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CAPÍTULO IV – Analisando o discurso do Trabalhador

4.2. A Triangulação de métodos

4.2.1. Categoria: Dificuldades

Esta Categoria apresenta cinco eixos: Assistência, Mau Gerenciamento da Rede, Inversão da Lógica da AB, Modelo Biomédico e Atendimento à População Migratória.

O primeiro grande eixo, Assistência, trata dos seguintes temas: recursos humanos, infraestrutura e recursos materiais, financiamento e demanda.

Com relação aos recursos humanos, os dois grupos de trabalhadores denunciaram a escassez de profissionais na AB, fato confirmado no relato da experiência da pesquisadora, assim como nos estudos de Conill (2008). As narrativas também apontam a dificuldade para reposição das vagas frente à aposentadorias, demissões, afastamentos do trabalho e/ou necessidade de ampliação de vagas pela complexidade do serviço. Neste caso, Barbosa (2010) compreende que a Lei de Responsabilidade Fiscal limita a criação de novos cargos e a regularização do número de profissionais frente às necessidades do serviço, de modo que, segundo Machado (2008), a renovação e contratação de novos profissionais acontece por meio da precarização dos vínculos de trabalho. Este autor compreende que essa situação remete à história da implantação do SUS que não se comprometeu com uma política efetiva de RH, não defendendo uma perspectiva de carreira profissional no SUS. Esta situação é, ainda, confirmada pelas Normas e Manuais Técnicos do Ministério da Saúde (2006), quando avaliam que a maioria das Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde não possuem Planos de Cargos e Carreiras e/ou estes estão desatualizados.

Santos (2008) considera que a reforma do Estado, com o ajuste fiscal, rompeu com a lógica de bem estar social e, em consequência, imprimiu a precarização das relações de trabalho. Essa política acarretou o subfinanciamento da AB (Conill, 2008), a precarização da gestão de RH e, como consequência, a baixa resolutividade dos serviços. Campos et al (2008) critica, além do financiamento insuficiente, o fato dele estar atrelado a um programa específico do MS, devendo obedecer rigidamente às suas diretrizes e regras.

No discurso dos trabalhadores, não aparece uma discussão objetiva sobre o financiamento, porém, está subliminarmente denunciada nas reclamações sobre a escassez de recursos materiais e

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de infraestrutura precária. A pesquisadora também concorda com estas denúncias, todavia, analisa essa situação como sendo um descuido dos três níveis de gestão.

O estudo de Furlan; Amaral (2008) aponta que a dificuldade do planejamento das ações na AB está relacionada à sobrecarga para o atendimento da demanda espontânea. Esse fato também é relatado nos grupos de discussão desta pesquisa e as equipes avaliam que tanto a alta demanda da população no serviço, quanto a escassez de profissionais, comprometem a organização do trabalho e causam sobrecarga ao trabalhador, gerando acúmulo de funções, impossibilidade de ampliação das ações e ofertas e comprometimento da qualidade do serviço.

Campos et al (2008) discutem, também, sobre a dificuldade de fixação de profissionais e a alta rotatividade destes nos serviços de saúde, principalmente a categoria médica. Na narrativa do grupo 1, os profissionais avaliam a importância da fixação de profissionais no serviço, uma vez que a pouca rotatividade favorece o entrosamento, fortalece a equipe e gera comprometimento entre os colegas de trabalho, que passam a buscar soluções em conjunto e lidam melhor com as dificuldades que aparecem no cotidiano de trabalho. Além disso, compreendem que uma equipe unida e que trabalha em conjunto, tende a ter o mesmo tratamento com relação aos usuários.

Para Conill (2008), o acesso é o grande nó crítico, pois embora esteja garantido aos cidadãos o direito à saúde (Santos, 2008), a quantificação de profissionais não é analisada de acordo com a realidade de cada serviço de saúde.

O segundo eixo, dentro da Categoria Dificuldades, é o Mau gerenciamento da rede. Compreendendo que o contexto político interfere na prática de trabalho, os grupos de profissionais denunciaram um mau gerenciamento do recurso financeiro, uma desarticulação entre as Secretarias Municipais, pouco contato com Distritos e Apoiadores, falta de orientação, coesão no modelo e de divulgação sobre ofertas e fluxos, gerando a falta de conhecimento sobre o funcionamento da rede. Isso pode ser justificado pela tese de Giovanella; Mendonça (2008) de que, dada a possibilidade de autonomia do município, existe uma diversidade de modelos implementados de AB e SUS. Conill (2008), ainda reconhece uma demanda excessiva de informações por parte do MS, fragilidades na gestão e na organização da rede, gerando uma rede desintegrada.

