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A atenção no treinamento das atrizes Julia Lemmertz e

No documento A atenção e a cena (páginas 98-104)

3. Análise das performances de Julia Lemmertz em “Maria Stuart”

3.1 A atenção no treinamento das atrizes Julia Lemmertz e

Por mais que o resultado final da peça apresentada aos espectadores não contenha uma descrição detalhada dos treinamentos pelos quais o ator passa até chegar à cena, um olhar mais cuidadoso que se faça sobre a cena ou sobre o discurso das atrizes sobre a cena, facilmente identificará vestígios que podem levar a reconstituição deste treinamento. Propõe-se, diante disto, buscar nestes vestígios, indícios da questão da atenção no treinamento das atrizes Julia Lemmertz e Isabel Teixeira.

Quem primeiro descreveu os treinamentos da atenção do ator e sua importância foi Konstantin Stanislávski em sua obra sobre a preparação do ator. Mais de meio século depois do lançamento de seus escritos e da grande repercussão que estes tiveram na cena brasileira, Stanislávski parece hoje um pouco démodé para as novas gerações de atores.

Apesar disto identificamos que o espetáculo Maria Stuart tem uma montagem e uma atuação ainda muito fundamentada no modelo do treinamento Stanislávskiano trazido ao Brasil principalmente por intermédio de Eugênio Kusnet e pela tradução brasileira de Pontes Paulo Lima da obra An Actors Prepare ( a versão americana da obra de Stanislávski que fala sobre a preparação do ator).

Esta preparação se explicita na cena quando há a preocupação por se mostrar a personagem, sem se revelar o ator. É explicito, também, quando há um registro de atuação naturalista, que por sua vez exige um treinamento específico segundo a proposição de Stanislávski.

Em nossa entrevista com Julia Lemmertz, a influência de Stanislávski apareceu de diversas formas, mas nenhuma foi mais contundente do que a

preocupação da atriz em elaborar uma lógica própria para a personagem e compreendê-la em sua complexidade, percebendo o texto de forma vertical. O texto é o eixo da estratégia de condução da atenção do espectador e da criação de elos no espetáculo ―Maria Stuart‖.

Em sua fala Lemmertz revela que este texto tem uma função e uma sequência que deve ser compreendido na ordem determinada pelo autor para que a peça possa ser eficaz e cumprir o seu objetivo comunicativo. O texto é o elemento que aproxima ator e público, mas para que isso aconteça deve haver algo mais do que a simples recitação, algo que estabeleça um elo entre o espectador e o ator.

Porque assim, se você entra em cena e dá o seu texto, ali cumprindo aquela coisa, você distancia o público. Agora se você entra realmente imbuído....quem abre o espetáculo é o Clemente e a Amélia que fazem a ama e o carcereiro. O carcereiro arromba a arca da Maria, a ama vê e eles têm uma discussão. Aquela discussão é a abertura do espetáculo, é a hora que o lado elisabetano se coloca e o lado da Stuart se coloca e se conta um pouco o que é que vai acontecer. Ele está falando da rainha, porque ela foi presa e como ela chegou até ali....que ela está tentando comprar os guardas pra ser libertada, que ela é uma trapaceira, que ela quer fugir, que não tem direito a nada. E a outra está defendendo dizendo que ela é uma rainha, que ela não tem nada, não tem um alaúde pra tocar uma música. Ela não se olha no espelho. Ela não tem um livro para ler. Ela não tem amigos. Ela não tem nada aqui. (Lemmertz, 2009)

Destacamos neste trecho da entrevista um aspecto que nos parece essencial para o teatro, em especial para o teatro que depende da compreensão do texto: os primeiros momentos do espetáculo. A fala de Lemmertz aponta para este momento que é, para ela, um momento chave na construção da entrada em cena de sua personagem.

