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O município de Campinas/SP foi eleito como campo de estudo desta pesquisa por apresentar especificidade com relação à organização da rede de saúde, que confere um destaque no território nacional, servindo de referência para outras cidades e programas propostos. Há que se declarar o papel da participação popular e da atuação dos trabalhadores de saúde, na defesa do modelo, na formulação de políticas e na inovação de arranjos democráticos de gestão (TRAPPÉ, 2012).

Nas décadas de 50 e 60, assim como em grande parte do país, em Campinas predominava o exercício da medicina privada e de caráter individual, sendo que os serviços de saúde pública limitavam-se à vacinação, à puericultura, ao controle de moléstias infecto-contagiosas e outros, voltados, particularmente, à população pobre excluída dos serviços previdenciários.

Na década de 70, o município passou a organizar os serviços públicos de saúde por meio do modelo da Atenção Primária em Saúde, com a criação dos Postos de Saúde Comunitária. Fruto do movimento popular, estes serviços contavam com médicos e auxiliares de enfermagem, trabalhando numa lógica de educação em saúde e com enfoque na comunidade. Campinas foi um município pioneiro a implantar uma rede básica de atenção à saúde influenciada pela proposta de medicina comunitária.

A partir de 1977, os programas de Medicina Comunitária desenvolvidos pelos Departamentos de Medicina Preventiva da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas) e da Unicamp, simultaneamente às iniciativas das secretarias de saúde dos municípios de Niterói, Montes Claros e Londrina, constituíram-se projetos piloto de implantação de modelos alternativos de atenção à saúde no movimento sanitário, contribuindo substancialmente para o processo de Reforma Sanitária brasileira (NASCIMENTO, 2006, p. 54).

Os Postos de Saúde Comunitária foram estruturados na região periférica da cidade e em zonas rurais, atendendo às necessidades daquela parcela da população. As ações desenvolvidas abrangiam o atendimento à criança, ao adulto e à gestante, seguindo a programação da Secretaria de Estado da Saúde. Aos poucos, outros atendimentos foram sendo incorporados, tais como: assistência às doenças crônicas (Diabetes e Hipertensão Arterial), à saúde mental, saúde bucal e vacinação.

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Nesse período ocorreram duas situações: alocação de equipes mínimas de saúde mental (psicólogo, assistente social, psiquiatra e, posteriormente, terapeuta ocupacional) na rede básica, com oferta de atendimento nessa área; e, no final desta década, a ampliação da rede de postos de saúde, na perspectiva do modelo de Medicina Comunitária e da participação popular, devido a um processo de explosão urbana com grande crescimento do número de favelas, decorrente de intenso surto migratório, especialmente na periferia.

Em 1978, ocorreu a contratação das 3 primeiras enfermeiras na Secretaria Municipal de Saúde (SMS) para atuarem nos postos de saúde, com a função de assumir atividades assistenciais de promoção, proteção e recuperação da saúde, de organização do trabalho, assim como a coordenação do processo de recrutamento, seleção, treinamento e educação em serviço do pessoal auxiliar. Em 1989, realizou-se o primeiro concurso público da SMS para todas as categorias.

A partir de 1994, com o aumento da complexidade da rede de serviços do SUS Campinas, houve a adoção dos princípios de regionalização e descentralização dos serviços, quando foram criadas quatro Secretarias de Ação Regional. Estas foram substituídas no ano de 1997, pelos cinco Distritos de Saúde, existentes até hoje. Nesse período, as unidades de saúde existentes foram ampliadas e novos centros de saúde foram construídos, com grande investimento em contratação de recursos humanos e equipamentos para qualificar o atendimento oferecido (NASCIMENTO, 2006). A complexidade do Sistema de Saúde em Campinas levou a um processo progressivo de descentralização do planejamento em gestão da saúde. Em 1996, o município foi consolidado como gestão plena do sistema de saúde.

Em 1999, apesar de uma rede básica com 45 Centros de Saúde que ofereciam atenção ao adulto, criança e mulher, além de programas em saúde mental e bucal, constatou-se que grande parte da demanda ainda era atendida em pronto-socorros e pronto-atendimentos. O acesso à rede básica era burocratizado, com predomínio da clínica tradicional, baseada em “queixa-conduta”, focada na dimensão biológica do usuário. O trabalho era caracterizado por ações isoladas e verticais, com o desenvolvimento insuficiente de ações interdisciplinares (NASCIMENTO, 2006).

