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Sobre a atenção do espectador

No documento A atenção e a cena (páginas 124-129)

3. Análise das performances de Julia Lemmertz em “Maria Stuart”

3.3 A atenção na cena

3.3.6 Sobre a atenção do espectador

Este estudo fala da atenção tendo como ponto de vista privilegiado o do ator. Porém, não há como falar da atenção na cena sem recorrer a todo momento a atenção do espectador. É dela, principalmente, que depende a eficácia da encenação.

Para compreender esta atenção do espectador é necessário falar de seu caráter múltiplo e das influências que a cultura do espectador tem sobre a operação do mecanismo atencional. Há uma íntima ligação entre a atenção e a cultura na qual o homem está inserido. Como vimos, além dos fatores biológicos, os fatores sociais são decisivos para a atenção e isto fica evidente quando o que está em questão é uma plateia teatral.

A atenção está intimamente ligada à memória. Um indivíduo que presta atenção em algo, não está apenas prestando atenção, mas prestando atenção sob uma condição pré-estabelecida por suas vivências anteriores. Isso explica porque numa mesma cena, assistida por dois espectadores distintos, podem ser vistos dois aspectos distintos (um pode lembrar do sapato e outro na luz). O que é observado tem relação direta com a história da pessoa que observa. (Xavier, 2010)

Há, decerto, uma variação entre a atenção dos espectadores de acordo com suas vivências pessoais, mas podemos pensar que é improvável que um ator consiga, em cena, distinguir cada uma das atenções. Por outro lado há um tipo de atenção que se constitui de forma mais geral a partir da cultura local. Por exemplo, a atenção de um esquimó que habita uma pequena vila é diferente da atenção de morador de uma megalópole como São Paulo.

Neste exemplo trabalhamos com situações extremas, mas as diferenças culturais da atenção podem ser percebidas entre duas cidades do mesmo país. É o que aparece na fala de ambas as atrizes:

O espetáculo é sempre o mesmo, mas a reação nunca é igual... e ainda a gente está viajando pelo Brasil inteiro e essas reações diferem de estado pra estado... Com o Enrique Diaz a gente viajou pelo mundo. A gente fez três continentes. Eu fiz três continentes. A gente fez ―A gaivota‖ no Japão. Como que é a Gaivota no Japão... engraçado porque a gente viajou por um ano e meio e eu tenho a sensação de turista e ao mesmo tempo a sensação de receptividade da peça que a gente estava levando pelo público. Então, por exemplo, Barcelona pra mim foi uma maravilha... o público catalão era um público que ia de armadura no teatro, os japoneses... foi maravilhoso fazer para os japoneses, reverenciando, era uma coisa educada, era uma plateia ereta e educada, receptiva e ao mesmo tempo ligadaça – era muito interessante assim... os espanhóis mais difíceis, os franceses mais receptivos sim, mas querendo... então em cada lugar batia de um jeito, lógico... a gente vive, come, anda por ali, cada pessoa é diferente, cada cultura é diferente e cada dia é diferente. E no Brasil a gente foi fazer essa peça em São Luiz do Maranhão e foi tão louco... um lugar tão louco, um teatro tão maluco, as pessoas tão ávidas... no Rio de Janeiro a peça não deu certo... tivemos uma crítica horrorosa, péssima da Barbara Heliodora... normal, não pegou entendeu.... não havia uma conjuntura do cotidiano da cidade que abarcasse essa história... (Teixeira, 2010)