A pesquisadora reconhece que muitos dos problemas enfrentados no cotidiano de trabalho, dentre eles a falta de recursos materiais e de recursos humanos, ficam a cargo dos profissionais e gerentes de serviço, visto que, na maioria das vezes, o gestor não se preocupa em encontrar soluções objetivas para ajudar as equipes, nem mesmo apoiá-las. Para Campos; Guerrero (2008) na

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prática cotidiana há uma responsabilização dos trabalhadores pela produção em saúde. Afirmam que, apesar da legislação, não houve mudança efetiva na prática de trabalho, porém, na tentativa de solucionar esses problemas, as sugestões dos gestores, geralmente, permeiam a padronização do trabalho clínico como única alternativa de assistência. Nesse contexto, a pesquisadora aponta que uma das opções dos gestores tem sido a do remanejamento de profissionais, a qual interfere no processo de trabalho de toda equipe, pois como consequência diminui as ofertas e, de certo modo, diminui a qualidade das ações e dos programas planejados.

Cunha (2010) compreende que alguns fatores no gerenciamento do serviço e na gestão do sistema, contribuem para a frustração e desresponsabilização dos trabalhadores, assim como para a vulnerabilidade do serviço à sazonalidade eleitoral. São eles: ocupação inadequada de cargos gerenciais, modelo gerencial taylorista, dificuldade em valorizar os serviços e trabalhadores mais dedicados e eficazes e a ausência do papel do Estado em regular e definir as vagas para a especialidade. Sobre essa questão, Campos et al (2008) aponta uma ausência de política de pessoal e de projeto consistente para a formação de especialistas (desde a contratação, acesso à educação permanente e formação especializada). A pesquisadora também denuncia a inexistência de uma política efetiva de gestão de pessoas, apesar desse tema ter sido discutido em todas as Conferências de Saúde, desde 1960. No início da implantação do PSF, o MS, reconheceu que o financiamento e a política de recursos humanos eram pilares fundamentais para o desenvolvimento deste programa e que a valorização do trabalhador de saúde garantiria acesso e qualidade dos serviços, assim como melhoria das condições de trabalho (Brasil, 2003). No entanto, ao invés de uma política de RH, criou a SGTES, uma Secretaria que, apesar de possibilitar a existência de um espaço de discussão sobre o trabalhador da saúde, não tem dado conta dos dois eixos a que se propõe, pois confundiu a gestão da saúde e a gestão do trabalho em saúde.

Interessante observar que no discurso do trabalhador não aparecem reclamações sobre a política de pessoal no SUS. Talvez porque, as condições de trabalho sejam tão precárias, que os profissionais nem vislumbram a possibilidade de uma carreira no SUS, ou seja, não compreendem que seria um direito. Por outro lado, relatam que, frequentemente, dada a falta de materiais, a equipe compra ou doa materiais para poder garantir ofertas aos usuários, ou até mesmo, produz materiais com sucata. Todos esses apontamentos incorrem na precarização e no engessamento do sistema de saúde.

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Para Fleury (2011), a qualidade do serviço está diretamente relacionada ao desempenho da equipe profissional. Porém, o subfinanciamento, o sucateamento do sistema, a precarização das relações de trabalho e de retribuição aos profissionais de saúde, gerou um distanciamento dos trabalhadores para com o projeto SUS e, em consequência, o SUS está cada vez mais distante dos desejos da população. Nessa linha de debate, Machado (2008), Campos (2006) consideram que a precarização dos vínculos de trabalho são um obstáculo para o desenvolvimento do SUS, visto que compromete a relação dos trabalhadores com o sistema e prejudica a qualidade e a continuidade dos serviços.

O terceiro eixo refere-se à Inversão da Lógica da AB que aparece no discurso dos trabalhadores como uma queixa por não conseguirem realizar ações de prevenção, promoção e continuidade do cuidado em saúde. Devido à demanda excessiva “batendo à porta” e aos inúmeros atendimentos caracterizados por procedimentos de Pronto Atendimento e Pronto Socorro, a equipe avalia que fica apenas “apagando incêndio”. Reconhecem que este procedimento realizado na AB é diferenciado e, por isso, considerado mais eficaz, pelo vínculo que permeia a relação (também apontado por Cunha, 2010). No entanto, compreendem não ser possível cumprir a missão da AB que seria o vínculo com a comunidade e território, a longitudinalidade do cuidado, as ações de promoção e prevenção, além das ações de assistência e recuperação da saúde. Relatam, ainda, que reconhecem a importância desse papel e que escolheram trabalhar na AB para desenvolver um trabalho nessa linha que, ao contrário do atendimento pontual e com foco na doença, como em outros níveis de atenção, trabalha com a produção de vida e de subjetividade.

