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A distração no teatro

No documento A atenção e a cena (páginas 78-87)

2. A atenção como conceito operador nas artes cênicas

2.3 A distração no teatro

Ao tratar do tema da atenção, eixo teórico de nosso trabalho, nos deparamos diversas vezes com outro termo: distração. Enquanto no dizer popular a distração é utilizada como sinônimo da falta de atenção ou como uma diversão corriqueira, no conceito filosófico cunhado por Siegfried Kracauer56 ela tem um significado bem

mais específico associado ao incosnciente.

Pelo fato da distração ser tema para uma ampla pesquisa, seja pela extensão do tema ou pela escassez de trabalhos sobre ele, o presente trabalho limita-se às referências ao termo na obra de Kracauer (2009) e de Benjamin (1985).

Abordando a distração segundo Kracauer podemos dizer que ela se refere diretamente ao teatro e ao cinema que ocupavam cada vez mais os cine teatros do início do século XX. Estes espetáculos propunham uma forma de atenção do espectador completamente oposta a que era almejada pelo teatro épico de Bertolt Brecht.

Enquanto Brecht propunha que a fruição deveria ser feita pela via da atenção, permitindo ao espectador uma reflexão sobre o que era visto, por oposição, os espetáculos veiculados pela nova e crescente indústria norte-americana do entretenimento, visavam a uma fruição na distração. Como se faziam belas as

56 Siegfried Kracauer, não tão conhecido no Brasil como Walter Benjamin, nasceu em Frankfurt em 1889, filho de uma família típica de judeus comerciantes de Frankfurt. Seu tio do lado paterno, Isidor Kracauer, praticamente seu tutor intelectual, foi professor na Escola real da comunidade israelita de Frankfurt. Em 1907 inicia seus estudos em Arquitetura, que conclui em 1917. Trabalha como arquiteto de 1915 a 1918. É desse período que, por meio de intensos estudos de literatura, sociologia e filosofia, descobre sua verdadeira vocação: escritor. Com o final da I Guerra Mundial em 1918, Kracauer decide abandonar definitivamente sua carreira de arquiteto e tornar-se escritor, iniciando sua colaboração com o jornal Frankfurter Zeitung, até tornar-se um de seus principais redatores, o que perdura até 1933. A ruptura com a visão religiosa judaica é decisiva para se compreender o processo de radicalização política de Kracauer. É desse período sua leitura não só de Max Weber e Karl Marx, mas, sobretudo, de História e consciência de classe, de Georg Lukács. Entre 1921 e 1933, Kracauer escreve uma enorme quantidade de ensaios e artigos para o Frankfurter Zeitung. É em alguns desses artigos que nos baseamos para discutir a questão da distração em sua obra.

milhares de pernas das bailarinas que dançavam em uma incrível sincronia, uma mimese pura que não passa pelo intelecto necessariamente.

As teorias de Brecht e Kracauer têm em comum o ponto de vista do materialismo dialético marxista, porém não dividem da mesma opinião sobre o teatro feito para as massas. Enquanto para Brecht o teatro só encontraria sua função social na modernidade na forma de um espaço para a discussão e para a reflexão sobre a sociedade, para Kracauer os espetáculos apresentados nos cine teatros tinham em sua forma o caos da sociedade moderna em vias de ―rachar‖, e este tipo de arte teria o seu lugar, desde que se prestasse a mostrar o estado caótico em que as pessoas vivem.

Para Kracauer este tipo de espetáculo musical, que tinha muita gente no palco, era uma representação direta dos ―balés‖ da vida cotidiana nas cidades, onde podem-se ver milhares de pessoas que vêm e vão numa espécie de caminhada sincronizada, da casa para o trabalho e vice-versa. Por sua conexão direta com a realidade de seu tempo, tais espetáculos representavam menos perigo à verdade e a arte do que os espetáculos ditos de bom gosto que nada tinham a ver com o seu tempo.

Por outro lado, Kracauer critica estes espetáculos de massas pelo mascaramento da realidade através de seus elementos ficcionais, das músicas, dos cenários e das luzes, dando impressão aos espectadores que se oferece algo coeso e completo, que faz sentido, racionalmente. Em suas próprias palavras:

A distração, que tem sentido apenas como improvisação, como cópia da confusão incontrolada do nosso mundo, é recoberta de véus e reconduzida forçosamente a uma unidade que já não há mais. Ao contrário de confessar o declínio que lhe caberia representar, elas colam os pedaços e os oferecem como uma criação adulta (Kracauer, 2009, p. 348)

