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Uma Verdade Interior

No documento A atenção e a cena (páginas 110-113)

3. Análise das performances de Julia Lemmertz em “Maria Stuart”

3.3 A atenção na cena

3.3.1 Uma Verdade Interior

A verdade parece ser algo bem importante para as atrizes em sua atuação. Esta questão da verdade não está ligada à questão aristotélica da verossimilhança ou à questão da verdade platônica. Parece mais estar relacionada a um tipo de ética pessoal do intérprete.

A verdade também aparece ligada diretamente com a questão da presença. É como se esta verdade, esta ética da atriz, criasse sentidos naquilo que ela faz, permitindo que ela esteja presente, por inteira, em cena, com todas suas energias concentradas na atividade que desenvolve. Este estar em cena verdadeiro relaciona-se de forma direta com a questão da concentração da atenção, conforme a fala a seguir:

Nessa peça eu sinto muito que quanto mais conectada eu estou... conectada em cena, ouvindo o que meus parceiros de cena estão me dizendo e processando aquilo para dar a resposta... Acho que tem que ser muito claro o que você está pensando, o que você está sentindo. Eu, pelo menos eu busco a verdade dentro de mim. Por mais errada que ela [a personagem Maria Stuart] seja, por mais louca que ela esteja, por mais desesperada que a personagem seja, a sinceridade é sempre desconcertante. A verdade é desconcertante. A verdade interior - não ―A Verdade‖, porque isto não existe, cada um tem a sua. (Lemmertz, 2009)

O discurso de Lemmertz nos remete novamente a Stanislávski (2010) que diz que às pessoas comuns é possível falar uma coisa e pensar em outra sem que ninguém perceba, mas que isso não é possível ao ator. A questão da verdade interior (como nos fala Lemmertz) está ligada a uma operação, que envolve todo o ser do ator, direcionando suas forças vitais e seus sentidos para aquilo que acontece no presente, na cena.

Este desnudar-se em cena expõe o ator em sua verdade. Tal desnudamento da realidade concreta do ator atordoa o espectador, deixa-o embaraçado, maravilhado, como uma grande explosão de fogos de artifício. Não é comum vermos

pessoas andando na rua se expondo de um modo sincero e verdadeiro - em geral elas o fazem em ocasiões mais reservadas, ou seja, menos públicas. Podemos entender melhor a ligação entre a verdade interior e a atenção para Isabel Teixeira no seguinte trecho de sua entrevista:

isso pra mim é a atenção do espectador, entendeu? É uma confraternização. Uma confraternização, uma comunhão entre coisas que eu posso despertar e que eu posso lembrar porque eu to sendo muito verdadeiro... eu posso te acordar em algum lugar é... que você também vai se conectar com isso que é uma verdade pra você e que sua cabeça pode até ir para outros lugares. Não necessariamente você está o tempo inteiro...eu to assim com você aqui. Eu sou um trampolim, um degrau. (Teixeira, 2010)

Em sua fala identifica-se uma relação profunda entre a atuação verdadeira e uma comunicação efetiva e afetiva. Ser verdadeiro em cena permite que exista uma comunhão, uma confraternização, um encontro72 com o espectador. Teixeira aproxima a ideia do encontro com a de atenção do espectador, subordinando-a ao estar verdadeiramente em cena do ator.

Ainda aponta que no caso do espetáculo ―Rainhas: duas atrizes em busca de um coração‖, este encontro com o espectador, ou seja, esta condução da atenção do espectador, não visa a apenas revelar os conteúdos pré-definidos, mas abrir as possibilidades de entendimentos não previstos inicialmente pelos produtores, trabalhando no sentido de emancipar o espectador, tal como propõe Rancière (2010).

Diante disto, pode-se conceituar esta verdade interior como uma estratégia do ator de manter sua atenção desperta e presente. A concentração da capacidade atentiva na cena, liberada para a ação rápida pelo hábito do ensaio que sistematiza

72 Aqui utilizamos a palavra encontro em referência ao sentido a ela atribuído por Grotowisky (1971), de uma comunhão total entre o ator e o espectador.

as falas e movimentos do ator em cena, permite ao ator um estado de atenção que é indispensável ao jogo com os outros atores e com o público.

Este tipo de estado de atenção (ou de alerta, como propõem alguns neurologistas) atinge a atenção involuntária dos espectadores de forma direta, atraindo-a para a cena. Parece que há algo de instintivo no homem que faz com que ele direcione sua atenção para onde está, espacialmente, a atenção de outrem. Isto pode ser visto, por exemplo, numa ocasião na qual uma pessoa ameaça pular de um prédio, num primeiro momento uma pessoa para e volta sua atenção para o topo do edifício e, em pouco tempo certamente haverá uma multidão de pessoas olhando para o alto do prédio.

Portanto, este estado de atenção do ator, desnudo, revelando sua verdade interior, parece ser algo que contagia o espectador e capta sua atenção, fazendo com que o espetáculo possa chegar até ele.

Ao analisar a atuação de Isabel Teixeira em ―Rainhas: duas atrizes em busca de um coração‖ parece-nos que este estar verdadeiro em cena se processa, principalmente, a partir de sua relação com a cena, conforme ela mesma aponta, como se estivesse tocando uma música em conjunto com sua companheira de palco Georgette Fadel. Por outro lado, Julia Lemmertz parece buscar esta verdade em sua relação com o texto, texto esse que media a relação entre ela e os demais atores.

Partindo da verdade interior descrita pelas atrizes, vislumbra-se as questões do jogo, do texto e da música. Para fins analíticos estas estão separadas em categorias, mas é importante salientar que em cena elas se processam de forma conjunta e simultânea.

No documento A atenção e a cena (páginas 110-113)