Este tipo de abordagem da cena, que tem o texto como eixo, necessita de uma atenção do espectador que o jogue no fluxo da trama; elemento pelo qual ele deve se deixar levar. Revela-se então o método pelo qual ainda hoje este tipo de

composição teatral pode atingir sua maior eficácia: o treinamento desenvolvido por Stanislávski.

Apesar de não falar diretamente sobre este treinamento, através de sua fala e da materialidade de sua interpretação, pode-se intuir que o seu treinamento está vinculado à proposta Stanislávskiana, em especial a leitura americana de seu sistema, tão utilizada nas escolas teatrais brasileiras. Um dos treinamentos do qual Julia se utiliza para o espetáculo está descrito na seguinte passagem de sua entrevista:

A gente faz um trabalho de aquecimento vocal e físico, tal, que tem

essa preparadora da gente que fez a peça – Rose Gonçalves - ela

faz umas frases. Eu tenho um monte de frases dela que às vezes a gente vai passando numa roda. Então ela fala muito dessa coisa de suspensão, que você nunca deve estar para trás, você deve estar acima. É como se a suspensão fosse o que vai acontecer depois. (Lemmertz, 2009)

No exercício descrito acima, por exemplo, é proposto um trabalho de treinamento da atenção. O ator tem que, ao mesmo tempo, trabalhar com sua atenção involuntária, alerta aos estímulos externos e com atenção voluntária para dizer sua frase. Isto é frequentemente utilizado em jogos teatrais. Há diversos jogos que acionam a atenção da mesma forma, mas é necessário que existam diversos jogos iguais para contornar a ação do hábito. Quando nos habituamos a uma atividade, já não precisamos mais da atenção, pois a atividade passa a se processar em um outro local em nosso cérebro, no local do hábito.

Quanto à colocação que Julia Lemmertz faz sobre a suspensão, podemos pensar que a suspensão seria um estado de expectativa. A criação deste estado desperta em quem assiste a prontidão da atenção involuntária, tornando possível que o espetáculo seja compreendido. Este estado de suspensão que ela descreve é equivalente a dizer que o ator está em um estado atentivo de alerta máximo, ou seja,

que toda sua capacidade atentiva voluntária e involuntária está disposta de forma a captar o maior número de estímulos possíveis para processá-los de forma consciente. O treinamento desta capacidade é um dos pontos fundamentais do programa de treinamento de Stanislávski.

Este estado de prontidão ou de suspensão do ator só pode ser obtido através de treinamentos especiais da atenção, pois ele vai na contramão das práticas atentivas atuais. O constante ataque que a atenção do homem citadino moderno sofre por parte de diferentes estímulos, obriga o mecanismo atencional a descartar a maior parte das informações captadas pelos sentidos, ou seja, obriga o homem a ignorar a maior parte dos estímulos do meio. Por oposição, o treinamento do ator busca um estado de atenção próximo ao que teria um caçador que busca sua caça pela floresta.

Podemos encontrar a atenção no treinamento de praticamente todos os atores da atualidade, pois essa capacidade atentiva diferenciada parece estar na base do desenvolvimento da chamada presença cênica. Talvez a questão da presença cênica seja algo maior do que a atenção, mas é certo que um ator em ―suspensão‖ é muito mais chamativo para o olhar do espectador do que um ator ―desatento‖ em cena.

Por outro lado, percebe-se que a questão técnica da atenção, que embasa o treinamento de Julia Lemmertz, é agora algo introjetado, que faz parte de seu ser e de sua técnica de atuação. Esse esquecimento da técnica nos momentos de composição da personagem e de apresentação pública é descrito por Júlia como um ―se jogar em cena‖, necessário para a criação vínculos com o espectador.