Estamos cientes de que a teorização sobre a distração se refere mais às consequências do espetáculo, ou seja, ao seu efeito junto ao espectador, porém ela também se refere a uma falência do modelo de interpretação vigente. O público não aguenta mais a reprodução formal de obras que nada têm a ver com o seu tempo. Os espetáculos devem preencher a jornada tão sem sentido dos trabalhadores urbanos. Estes espetáculos surgem de uma pressão que a vida moderna passa a exercer sobre as pessoas, especialmente sobre as massas trabalhadoras - com a crescente industrialização e urbanização vivida na primeira metade do século XX.57

Um justo instinto provê para que a necessidade seja por ele satisfeita. Os aparatos dos grandes cine teatros têm um único fim: manter o público amarrado ao que é periférico para que não se precipite no vazio. Nestes espetáculos a excitação dos sentidos se sucede sem interrupção, de modo que não haja espaço para a mínima reflexão. (Ibidem, p. 346)

Nesta passagem de Kracauer constata-se que os espetáculos apresentados nos cine teatros, na época, dedicam-se à produção de um teatro da distração, no qual o espectador é induzido quase a um torpor diante dos choques sucessivos sobre o seu mecanismo atencional, com isto impossibilitando a existência de espaços para a reflexão, mas preenchendo de alguma forma sua vida com um tipo de entretenimento.

Nos anos de 1920, Kracauer já notava uma característica que iria marcar cada vez mais a sociedade urbana moderna: a necessidade da distração. Esta necessidade é muitas vezes criticada pelos ―entendidos em arte‖. Uma ala de

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―Nos centros industriais, onde aparecem compactas, essas massas, constituídas por operários, são solicitadas em excesso e não podem realizar sua própria forma de vida. A elas são oferecidos o lixo e as antiquadas diversões da classe superior que, por mais que estejam interessadas em ressaltar a sua alta posição social, têm modestas exigências culturais. [...] As camadas médias burguesas continuam separadas delas e a se iludirem de que são guardiãs de uma cultura superior, como se o preenchimento deste reservatório humano nada significasse. Sua arrogância, que cria um oásis aparente para si própria, pressiona a massa para baixo, estragando sua distração‖ (Kracauer, 2009, p. 345)

artistas e intelectuais desqualifica este tipo de espetáculo e critica veementemente o público pelo culto a distração. Sobre isto Kracauer provoca:

Reprova-se os berlinenses por serem viciados em distração; mas esta é uma reprovação pequeno-burguesa. É certo que em Berlim o desejo de distração é maior do que na província, porém maior e mais perceptível é também o esforço das massas trabalhadoras, um esforço essencialmente formal, que ocupa a jornada sem preenchê- la de sentido. É necessário recuperar aquilo que se perdeu, mas pode-se pretender recuperá-lo apenas na mesma esfera superficial à qual se está submetido. A forma empresarial da ocupação do tempo livre é uma forma da empresa, do negócio. (Ibidem, pp. 345-346)

A distração é uma questão que está relacionada diretamente com a modernidade. O crescente afluxo de estímulos que nossa atenção tem que processar nos dias de hoje evidencia como a distração também tem um importante papel em nossa formação intelectual. Muitas das coisas que temos em nossa mente, em especial em nosso inconsciente, chegam-nos nos momentos em que estamos dominados pela distração. Portanto, a nossa vida mental também é composta pelo que processamos inconscientemente em nossa distração.

No século XX a distração assumiu uma importante função para o desenvolvimento do capitalismo, promovendo uma válvula de escape para a crescente pressão que os indivíduos sofrem na sociedade e ao mesmo tempo testando e ampliando os limites perceptivos e cognitivos de nossa sociedade. Nas palavras de Kracauer a distração tem uma função de teste de nossa percepção, pois

através da distração, como ela nos é oferecida pela arte, podemos avaliar, indiretamente, até que ponto nossa percepção está apta a responder a novas tarefas. (Ibidem, p.194)58

58 Há uma afirmativa que contem a mesma ideia em Benjamin que diz que ―O filme serve para exercitar o homem nas novas percepções e reações exigidas por um aparelho técnico cujo papel cresce cada vez mais em sua vida

Apesar de estarmos focados no teatro em nenhum lugar isto é mais claro que no cinema, onde nossa percepção foi colocada à prova, e é ainda hoje testada e adestrada para suportar o mundo que inventamos. A criação do cinema 3D é o exemplo mais recente de um teste de nossa percepção que através da distração nos prepara para novas técnicas de reprodução da imagem e do corpo humano.

A questão da distração foi também discutida por Walter Benjamin, que propunha que os movimentos modernistas, em especial o dadaísmo, foram fundamentais por fomentar o gosto pela distração e, consequentemente, o gosto pelo cinema.

