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O jogo

No documento A atenção e a cena (páginas 113-116)

3. Análise das performances de Julia Lemmertz em “Maria Stuart”

3.3 A atenção na cena

3.3.2 O jogo

Jogo é uma palavra de amplos significados. O filósofo Johan Huizinga73, por

exemplo, desenvolve uma tese de que a capacidade de jogar é o que diferencia o homem dos demais animais. A questão do jogo de imitação já é apontada por Aristóteles, em sua poética, como característica constituinte do homem.

A palavra jogo tem sua origem na expressão latina jocus e traz em sua etimologia o sentido de divertimento, brincadeira, alegria. Tem origem na mesma expressão latina a palavra jocoso, que significa aquilo que é alegre, divertido e que provoca o riso. Há na própria etimologia da palavra uma associação entre jogo e diversão. Desta forma, pode-se afirmar que qualquer tipo de jogo deve estar sempre associado a algum tipo de prazer.

Por outro lado, no vocabulário corrente dos atores é comum se deparar com a expressão ―estar em jogo‖. Esta expressão atribui outro sentido à palavra jogo, pois é utilizada com o sentido de se colocar em risco ou de depender de alguém. Esta expressão é realmente muito pertinente à arte teatral, na qual o ator está todos os dias se colocando em risco diante da opinião do espectador e depende deste, e de seus companheiros de cena, para concretizar sua obra. Sobre esta dependência há uma interessante passagem na fala de Teixeira:

...Mas a gente faz sempre isso... que é estar perdida. Eu perdi o veio da coisa. E aí você acha no olho do outro, porque o outro está encaixadão, porque o outro... é... então essa troca de fluídos invisíveis entre os atores, essa comunhão também entre os atores... um dia você está caidão e daí o outro te levanta... eu acredito nisso assim... a minha atenção também tem que estar viva e às vezes ela não ta e as vezes eu to dormindo em cena e é péssimo porque eu particularmente, por essa compreensão do tempo, eu sinto muito. Eu não vou mais me culpar por isso, mas eu sinto muito porque é uma oportunidade, podia ter sido uma oportunidade de tá comunicando de tá de acordo. Ai quando não é, quando não acontece, eu não me

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culpo mais porque eu também acho que o desvio e o não tá inteiro em cena também faz parte para no dia seguinte você estar inteiro na cena. (Teixeira, 2010)

Nesta fala em que Isabel Teixeira aborda a questão do ―estar em jogo‖, fica claro o quanto esse jogo depende do outro. O apoio para o jogo em ―Rainhas‖ é o outro, em especial, o companheiro de cena. Estar em jogo exige um estado de atenção permanente do ator. Para Teixeira e Lemmertz não se deve pensar sobre o jogo durante a cena, pois seria um sinal de desconcentração, mas deve-se manter um estado de atenção para que ele possa realmente fluir e acontecer.

Teixeira demonstra ter uma consciência sensível de sua atenção. Como não há um procedimento para manter a sua própria atenção sempre do mesmo jeito ela busca o apoio no outro, principalmente em cena. Este apoio no outro em cena é apontado também por Julia como o motor do teatro. Em suas palavras: Eu acredito

nisso não só neste espetáculo, mas em todo espetáculo, que a contracena é o que é o grande lance do teatro. Que é o que move. (Lemmertz, 2009)

Assim como Teixeira, ela coloca como parte da arte teatral a impossibilidade do jogo. Se mesmo a contracena não for capaz de despertar sua atenção para o jogo, não há o que fazer naquela apresentação. Ela coloca o erro e o não-jogo como aprendizados que devem ser utilizados para a superação das dificuldades, nas próximas apresentações.

O ―não estar por inteiro‖ ao qual a atriz se refere, parece ser uma incapacidade de concentração, que pode ser promovida por diversos fatores da vida cotidiana, e que, em outras palavras, poderia ser descrito como uma falha no poder de focalizar a atenção do individuo em suas ações. Deste modo, para jogar, para se colocar em risco, é necessário que o ator esteja com sua capacidade atentiva

intacta. Quanto mais desperta a atenção do ator estiver, maior a possibilidade de se instaurar o jogo.

―Estar em jogo‖ também pode ser dito de outra forma: ―se jogar‖. Nesta expressão fica ainda mais forte a noção de risco. Quando o ser humano está em uma situação de risco ele imediatamente aguça todos os seus sentidos, volta toda a sua atenção para o ambiente. A relação entre a atenção e o jogo de cena fica explicitada quando Julia Lemmertz diz que:

E se eles [os espectadores] sentem que você se joga, que você está disponível (porque é uma linha muito tênue estar disponível, estar se jogando, mas estar no controle da coisa. É claro que você não quer ver um ator descontrolado, enlouquecido em cena) mas o bonito é quando você vê que há uma disponibilidade, você vê que tem atenção: um ator com ouvidos, com olhos, um ator que tem costas, que tem pés, que tem mãos... essa disponibilidade física, você nem precisa se movimentar. (Lemmertz, 2009)

Partindo do pressuposto que no jogo cênico do qual estamos falando nunca podemos jogar sozinhos, para que um jogo aconteça, não basta a disponibilidade de apenas uma pessoa. Todas as pessoas envolvidas no jogo devem estar disponíveis, devem se jogar a fim de que exista uma verdadeira possibilidade de um jogo.

É porque é o seguinte: existe isso e esse espetáculo mais do que todos (porque às vezes tem um espetáculo que é mais centrado em um ator), apesar de chamar Maria Stuart, tem 13 atores em cena e se ele não acontece com esses 13 atores de forma igual, se não acontece realmente com os 13 conectados, ele não acontece. (Lemmertz, 2009)

Através do jogo, é possível ao ator estabelecer elos com os seus companheiros de cena e com os espectadores. Em ambos os espetáculos as atrizes que ―se jogam‖ em cena criam uma presença que é irresistível aos olhos dos espectadores. É importante pontuar que as estratégias de jogo das duas atrizes são distintas devido as suas escolhas estéticas, mas ambas têm a mesma finalidade, que é possibilitar uma comunicação eficaz com o público.

Portanto, a atenção na cena, que é composta por uma complexa relação entre as atenções individuais e coletivas, dos atores e dos espectadores, parece poder ser resumida em uma palavra: jogo. Propõe-se que a palavra jogo possa ser utilizada para designar essas relações invisíveis das quais as atrizes falam, mas que parecem inomináveis. De diversas formas o que possibilita este jogo parece estar ligado, em primeira instância, à capacidade atentiva dos atores e dos espectadores.

No documento A atenção e a cena (páginas 113-116)