Então quando, por exemplo, quando o Alexandre estreou, eu me lembro que ele tinha o texto decorado, ele fazia com a intenção certa, mas ele não conseguia perceber nada à volta dele...aí um dia a

gente conversando eu falei pra ele e disse: olha, você já tem o texto, você já sabe o que está falando...entra sem pensar no final da cena, entra sem pensar no que você vai fazer a seguir, se joga na cena. Ouve o que eu estou falando e vê como é que bate em você para você me responder. Então, isso são coisas que tem que passar pela cabeça, mas na hora de entrar você está lá para aquilo, desarma, se coloca em jogo, isso faz com que o público também se coloque em jogo. (Lemmertz, 2009)

Esta passagem da entrevista com Júlia Lemmertz remete aos dizeres de Stanislávski sobre a importância do hábito para o ator. O hábito é responsável por tornar toda a técnica do ator uma parte de si. Ela é uma coisa na qual o ator não precisa pensar. Isto libera sua atenção na cena para o momento presente, para a adaptação, e possibilita que ele entre em contato com o espectador.

Como aponta Lemmertz, cada espetáculo tem o seu modo de lidar com o espectador e isto está ligado ao ponto nevrálgico de cada espetáculo. Portanto, para cada espetáculo será necessário um tipo de treinamento, um tipo de processo de criação que resultará em um modo de fazer a cena.

Para o espetáculo Rainhas: duas atrizes em busca de um coração, por exemplo, Isabel Teixeira descreve um treinamento e um processo de criação diverso dos descritos por Julia Lemmertz, apesar de utilizar como motivo para a criação o mesmo texto de Schiller.68

Eu desenvolvo uma técnica chamada escrita na cena que são improvisos abertos que eu gravo e depois transcrevo... eu dei aula o ano passado inteiro só disso, eu desenvolvi isso e eu cheguei numa técnica de dramaturgia muito aberta que tem muito a ver com o improviso, com pílulas dramatúrgicas que se desenvolviam que... era um trabalho aberto assim... tem muito a ver com o Enrique Diaz e com algumas coisas que ele costuma desenvolver... tem a ver com o que a gente fez aqui e agora deu uma virada nessa história. (Teixeira, 2010)

68

Neste ponto é necessário fazer uma digressão para esclarecer nosso leitor que ambos os espetáculos são baseados no texto de F. Schiller (1983) Maria Stuart. Portantol o que estamos falando é de duas abordagens completamente diferentes de um mesmo material. Para nós, parece que esta diferença entre as abordagens já começa pelo treinamento da atenção logo no início do processo.

O treinamento proposto por Isabel Teixeira não tem o texto como eixo, mas o improviso. A atenção do ator no improviso é uma atenção muito diferente da empregada em um processo de leitura de mesa, por exemplo. Enquanto na leitura de mesa a atenção é voluntária e focada, estando voltada para compreensão do que é dito pelo autor, numa improvisação o texto serve como disparador, para que, a partir da atenção involuntária e da distração, os conteúdos latentes do inconsciente venham à tona, material a partir do qual se constitui a cena.

Apesar de utilizar ainda elementos da preparação técnica proposta por Stanislávski, Isabel Teixeira parece fazê-lo através de abordagens diferentes das tradicionais. Com isso a atenção é trabalhada de forma ainda mais inconsciente. A atenção é, mesmo que não se pense nisso, ainda mais essencial para um treinamento que vise à criação de um espetáculo como ―Rainhas‖ do que em espetáculos tradicionais, pois é da capacidade atentiva do ator que depende a comunicação com o espectador na apresentação.

Tendo em vista estes dois processos, parece que no primeiro, no qual o treinamento da atenção é feito a partir do que está escrito nas obras de Stanislávski, é necessário que seja retomada a importância que a atenção tem para este método, partindo da própria obra do encenador russo. Por outro lado, mostra-se necessário um esforço original para que se possa estabelecer a importância da atenção no treinamento ligado as práticas teatrais que não têm o método de Stanislávski como base. Tornar a atenção um tema neste treinamento, certamente trará ganhos para o treinamento do ator que não utiliza os métodos tradicionais.

3.2 A atenção das atrizes no processo de criação do espetáculo

No documento A atenção e a cena (páginas 98-104)