O dadaísmo colocou de novo em circulação a fórmula básica da percepção onírica, que descreve ao mesmo tempo o lado tátil da percepção artística: tudo o que é percebido e tem caráter sensível é algo que nos atinge. Com isso, favoreceu a demanda pelo cinema, cujo valor de distração é fundamentalmente de ordem tátil, isto é, baseia-se na mudança de lugares e ângulos que golpeiam intermitentemente o espectador. (Benjamin, 1985, pp.191-192)

Pela questão da tactibilidade, realmente o cinema é o local mais adequado para a distração, pois pode promovê-la em seu sentido mais radical. Os artistas teatrais dispõem entretanto de vários meios para manter seu público distraído. A maior parte destes artifícios pode ser encontrado nos grandes musicais da Broadway que povoam os teatros de todo o mundo. Para criar um espetáculo que vise à distração do espectadores todos os elementos cênicos devem operar de uma forma diversa do teatro naturalista ou do teatro épico.

Mantendo o foco na questão dos procedimentos do ator, não faltam-lhe mecanismos para garantir a distração do espectador. Não necessariamente o ator

cotidiana‖ (1985, P. 174) ou que ―Através da distração, como ela nos é oferecida pela arte, podemos avaliar, indiretamente, até que ponto nossa percepção está apta a responder a novas tarefas.‖ (1985, P.194)

precisa estar consciente destes artifícios, mas ele intuitivamente pode executá-los de maneira a distrair os espectadores.

Seguindo o raciocínio proposto por Brecht e Kracauer, o teatro pode ser classificado de acordo com o tipo de reflexão que ele busca e consequentemente pelo tipo de abordagem que faz da atenção do espectador. Pode-se pensar, a partir desta proposta, em três tipos de teatro: o teatro científico que corresponde ao teatro

épico; o teatro dissolutivo que tem como exemplo mais bem desenvolvido o

naturalismo e o teatro da distração que tem como exemplo o musical da Broadway. Para cada proposta o ator deve se utilizar de procedimentos específicos para abordar a atenção do espectador. Na representação épica o ator tem que manter a atenção do espectador no argumento da cena e através de choques pontuais da atenção, provocando assim novos olhares sobre a cena. No teatro dissolutivo o ator deve prender a atenção do espectador na narrativa fazendo com que este se dissolva no fluxo dela. Para um teatro da distração o ator deve provocar choques sucessivos na atenção do espectador, não permitindo a ação de sua consciência e criando uma satisfação com a superfície que é apresentada.

Kracauer aponta que não se deve confundir a distração com o recolhimento proporcionado pela dissolução na narrativa, pois apesar da semelhança de seus efeitos sobre o espectador, são duas atitudes diferentes diante da arte.

A distração e o recolhimento representam um contraste que pode ser assim formulado: quem se recolhe diante de uma obra de arte mergulha dentro dela e nela se dissolve, como ocorreu com um pintor chinês, segundo a lenda, ao terminar seu quadro. A massa distraída, pelo contrário, faz a obra de arte mergulhar em si, envolve- a com o ritmo de suas vagas, absorve-a em seu fluxo. (Kracauer, 2009, P.193)

Este exemplo nos serve para diferenciar o efeito buscado pelo teatro naturalista proposto por Stanislávski e o estilo musical proposto pela Broadway. O

primeiro deseja fazer com que o espectador se dilua na narrativa, enquanto o segundo deseja se diluir em seu espectador com efeito semelhante ao que uma música, atingindo-o muito mais em sua sensibilidade do que em sua racionalidade.

Na atualidade o que se chama de contemporâneo, pós-dramático ou performativo são exemplos de teatro que operam prioritariamente pela distração, pelo aspecto sensorial e cutâneo de comunicação entre ator e espectador. Alguns espetáculos de artistas como Jan Fabre59, Società Rafaelo Sanzio60, La Fura del Baus61, entre outros, parecem ter alcançado o que propunha Kracauer nos anos de 1920: utilizar a forma caótica da nossa sociedade moderna e, ao mesmo tempo, demonstrar sua fragilidade e como ela está quase a ponto de rachar.