Em 2001, o município ainda não tinha adotado o Programa Saúde da Família do Ministério da Saúde e, até então, a atenção básica funcionava num modelo que subdividia a saúde (assistência e os profissionais) em programas e áreas de atenção. Na gestão 2001-2004, com o Prefeito “Toninho” e Gastão Wagner de Sousa Campos como Secretário da Saúde, a Secretaria Municipal de Saúde iniciou a implantação do Programa Paidéia para toda a rede municipal de saúde.

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Paidéia é um termo grego que indica a formação integral do ser humano e faz referência à abordagem ampliada de saúde, ou seja, para além do biológico, o entendimento de saúde enquanto fruto da sociabilidade, da afetividade, das relações sociais e com o meio ambiente (CAMPOS, 2003).

O Programa Paidéia é uma proposta que adaptou o Programa Saúde da Família do Ministério da Saúde ao contexto sanitário de Campinas, contemplando as necessidades de saúde e a construção de saúde no município. Assim, além da equipe tradicional (médico generalista, enfermagem e agentes comunitários de saúde) proposta pelo Ministério, o Paidéia propõe uma equipe ampliada com profissionais como o pediatra, ginecologista, dentista e auxiliar de consultório dentário, vinculados à equipe da atenção primária. Além disso, algumas áreas específicas, como saúde mental, saúde coletiva e reabilitação física, ficam como suporte às equipes de referência da rede básica, integrando o Apoio Matricial, com o objetivo de contribuir para a ampliação da clínica.

Em alguns municípios, o PSF foi implantado em módulos paralelos às Unidades Básicas, com funcionamentos diferentes. Em Campinas, optou-se por constituir o PSF dentro dos Centros de Saúde e recursos da rede já existentes, visando a construção de um PSF ampliado e combinado com os princípios de acolhimento, responsabilização, co-gestão, entre outros (FIGUEIREDO, 2006).

Nesse sentido, os centros de saúde organizaram e dividiram seus profissionais em equipes locais de referência, responsáveis pelo atendimento básico integral às famílias de um território delimitado. Cada uma dessas equipes era responsável por cerca de 1500 famílias adscritas. Houve uma mudança, também, na organização do trabalho que, ao invés de programas e áreas clínicas, passou a ser definida pelos usuários, por seus Projetos Terapêuticos Singulares e pelas necessidades de saúde do território.

O Paidéia buscou superar alguns limites da clínica e dos modos como os serviços se organizavam para produzir a atenção à saúde e, com isso, além da ampliação da equipe propôs inovações organizacionais com vistas à mudança do modelo médico-centrado. Dessas inovações, destacam-se espaços de discussão regulares e reuniões de equipe, presença de equipe de saúde mental na unidade básica de saúde, existência de apoio matricial, construção de Projeto Terapêutico Singular para os casos de maior risco clínico e vulnerabilidade social, grupos de

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educação e promoção à saúde, existência de gestão colegiada e participação da comunidade na gestão (ONOCKO-CAMPOS, 2012).

Com base em Campos, Nascimento (2006) aponta que as diretrizes do PSF - Paidéia são: Clínica ampliada, acolhimento e responsabilização, apoio matricial, sistema de co-gestão, cadastro de saúde da população e vinculação de famílias à equipe local de referência, e capacitação.

Frente a esse desafio de mudança de modelo de atenção, numa cidade de grande porte e com um sistema instalado e funcionando, ocorreram discussões, em toda a rede de saúde, sobre os pressupostos deste projeto. Para tanto, os esforços foram investidos no sentido da reorganização do processo de trabalho, da capacitação dos profissionais para atuação dentro desse modelo, da ampliação de unidades de saúde, da construção de módulos de Saúde da Família e contratação de recursos humanos, além da incorporação dos agentes comunitários de saúde.

Essa situação está comprovada no documento “Paidéia. A Secretaria Municipal de Saúde no Governo Democrático e Popular de Campinas” (Campinas, Caderno 0215) que apresenta dados gerais da Secretaria Municipal de Saúde, o alcance do Programa Paidéia Saúde da Família no ano de 2001 e ações propostas para 2002. Com base nesse documento, os dados apontam a contratação de 1148 profissionais para a rede básica de saúde e a capacitação de 2000 profissionais de saúde com conteúdos gerais e específicos no ano de 2001.