Às vezes sim... eu sempre gosto, por exemplo, de na hora do intervalo... o Antonio Gilberto, o diretor, às vezes fica vendo o espetáculo e na hora o intervalo eu pergunto ―e aí? O que o público ta falando... me fala o que eles falam... o que eles comentam, o que querem saber...‖ E a gente em Brasília, quando a gente estreou, a gente nunca tinha feito este espetáculo pra ninguém, nem ensaio aberto nem nada, e a gente estreou em Brasília. Daí a gente descobriu que este espetáculo era altamente político, porque Brasília é um negócio...as pessoas riam... em alguns momentos que eles se reconheciam... Eu assinei, mas não quer dizer nada. Como não quer dizer nada, a sua assinatura é que decide tudo... mas então a senhora concorda com a morte... não isso eu não digo e tremo só de pensar... como assim, entendeu? E as pessoas ficavam en-lou-que- ci-das, eles comentavam no meio do espetáculo. E era uma gente muito simples – Banco do Brasil, Centro Cultural, um dos ingressos mais baratos hoje em dia – gente que não conhecia a história da Inglaterra, não sabia de nada... então entrava lá o Okelle... o Paulet falava a rainha morreu assassinada e o público comentava ― ela morreu, ela moreu‖ entrava depois o Okelle e falava que a rainha estava viva e o público comentava ―ela está viva, ela está viva‖. Ai tinha um comentário que você sentia que o espetáculo tava vivo... (Lemmertz, 2009)

Há uma consciência das atrizes, formada a partir de suas experiências, de que existe uma diferença; mas o que fazer diante destas diferenças? Parece, em seus discursos, que nada pode ser feito. Só resta ao ator apresentar a peça, em sua forma definida através do ensaio e das apresentações anteriores, e esperar que o espectador adira ao espetáculo.

A relação de aderência do espectador pode ser sentida de modos diferentes, mesmo quando as apresentações são feitas em uma mesma cidade. Como cada plateia é composta por pessoas diferentes, pode ser que num dia a eficiência da estratégia de operação da atenção seja maior ou menor. Claro que a variação dos próprios atores acaba por influenciar nesta equação.

É muito curioso, o público é muito variável. As vezes parecem que eles combinam de entender todos e às vezes eles combinam de não ―entrar‖ no espetáculo. É claro que, até certo ponto, a gente é responsável por isso. (Lemmertz, 2009)

Diante deste grau de variação, as atrizes parecem assumir uma mesma estratégia de combate: tentar seguir a peça conforme estava previsto. Apesar das variações dos espectadores, elas reconhecem que o modo como o ator conduz a cena é fundamental para que se estabeleça a comunicação.

Do jeito que você joga a bola eles jogam de volta pra você. Se você entrar vazio, com a bola murcha, eles vão falar: a bola tá murcha, não estamos entendendo nada. Não existe a possibilidade de você estar fazendo um grande espetáculo e a plateia não estar entendendo. Eu acho muito difícil. (Lemmertz, 2009)

Além do papel fundamental dos atores em estabelecer a comunicação com os espectadores, eles devem coadunar neste sentido todos os demais elementos da encenação. Em ambos os espetáculos os momentos iniciais são fundamentais para tudo o que vai se seguir.

No caso do espetáculo ―Rainhas: duas atrizes em busca de um coração‖ o início do espetáculo é um vazio. Um espaço em branco, no qual os próprios espectadores passam a ser atores e espectadores de si mesmos. Um soluço, um riso, qualquer um destes estímulos chamam a atenção dos outros espectadores que olham uns para os outros. Cria-se uma expectativa que aumenta cada vez mais. A ausência das atrizes incomoda o espectador e traz uma ausência de sentido para a sua presença no teatro. Partindo disto são criadas as condições para que o espetáculo se desenvolva.

Já em ―Maria Stuart‖ é utilizada a tática de abrir a cortina acompanhada por uma música alta em volume e andamento forte. É como se soasse uma campainha, uma explosão, que atrai irremediavelmente a atenção do espectador para o palco. Esses elementos indicam para a atenção do espectador que algo importante se sucederá, naquele local, nos próximos minutos. Esta abertura prepara a entrada de Maria Stuart em cena, que é fundamental para o desenvolvimento da peça.

Imagina-se que por meio destas reflexões tenha sido possível estabelecer definitivamente a interdependência das atenções dos atores e dos espectadores, bem como a importância do estudo do teatro sob a perspectiva da atenção. A eficiência comunicativa de um espetáculo está, em primeira instância, relacionada à esta equação invisível, muito maior do que a simples soma das atenções de atores e espectadores.

No documento A atenção e a cena (páginas 124-129)