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CAPÍTULO 1 – O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: contextualização histórica,

1.3 SISTEMAS FUNDAMENTADORES DA APLICAÇÃO DA NORMA NO DIREITO

Há hoje, no mundo jurídico, dois sistemas principais: o romano-germânico – Civil Law

ou Continental Law – e o anglo-saxão – Common Law, cuja expressão significava, o “direito

comum” a toda Inglaterra, em sua origem (DAVID, 2002, p. 359). Apesar de na atualidade esses sistemas servirem apenas como forma didática, precisamos compreender que interferiram na aplicação do Direito e na constituição do STF. Nesse sentido, continuamos a exposição, pois os sistemas contrastam historicamente pela permanência da tradição oral do segundo e pelo imperativo da escrita no primeiro. Mesmo que também haja normatização no sistema Common Law, o anglo-saxão é o sistema jurídico derivado do sistema aplicado na Inglaterra medieval e que é utilizado em grande parte dos territórios que têm influência britânica.

Esse sistema baseia-se, sobretudo, na análise das sentenças judiciais ditadas pelo mesmo tribunal ou algum de seus tribunais superiores (tribunais de recursos). É um sistema de precedentes, que se fundamenta na lei não escrita, no Direito jurisprudencial e nos costumes. Nele, julgamentos locais e específicos, como em casos considerados inéditos, costumam dar origem a novas regras.

Já o sistema romano-germânico se alicerça na lei devidamente positivada e codificada que orienta a aplicação da lei. Nesse sistema, há competências distintas e mais rígidas entre o julgar (Poder Judiciário) e o legislar (Poder Legislativo). Esse sistema decorre dos princípios e regras dos antigos direitos romano e canônico, os quais, associados aos costumes dos povos germânicos, que definitivamente ocuparam a Europa central após o século V d.C., formaram um conjunto elaborado de normas jurídicas que estão na base dos ordenamentos dos países

direta ou indiretamente influenciados pelas nações do continente europeu (LIMA, 2013). Essas normas foram organizadas pelos sistemas de codificação e compilação, pois,

[...] o direito não poderia continuar dominado pela tradição e pela autoridade. A razão humana deveria tomar a seu cargo um projeto de renovação dos ordenamentos jurídicos. As regras deveriam se claras e facilmente reconhecíveis. Não deveriam se contradizer. Antes, deveriam participar de um sistema coerentes (SOARES ROBERTO, 2003, p. 22).

Com essa perspectiva de completude, clareza e sistemática, o sistema normativo brasileiro, baseado nas normas portuguesas, foi baseado no Civil Law, sistema romano- germano, similar ao sistema europeu, e não no Commow Law, sistema anglo-saxão, em que se baseia o sistema norte americano. Perceberemos mais a frente uma duplicidade de aplicações pela inserção dos dois sistemas de aplicação normativa e, consequentemente, de controle de constitucionalidade, oriundos de concepções diferentes no STF.

Embora para David (2002, p. 65), a “codificação constitui a realização natural da concepção mantida e de toda obra empreendida desde há séculos nas universidades”, ressalta o autor que todo acontecimento social trouxe profundas alterações no estudo do Direito, apresentando consequências tanto positivas como negativas. A positiva está ligada ao fato de o processo de codificação ter embalado a expansão do Direito romano-germânico na Europa e fora dela, como no caso do Brasil, contribuindo também para a unidade do sistema. A negativa se apresentou ante a possibilidade dos juristas se concentrarem somente em seus códigos, abandonando a visão que outrora tinham do Direito, baseado em normas de condutas sociais, e se conformando com um positivismo legislativo (DAVID, 2002)31. Isso foi decorrente de um pensamento ligado a Montesquieu a respeito do juiz ser apenas a boca da lei (SOARES ROBERTO, 2003).

Assim, o processo de compilação, organização e sistematização de diversas normas, princípios e regras sobre relações jurídicas de natureza comum ou pertencentes a determinado ramo do direito corresponde a um caminhar histórico e cultural de grande significado político e jurídico para a sociedade organizada. Dessa forma, se a edição dos Códigos foi, num primeiro momento, apta a conferir segurança jurídica, atualmente não é mais capaz de atender

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A Escola da Exegese, que foi a primeira a ser utilizada como hermenêutica para a interpretação do Código de Napoleão,apresentava a perspectiva de que a interpretação do texto legal esta no próprio Código, devendo o magistrado ater-se a vontade do legislador, sendo apenas a “boca da lei”. “[...] começava a tomar corpo na França um movimento que acreditava na perfeição do Código [de Napoleão] e, portanto, julgava desnecessário realizar qualquer interpretação. À ciência do direito cabia apenas estudá-lo e explicá-lo. Aos juízes tão-somente aplicá-lo” (SOARES ROBERTO, 2003, p 42). Como percebemos, a noção de completude, na tentativa de evitar o que ocorria anteriormente com a tradição e autoridade, reforçou o estereótipo do juiz buscar a resposta de questões surgidas no procedimento dentro da própria lei.

