poderiam já surgir a partir daquele momento.

59

Existem críticas a respeito da democracia prevista por Häberle nas quais se considerada como falácia o ideal democrático quanto aos requisitos apontados.

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