Propomos que este tipo de teatro surge de uma necessidade genuína de nosso tempo que demanda uma relação formal e estética entre a vida e o teatro contemporâneo. Esta visão é corroborada pela hipótese de Benjamin de que:

No interior de grandes períodos históricos, a forma de percepção das coletividades humanas se transforma ao mesmo tempo que seu modo de existência. O modo pelo qual se organiza a percepção humana, o meio em que ela se dá, não é apenas condicionado naturalmente, mas também historicamente‖ (Benjamin, 1985, P. 169)

Este teatro, que marcou especialmente as décadas de 80 e 90 e que é chamado por Lehmann de Pós-dramático parece refletir esta mudança necessária à

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Link 5 - Artista Belga que produziu uns dos melhores exemplos do que Lehmann (2007) chama de teatro Pós- dramático. Sua obra mais recente é Prometeus Landscape II (2011). Trecho da obra podem ser vistos em: http://www.youtube.com/watch?v=jA93gzOuRMg

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Link 6 - Companhia teatral italiana fundada por Romeo e Claudia Castellucci e por Chiara e Paulo Guidi no inicio dos anos 80. Entre suas produções mais recentes está a trilogia Inferno, Purgatório e Paraíso apresentada em 2008. Trechos de Inferno podem ser vistos em:

http://www.youtube.com/watch?v=LOv3QsyJG2I 61

Link 7 - Grupo formado por artistas plásticos catalãos no início dos anos 80. Suas primeiras performances são conhecidas pelo abuso dos aspectos sensoriais e violência. Trechos da performance ―Suz/O/Suz‖ feita 1985 podem ser vistos em:

obra dramática nos tempos atuais segundo a proposta de Benjamin e Kracauer, que postulam que a percepção do ser humano é construída historicamente. Por isso, uma obra artística deve ser produzida levando em consideração os espectadores de seu tempo, assim como propunha Brecht ao dizer que fazia um teatro científico para espectadores da era científica, o teatro pós-dramático parece assumir a crescente perda da capacidade narrativa oral na sociedade contemporânea62e a crescente

importâcia das imagnes e de uma percepção da superfície.

A obra de Lehmann acerca do teatro pós-dramático parece tentar entender como que o teatro se desenvolveu frente aos avanços técnicos da sociedade e a desvantagem que tem, em relação às outras artes, no que diz respeito a sua reprodutibilidade.

A arte contemporânea será tanto mais eficaz quanto mais se orientar em função da reprodutibilidade e, portanto, quanto menos colocar no seu centro a obra original. É óbvio, à luz dessas reflexões, que a arte dramática é de todas a que enfrenta a crise mais manifesta. Pois nada contrasta mais radicalmente com a obra de arte sujeita ao processo de reprodução técnica, e por ele engendrada, a exemplo do cinema, que a obra teatral, caracterizada pela atuação sempre nova e originária do ator. (Benjamin, 1985, pp180-181)

A obra teatral está presa ao seu caráter presencial de uma forma quase que eterna. Portanto, segundo a proposição benjaminiana ela está sujeita a uma crise, que manifesta-se no início dos anos de 1900 e que parece não ser de fácil solução. Uma das estratégias mais recentes do teatro, conforme podemos ver em Lehmann (2007) é a de utilizar desta característica da "presencialidade" a seu favor, buscando operar todas as suas potências, apelando prioritariamente para a fruição na distração desta arte, por oposição ao teatro que era baseado na atenção e na dissolução do início do século XX, ou na fruição épica.

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Pode-se ver, diante disto, que há uma espécie de adaptação natural do teatro à atenção do espectador de seu tempo. Estas mudanças fazem parte das estratégias de ações do teatro para que se possa alcançar o objetivo estético e político que se deseja ao encenar uma obra. Portanto a fruição de uma obra de modo atento ou distraído são duas estratégias para lidar com percepção do espectador que coexistem desde o surgimento do teatro, mas que se alternam, enquanto formas de comunicação priorizadas pelo teatro, de acordo com a percepção dos espectadores que assistem a obra e as intenções de seus produtores.

A distração pode ser considerada como uma forma de fruição que atinge diretamente os sentidos, que é menos inteligível e mais sensível. Um bom exemplo de uma arte que se utiliza prioritariamente da estratégia de fruição pela distração é a música. A estrutura da música em si é capaz de causar sensações, emoções e sentimentos, mesmo que não sejamos capazes de elaborar racionalmente uma explicação para isto. Não é a toa que Aristóteles (1979) aponta a música como a mais mimética das artes. De certa forma pode-se dizer que o teatro que se propõe ser fruído através da distração tem estratégias de abordagem do espectador muito próximas da música.

Enfim, pode-se dizer que a distração é um tipo especial de atenção, que apela muito mais para o sensorial do espectador do que para a sua razão durante a apresentação do espetáculo. Parece ser uma forma de fruição tão potente quanto as que apelam para a racionalidade do espectador, porem muito mais difícil de ser medida e estudada por nós pelo seu aspecto predominantemente sensível.

No documento A atenção e a cena (páginas 78-87)