Cunha (2010) traz uma análise que auxilia na compreensão deste fenômeno. O autor avalia que a sociedade relaciona-se com o sistema de saúde de acordo com a lógica dominante, que é a lógica de consumo e, portanto, do livre acesso às ofertas. Nesse sentido, a população procura a AB e os profissionais, como procura um produto na prateleira do supermercado. Os profissionais, por sua vez, têm dificuldade em lidar com essa relação e em reconhecer o modelo de saúde que deve ser proposto, até porque não recebem orientação, nem tampouco formação para tanto. A pesquisadora avalia que existe uma dificuldade de compreender o papel do serviço e da AB (por parte dos gestores, trabalhadores e população), o que compromete a vinculação com o serviço, não favorece a compreensão sobre sua missão e a atuação em rede. A causalidade dessa questão pode estar ligada a duas situações: as diferentes formas de organização do processo de trabalho (muitas

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vezes com ações de menor complexidade, voltadas para a cura) e a frágil participação social (falta de contato e diálogo com o usuário).

Para complementar essa discussão, Massuda (2008) atenta ao fato de que as transformações sociais têm produzido novas demandas em saúde. Porém, o modelo tradicional de saúde produzido pelos profissionais apresenta dificuldades e limitações para compreender a multiplicidade de fatores envolvidos no processo saúde-doença. Desse modo, as práticas ofertadas estão em descompasso com as demandas sociais.

O eixo 4 diz respeito ao Modelo Biomédico, ponto bastante discutido no grupo 2. As equipes reconhecem que este modelo ainda é bastante comum na saúde e, para o grupo 2, está presentificado na unidade em que trabalham. Os trabalhadores apontam que o modelo biomédico permeia a postura dos profissionais, com trabalho centrado nas ações individuais e com pouca apropriação do território, com uma clínica medicalizante (que enxerga a medicação como solução dos problemas da vida), mas também, permeia a gestão, pois está reforçado pela própria estrutura física das unidades, que apresenta muitos consultórios individuais e poucos espaços para grupos e ações coletivas.

Campos; Guerrero (2008) e Cunha (2010) confirmam que a AB reproduz na prática o modelo biomédico dominante, com a fragmentação da atenção, isolamento no trabalho e a padronização das ações por patologias, em contraposição às ações coordenadas e resolutivas. Carvalho; Cunha (2006) analisam que um grande problema no SUS é o insuficiente enfrentamento das temáticas da mudança do processo de trabalho e da participação dos trabalhadores de saúde na mudança setorial, confirmando a predominância do modelo biomédico. Esses autores inferem que o modelo de saúde depende de como o profissional compreende seu objeto de trabalho e, sendo assim, a teorização sobre o sistema público de saúde brasileiro, que, inclusive está amparada legalmente, toma como objeto de trabalho em saúde o indivíduo e a comunidade em seu contexto social. No entanto, de acordo com estes autores Carvalho; Cunha (2006), essa teorização não garante a mudança do processo de trabalho, pois a aposta deveria estar voltada ao profissional de saúde, em sua formação e capacitação.

O quinto e último eixo da Categoria Dificuldades traz uma discussão realizada pelos grupos de trabalhadores sobre o Atendimento à população migratória. Em especial, o grupo 2 levantou essa questão relatando que esta é uma característica marcante do território em que atuam e que traz dificuldade para a rotina do trabalho da equipe. Esta equipe compreende que o tratamento não se

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baseia numa única consulta/atendimento, mas trata-se de um projeto que presume a continuidade do cuidado. Nesta pesquisa, não há apontamentos dos autores e da pesquisadora sobre essa questão, porém, de acordo com a análise dos documentos do Ministério da Saúde, pode-se verificar que o acesso está garantido por lei, e que a AB apesar de prever o atendimento territorial e adscrito da clientela, deve atender os casos urgentes e situações pontuais (como por exemplo, trabalhadores da região), encaminhando os usuários para a unidade de sua referência e/ou abrindo exceções para vincular o usuário que, por questão de vínculo com a unidade ou trabalho no território, desejam ser atendidos em determinado serviço de saúde. Desse modo, mais uma vez, aponta-se a necessidade do papel da gestão, tanto para clarear e orientar os trabalhadores a consultarem as normas e diretrizes, quanto em promover discussões e apoiar a equipe a desenvolver estratégias para lidar com esses problemas. Deve-se apontar, porém, que comparado à realidade de Campinas, onde um Centro de Saúde responsabiliza-se em média por 8 mil habitantes, fica muito difícil garantir a missão da unidade e da ESF à população adscrita, quem dirá aos usuários de outras localidades que necessitem e/ou desejem atendimento.