Chama a atenção nesse documento o respeito pela história da construção do SUS Campinas, visto que não se desconsideram as formulações anteriores, mas, respeitosamente, apontam-se as fragilidades encontradas, sem culpabilizar outros atores e/ou governos, mas sim, apresentando as diretrizes do atual governo e propondo formas de organização do sistema de saúde e do processo de trabalho. Além do embasamento teórico sobre o Paidéia, as diretrizes são bastante claras e pactuadas com os atores envolvidos (gestores, trabalhadores e população). O documento traz, ainda, apontamentos sobre o processo de trabalho e pontua o papel dos Distritos, dos Coordenadores de serviço e dos Apoiadores. O Planejamento e a Avaliação (Resultados Esperados) são colocados em pauta enquanto dispositivos que devem ser incorporados ao exercício cotidiano da gestão.

As diretrizes desse processo estão embasadas na construção conjunta com trabalhadores, gerentes de serviço e com os Conselhos Municipal e Locais de Saúde. A ideia era de que o projeto deveria estar apoiado numa política de recursos humanos que valorizasse os profissionais e conseguisse fixá-los nos serviços.

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Na prestação de contas da Secretaria, que aparece no documento supracitado, destacam-se algumas ações desenvolvidas pela Secretaria Municipal de Saúde no ano de 2001: capacitação e treinamento; disponibilização de dados estatísticos às equipes; criação de comitês (como comitê de investigações de mortes maternas e infantis); organização de fluxos e protocolos; divulgação e desburocratização.

Atualmente, apesar da denominação Estratégia Saúde da Família (por uma questão política e, inclusive para conseguir o cadastramento das equipes de saúde da família ao Ministério da Saúde, revertendo em financiamento), o modelo de atenção à saúde na rede básica de Campinas continua seguindo os preceitos do Paidéia. Ou seja, a organização da rede básica e a organização do processo de trabalho seguem o modelo Paidéia, considerando suas diretrizes e sua fundamentação teórica.

No entanto, este ideário manteve-se enquanto cultura sanitária bancada pelos trabalhadores e alguns gestores, e não defendido pela gestão da Secretaria Municipal de Saúde. Inclusive, no início do trabalho da pesquisadora na rede SUS-Campinas (pós-Paidéia), os trabalhadores, principalmente os Agentes Comunitários de Saúde, falavam com clareza e admiração do modelo Paidéia, demonstrando que o processo de trabalho, as diretrizes e metas estavam pactuadas com eles.

No ano de 2005, a Secretaria Municipal de Saúde de Campinas elaborou o documento “Reorganização da Atenção Básica na Rede Municipal” (Campinas, 2005), fruto do planejamento das ações para o sistema municipal de saúde na gestão 2005-2008. Dentre as prioridades desta gestão, apontou-se a necessidade de reorganização da Rede de Atenção Básica. O documento traz alguns títulos sobre estratégias para reorganizar a Atenção Básica e o processo de trabalho, no entanto, com um texto breve e padronizado, utilizando-se de conceitos já mencionados pelo Paidéia, como vínculo, autonomia do usuário, postura acolhedora, intersetorialidade.

Além disso, fazia uma crítica com relação às equipes ampliadas, apontando que os especialistas foram incorporados às equipes e, na verdade, eles deveriam atuar enquanto referência para as equipes de Saúde da Família para que a responsabilidade clínica e sanitária da população continuasse sendo do médico generalista. Com isso, a indicação dessa gestão foi de que a composição das equipes de Saúde da Família fosse definida a partir do perfil epidemiológico e mapeamento de risco do território, de modo que, em alguns locais, os médicos pediatras, clínicos e ginecologistas pudessem atuar como apoio para toda a unidade, não necessariamente vinculados a

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uma equipe de Saúde da Família. No entanto, na prática, esses especialistas continuaram compondo as equipes de Saúde da Família.

Com a finalidade de qualificar a atenção à saúde, o documento propôs nova cobertura por equipe de Saúde da Família, de acordo com o mapa de risco da Secretaria. Dessa forma, para áreas definidas como alto risco, a indicação foi de 3500 indivíduos (de 1000 a 1200 famílias) por equipe.

Ao contrário do Programa Paidéia, que tem como base a divisão de poder com os trabalhadores, chama a atenção neste documento o fato de não citar a participação dos trabalhadores na gestão. Aliás, pouco se fala em trabalhadores, pois grande parte das decisões estavam colocadas para a Secretaria Municipal de Saúde e para os Distritos de Saúde.

No ano de 2008, o Relatório de Gestão da Secretaria Municipal de Saúde (Campinas, 2008, a) aparece bem resumido, sem um direcionamento claro sobre os objetivos e diretrizes propostos e a metodologia a ser utilizada.