às novas demandas sociais, pois o Direito demonstrou ser história viva, por isso consiste em ato de presunção a ideia de aprisioná-lo em textos, ainda que bem escritos.

Na perspectiva de Grossi (2006), a codificação exerce função de controle e vinculação ao poder político, inserindo nesse o direito privado caracterizado pela liberalidade das partes, já que proporciona a estatalidade do Direito. É nesse ponto que o Estado tornou-se o único ente capaz de “transformar em jurídica uma norma estatal” (GROSSI, 2006, p.52).

O Direito pode ser situado como voz normativa do Estado, a qual hoje tem sido questionada, tendo em vista os princípios democráticos caracterizadores dos ordenamentos jurídicos modernos. O próprio sistema de democracia indireta tem sido questionado ao se verificar o teor das normas realizadas com o intuito de ser norma abstrata de aplicação geral a toda sociedade. A abertura do processo decisório a procedimentos democráticos (citamos a própria AP, mas anteriormente a ela a possibilidade de sua realização no Poder Legislativo, e outros institutos inseridos nos sistemas político, jurídico) permitem novos procedimentos legitimadores do sistema jurídico, e não mais somente a norma será legitimadora de sua aplicabilidade e interpretação, como era antigamente.32

No Brasil, como já dito, o sistema adotado define que a lei por si só é suficiente e plenamente aplicável, limitando a aplicação e interpretação da norma pelo juiz aos casos concretos. É o que está determinado pela CRFB/88, em seu artigo 5º, II, ao estabelecer que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (BRASIL, 1988). Porém, há uma peculiaridade no sistema brasileiro, que está no controle de constitucionalidade, o qual pode ser realizado por qualquer juiz ou tribunal e não somente por um tribunal constitucional, quando o juiz de primeira instância poderá negar aplicação de uma lei, se, no caso concreto, deparar-se com uma situação em que a lei está em desacordo com a Constituição Federal ou os princípios dela decorrentes, ou ainda quando a aplicação da lei gerar inconstitucionalidade no caso concreto33.

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Temos que compreender que a tradição e a autoridade que sustentavam a sociedade até o desenvolvimento da codificação, que passou a ser orientada pela razão humana, a qual deveria criar um projeto de renovação do Ordenamento Jurídico, com regras claras, reconhecíveis facilmente, sem contradição, ou seja, um sistema coerente, que se sustentou em uma autoridade do Direito Natural, cujo fundamento seria “o Direito das Gentes que pudesse ser universalmente reconhecido” (SOARES ROBERTO, 2003, p. 24).

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Sabemos que a Constituição é também uma lei, mas uma lei máxima, então, quando o juiz aplica a Constituição ele aplica a lei, porém, nem tudo que está na Constituição tem caráter constitucional, há uma distinção entre os assuntos que seriam constitucionais e os que estariam na Constituição, mas não teriam caráter constitucional. É o que a teoria do Direito chama de constituição material, a qual diz respeito ao essencial à estruturação do Estado, à regulação do exercício do poder e ao reconhecimento dos direitos fundamentais, e de constituição formal, que são os assuntos inseridos na Constituição, mas que não estão incluídos no conteúdo material.

Esse processo é semelhante ao que ocorre no Commow Law, quando as normas são definidas por tribunais e suas decisões podem ser utilizadas como precedentes. Nesse, os códigos não pretendem coibir a interpretação da lei, razão pela qual, se houver um conflito entre uma lei codificada e uma norma criada pelo sistema (precedente), ficará a encargo do juiz interpretar qual das duas deve ser aplicada. Neste aspecto, o nosso Direito muito se aproxima do sistema americano, com a diferença de que o juiz americano está vinculado aos precedentes e à decisão de sua Suprema Corte, caso contrário, põe em risco a unificação da interpretação das leis infraconstitucionais, bem como todo significado atribuído a sua Constituição, já que o sistema americano é baseado nessa estrutura de unificação desencadeada pelas decisões.

Além disso, a atribuição do STF de Tribunal Constitucional foi fundamentada na Corte americana. Assim, percebemos que a interferência não foi apenas em sua criação, mas estendesse aos dias atuais:

Atualmente o Supremo Tribunal Federal caminha para um sistema

precedencialista (stare decisis), como o existente nos países que seguem o sistema da commom law, sem, contudo, limitar o direito de ação ou de petição de

todos os jurisdicionados, trazendo para o Poder Judiciário Brasileiro um sistema

misto, criando certas vinculações aos demais órgãos do Poder Judiciário e da Administração Pública, mantendo o livre convencimento de todos os julgadores e sem interferir indevidamente no Poder Executivo (ORTÉGA, 2009, n.d.)

