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Texto e Música

No documento A atenção e a cena (páginas 116-120)

3. Análise das performances de Julia Lemmertz em “Maria Stuart”

3.3 A atenção na cena

3.3.3 Texto e Música

O texto é o ponto de partida dos espetáculos que estudamos. Porém, isto não significa que os espetáculos se restringem a uma encenação fiel ao texto. Há um modo de entender e utilizar o texto que distancia os fazeres das atrizes, gerando dois resultados completamente distintos. No entanto, ambas as estratégias visam a uma comunicação com o espectador. Esta diferença pode ser vista de diversos pontos.

Do ponto de vista da verbalização, a opção de Lemmertz é pelo ―texto fala‖, ainda muito próximo da ação. Já a opção de Teixeira, em diversos momentos, é pela exploração do texto e de suas possibilidade de verbalização, como por exemplo a da musicalização do texto, distanciando-o da ação74. Do ponto de vista da atenção

são duas estratégias diferentes de criar comunicação com os espectadores. A primeira apela mais para a racionalidade, enquanto a segunda apela mais para a sensibilidade.75

74 Sobre a questão da relação entre texto e ação ver Williams (2010).

75 É importante deixar claro que em ambas há um compartilhamento de procedimentos, mas as atrizes, em suas opções estéticas, acabam por operar mais de um modo ou de outro.

A dramaturgia que se desenvolve ali [em Rainhas] é uma dramaturgia com história, mas de alguma maneira aberta para que o espectador também crie. A gente vem falando muito – tem uma menina que é parceira da gente - que o espectador é o dramaturgo. Porque assim... eu tenho a opção de me abster porque eu não fui pego pela mão para ver uma história com principio, meio e fim, apesar da história ter começo, meio e fim, eu tenho a opção de me abster e dormir. Isso acontece no Rainhas. A gente vê... (Teixeira, 2010)

No próprio discurso de Isabel Teixeira é possível identificar a estratégia utilizada na dramaturgia de ―Rainhas‖. O texto está ali, mas não fornece o eixo para a leitura da peça, sendo o espectador responsável por, a partir de sua atenção, memória e imaginação, juntar os pedaços do texto e montar à sua maneira. A partir desta relação horizontal entre o texto e os demais componentes da peça ―Rainhas‖, no trecho do espetáculo que antecipa o encontro entre Maria Stuart e Elisabeth, o texto atinge o público de uma forma direta e não racional através da música. Ele entra pelos poros do espectador e se instala em seu corpo através das ondas sonoras. Como descreve Lehmann (2007), a música é uma das características que permite ao teatro pós-dramático ser fruído na distração.

Por sua vez, o texto em ―Maria Stuart‖ se instala de forma direta. Pede ao espectador, através de choques ritmados, que volte sua atenção para os pontos principais da trama. O texto fornece o eixo para a leitura do espectador. Este exemplo está dentro da concepção clássica de encenação, desde Stanislávski, que subordina a cena (opsis) à narrativa (mythos). Dada a importância do discurso, ele deve ser falado de forma a ser compreendido em todo o percurso do espetáculo. Pode-se ver isto na fala de Lemmertz sobre o texto:

Esse texto [Maria Stuart de Schiller], na verdade, é literatura. Ele é muito literário no uso das palavras, é um texto clássico, mas que tem uma poesia e uma forma diferente de atingir o público de hoje em dia – que está mais acostumado com uma coisa contemporânea, com um texto mais próximo da maneira das pessoas falarem hoje em dia.

Este texto além de trazer uma história muito diferente da nossa história daqui do nosso mundo, do Brasil, do nosso país ... fala de tempos muito distantes, de reis, rainhas ... mas ainda assim, por ser um texto clássico ele trata de questões ainda muito pertinentes ao homem moderno. (Lemmertz, 2009)

Para conseguir essa encenação do texto, em todo seu potencial literário, Lemmertz precisa se apoiar no método proposto por Stanislávski (2010), visando ao máximo de eficiência de comunicação. Portanto, precisa que o espectador esteja atento, ao menos aos pontos mais importantes da trama, para que embarque na sua narrativa. Isto exige um processamento do texto pela atriz de forma a encontrar seus ―pontos-chave‖, para os quais deve ser direcionada a atenção do espectador.

Eu acho que tudo passa pelo ator. Quer dizer que para você atingir alguém você precisa primeiro entender os mecanismos que o texto exige para atingir você. É como se o ator fosse um processador do texto antes de atingir [o espectador]. (Lemmertz, 2009)

Na cena que antecede o encontro entre as rainhas, por exemplo, Lemmertz se utiliza de um modo de falar que a auxilia na criação da uma expectativa que Maria Stuart terá enfim sua liberdade decretada. A expectativa de sua liberdade é fundamental para a quebra que vem com o embate entre Maria e Elisabeth na próxima cena. Este tipo de procedimento prático é apontado por Gilberto Xavier como uma estratégia de criação que se utiliza da atenção do espectador para causar um tipo de comunicação, de forte impacto.

[entre os procedimentos para abordar atenção do espectador] Pode- se, por exemplo, deixar o espectador na distração durante certo tempo para tornar ainda mais forte o estímulo atencional que vem em seguida. (Xavier, 2010)

Podemos olhar para esse trecho da peça escrita por Schiller76 em 1800 como

um exemplo de que a atenção se processa através da criação e da quebra de expectativas. Isto é explicado com clareza pelo professor Gilberto Xavier na entrevista que ele nos concedeu.

A atenção pode ser estimulada principalmente por eventos inesperados, que provêm da quebra de expectativas. Por exemplo, se um objeto cai para baixo, não há nada de incomum, que nos chame a atenção, mas se um objeto, ao ser solto no ar, ―cai‖ para cima, isso certamente gerará uma surpresa, que decorre da frustração da expectativa que o observador possui (as expectativas são geradas a partir de experiências anteriores do observador). Outro exemplo é se um corpo que descreve uma linha reta, da direita para a esquerda, horizontalmente, ao passar por trás de um outro objeto que o encobre, muda de direção, aparecendo ao olhar do espectador se deslocando no sentido vertical, isso causará um estranhamento em nossa percepção que ―chamará‖ a atenção. Manter a atenção demanda uma energia do observador, e se não há ―algo novo‖, esta decaí em intensidade até chegar à distração. (Xavier, 2010)

No caso da peça ―Rainhas‖ acontece uma exacerbação do lirismo, já presente no texto, através da música que acompanha o texto e da musicalização do próprio texto. Por outro lado, na encenação ―Maria Stuart‖ o texto é explorado em seu ritmo próprio e dito de forma que pareça um devaneio lírico.

Considerando o texto como estopim comum às encenações, pode-se inferir que as intenções estéticas dos produtores são fundamentais para estabelecer os modos como o texto chega à atenção do espectador, definindo o tipo e a eficácia da abordagem de sua atenção, e, portanto, as estratégias e conteúdos da comunicação.

76

Schiller é neste ponto ardiloso, pois faz com que o espectador saiba antes de Maria Stuart do encontro com Elisabeth e veja-se com a situação nas suas mãos, criando uma tensão que só se agrava com a sua chegada..

No documento A atenção e a cena (páginas 116-120)