Nesse mesmo documento, a gestão aponta as ações realizadas por este governo: a ampliação do número de equipes de Saúde da Família (não está quantificado), contratação de recepcionistas para as UBS, inauguração de dois novos centros de saúde, criação das Coordenadoria de Atenção Básica e da Saúde do Idoso, fomento à qualificação da gestão a partir da operacionalização da educação permanente de coordenadores locais e apoiadores.

Em dezembro de 2008 a Secretaria Municipal de Saúde de Campinas (Campinas, 2008, b) re-edita o documento “Reorganização da Atenção Básica” de 2005, complementando este último. Seguindo as diretrizes do Ministério da Saúde, no geral, a proposta era de uma equipe para cerca de 3000 a 4000 pessoas. Com relação à vulnerabilidade e avaliação de risco, define: para áreas definidas como risco muito alto, 3500 indivíduos (de 1000 a 1200 famílias) por equipe de Saúde da Família; para risco alto, 4000 indivíduos por equipe de Saúde da Família.

Mais uma vez, chama a atenção a centralização do poder, visto que as discussões estão previstas apenas com representantes da SMS e Distritos de Saúde. Na análise deste documento, há uma sugestão de que representantes do trabalhadores e gerências locais para discussão sobre o processo de trabalho junto aos Distritos, na tentativa de garantir as diretrizes pactuadas. Isso implica concluir que as decisões e formulações da política de saúde municipal são de responsabilidade da gestão central.

Com relação às diretrizes para organizar o processo de trabalho nas unidades de saúde, estão elencadas, dentre outras: organizar ações a partir do diagnóstico da equipe local, levando em

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consideração a estrutura e os programas prioritários da SMS; planejar atividades de acordo com necessidades de saúde da população11. Até aqui, nada de novo desde o Paidéia. No entanto, além da diretriz teórica, parece não haver pactuação com trabalhadores, nem tampouco recursos e investimentos da SMS.

Desse modo, as diretrizes pensadas para Campinas estão vinculadas às propostas do Ministério da Saúde, mas parecem não levar em consideração a realidade do município. No Paidéia, as discussões eram feitas com os trabalhadores, o que possibilita pensar numa organização real e concreta do sistema, e não uma organização virtual (daquilo que a gente pensa ser).

Contudo, o que se observa desde o fim da gestão Paidéia, é uma crise de formulação política. Além da falta de investimento e de recursos, conta-se com uma ausência de diretrizes e de modelo político, não havendo um posicionamento claro do nível central. Os documentos são textos padronizados, que além de pouco orientar os profissionais, também não são divulgados ou transmitidos até eles. Além disso, pode-se citar, dentre outros, dois problemas dessa gestão que afetam diretamente a qualidade do atendimento prestado. O primeiro deles diz respeito à política de pessoal que, além dos contratos precários de trabalho e do descaso com os trabalhadores da saúde, não investe na formação e capacitação dos profissionais de saúde. O segundo, diz respeito à cobertura das equipes de Saúde da Família, pois, apesar de estabelecida a média de 4000 indivíduos por equipe, sabe-se que este número está bem além disso. No Centro de Saúde citado nesta pesquisa, por exemplo, a média é de 8000 indivíduos por equipe de Saúde da Família, o que é bastante comum entre os Centros de Saúde do município. Será possível ter Estratégia Saúde da Família nesses moldes?

Entretanto, é indiscutível os avanços conquistados no município, com relação à ampliação da cobertura, da integralidade do cuidado e do papel da atenção básica enquanto porta de entrada no sistema de saúde. Além disso, num momento de crise política e ideológica que o município vem passando, com tentativas de desmonte ao sistema público de saúde, há que se destacar o desempenho e a efetividade dos serviços quando amparados por uma gestão comprometida com o sistema de saúde e defensora dos serviços públicos. Em conjunto com profissionais competentes e militantes, com uma população participativa e Universidades reflexivas, presentes e integradas às

11 Nesse trabalho, a pesquisadora não conseguiu analisar os documentos datados a partir de 2009, pois não

foram disponibilizados pelo CETS (Centro de Educação dos Trabalhadores de Saúde), alegando inexistência de documentos com os temas solicitados (Paidéia, Relatório de Gestão, Organização da Atenção Básica).

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discussões, há uma peça-chave fundamental que é o gestor. Faz-se necessária a presença de uma gestão responsável e vinculada à causa da saúde pública, para garantir os ideais e princípios do SUS de uma maneira reflexiva e priorizando as necessidades de saúde da população.