(Grifos nossos).

Há, então, um amálgama entre as aplicações determinadas pelo Civil Law e pelo

Common Law no STF. É necessário frisar que não há uma correta correlação, mas verificamos

uma nova modalidade formando-se na aplicação do Direito, principalmente quando se analisa o discurso jurídico construído nesse Tribunal.

É importante estabelecer que todo sistema jurídico, seja Civil Law ou Common Law,é um conjunto de todas as fontes formais na busca do que se considera justo, por meio de um processo de interpretação/aplicação (concreção), fazendo incidir as várias situações por meio de processos argumentativos, lógicos e silogísticos. Dessa forma, o sistema brasileiro trabalha casuisticamente, com cada uma das possibilidades geradas pelos dois sistemas34, com institutos jurídicos determinados normativamente (dogmaticamente), ainda que oriundos de outras esferas de conhecimento.

O controle difuso segue a concepção americana (Common Law) e o controle concentrado segue as determinações ofertadas pelo Direito europeu (Civil Law), formando, na

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Apesar da sistemática brasileira hoje permanecer sobre a determinação de aplicação da norma e não da jurisprudência, é possível ver novas inferências como as súmulas vinculantes.

verdade, um sistema único e específico, diferente do que ocorre no sistema europeu onde o sistema de controle de constitucionalidade centraliza-se na Corte Suprema.

Nessa situação, o sistema jurídico brasileiro é organizado em forma de pirâmide, no sentido kelseniano, com a Constituição no topo e o STF como responsável por manter a Supremacia da Constituição sobre todas as leis e demais atos normativos. Assim, o Princípio da Supremacia da Constituição Federal,

[...] requer que todas as situações jurídicas se conformem com os princípios e preceitos da Constituição. Essa conformidade com os ditames constitucionais, agora, não se satisfaz apenas com a atuação positiva de acordo com a Constituição. Exige mais, pois omitir a aplicação de normas constitucionais, quando a constituição assim a determina, também constitui conduta inconstitucional (SILVA, 2005, p. 46).

Isso será feito através do Controle de Constitucionalidade, que poderá ser difuso ou concentrado. Este último é de competência exclusiva do Tribunal Constitucional, fundamentada nas Cortes Constitucionais europeias, e o primeiro pode ser feito por qualquer Juiz, em conformidade ao que ocorre no sistema jurídico americano.

Além disso, alguns instrumentos jurídicos em que o casuístico passa a ser fonte do Direito vêm sendo adotados no sistema jurídico brasileiro, como a súmula vinculante35 (conjunto de decisões de um Tribunal Superior. Essas decisões são relativas a casos que tratam de temas parecidos e que são julgados de maneira semelhante), ainda que no Brasil permaneça o sistema de aplicação da norma e não da jurisprudência (Civil Law x Common

Law). Assim, as decisões do STF tornam-se elementos fundamentadores, principalmente

quando se trata dessas súmulas vinculantes, que não é o tema do presente trabalho, mas que precisava ser apresentada por ser decorrente de decisões do STF recorrentes sobre determinado assunto, envolvendo a aplicação de precedentes e não apenas da norma, consagrando uma mescla na aplicação do Direito entre os dois sistemas, como já dito.

Há situações, por exemplo, em que, por causa do assunto tratado, o STF poderia unificar o julgamento de ações decorrentes de controle concentrado e de ações decorrentes de controle difuso oriundas de recursos próprios. Outros institutos como o amicus curiae e a própria AP são inspirações oriundas da Common Law e aplicadas processualmente na Jurisdição Constitucional.

Após a rápida exposição sobre cada sistema, percebemos claramente a mistura de sistemas no Direito brasileiro, que ocorre logo que a Casa de Suplicação (Corte de Apelação)

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A partir de 2004, com a EC n º 45, a Jurisprudência que for votada e aprovada pelo STF, por pelo menos 2/3 do plenário, torna-se um entendimento obrigatório, que todos os outros tribunais e juízes, bem como a Administração Pública, terão que seguir.

é criada no Brasil Colônia e, em seguida, transformada em Supremo Tribunal de Justiça, na Primeira República.

Seguindo o objetivo de apresentar um panorama sobre nosso objeto de pesquisa, apresentaremos no próximo tópico a respeito do papel político-jurídico do STF, perspectiva importante para a implantação do nosso objeto de pesquisa: a AP.