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PROBLEMATIZANDO AS FRONTEIRAS

2.4 Caracterização das cidades de São Borja e Santo Tomé

2.4.3 Bem-vindos a São Borja

2.4.3.4 Gaúchos da Fronteira

2.4.3.4.1 A atuação do grupo artístico Os Angueras.

Em março de 1962 Apparicio Silva Rillo e mais nove pessoas fundam o grupo artístico amador “Os Angueras” nome que homenageia a um índio guarani que os padres das Missões batizaram e lhe deram o nome de Generoso. Na mitologia missioneira Anguera é considerado o patrono da alegria e a música gaúcha. Com

esse grupo encenou peças teatrais, montou jograis, realizou bailes e jantares, participou de inúmeros festivais nativistas.101 Durante os anos 70 e 80 eles participaram do impulso nativista. Sobre essa época conta o historiador Tau Golin que:

Naquele momento, o início dos anos 1980 representava uma espécie de era gauchesca. A força da comunicação de massa implantou a lógica de que quem não se pilchava, troteasse em algum ritmo tradicionalista, não era rio- grandense, fazia parte de um estranhamento estrangeiro (brasileiro, castelhano, ianque). O gauchismo passou a ser uma poderosa ideologia, um lugar hipotético e real, que anulava as diferenças em outra dimensão

simbólica, porém sustentada em poderosos mecanismos concretos.102 Duas obras dos grupo continuam sendo referência na cidade: o Museu Ergológico e de Estância Os Angueras e o Festival da Barranca.

Sobre o Museu, lemos no site oficial que:

é ou pretende ser um repositório dos móveis, utensílios, veículos e trastes em geral que amparam o curso temporal das Estâncias ou Fazendas no Rio Grande do Sul e, genericamente e por extensão, de outros objetos que fizeram florescer esses estabelecimentos pastoris gaúchos. Nessa perspectiva, reúne sob seu teto todos aqueles elementos da cultura material gauchesca que, direta ou indiretamente, ajudaram o homem da região da Missões e da Fronteira (de que São Borja é uma espécie de divisor de águas), a consolidar, de 1801 e esta parte, a sociedade de pastoril - modernamente transformada em agropastoril - de que fazemos parte, dinamizada no tempo e no espaço por nossos ancestrais.

Um grande número de peças e elementos do que poderíamos chamar de "civilização do gado" em nossa região, não mais existem ou estão em vias de acelerado desaparecimento. Por isso a urgência de uma instituição como esta, onde, com o vagar e a pertinácia que os ideais como esse requerem, se possa reunir essas peças em processo de extinção - antes que, num amanhã cada vez mais próximo, seja impossível reuni-las. A chamada memória regional se deteriora a cada novo dia. Vimos perdendo nossas origens materiais a cada hora que passa. E entendemos - nós, de Os Angueras - que temos compromissos com as gerações vindouras para que tal não suceda. Que fique pelo menos este Museu de pé, a contar o que fomos e de onde viemos. 103(Site oficial)

Achamos então no discurso do grupo e na sua atuação referencias a um passado remoto, a exaltação de um modo de viver idealizado, um discurso que no dizer de Hall (2006)

101http://www.angueras.com.br/historico.htm

102TAU GOLIN, Luis Carlos Porque não matei o general Médici em

http://www.sul21.com.br/jornal/porque-nao-matei-o-general-medici/ 103http://www.angueras.com.br/museu.htm

constrói identidades que são colocadas, de modo ambíguo, entre o passado e o futuro. Ele se equilibra entre a tentação por retornar a glórias passadas e o impulso por avançar ainda mais em direção à modernidade. As culturas nacionais são tentadas (…) a se voltar ao passado (…) Mas frequentemente esse mesmo retorno ao passado oculta uma luta para mobilizar as 'pessoas' (...) para que expulsem os 'outros' que ameaçam sua identidade...104

Desde essa perspectiva também pode se entender que o grupo realizou através de suas escolhas, movimentos que apagaram outras presenças na cultura do lugar, como o missioneirismo que abraçaram outros povos da região, a cultura negra, a mulher (identificada como a prenda, flor ou a chinoca, esterótipos gauchescos) e a própria cultura nacional brasileira. Pode ler-se no relato que Rillo faz dos inícios do Festival da Barranca:

Pois sucede que o pessoal de Os Angueras e mais alguns de achego, desde pelo menos 1965, realizavam duas grandes pescarias no ano: uma na Semana Santa, outra em setembro. A primeira para o tradicional jejum de carne (mulheres não nos acompanhavam e até hoje não). A outra na Semana da Pátria, para escapar (desculpa ...) dos chatíssimos desfiles que são a tônica da efeméride cívica.105

Também se revela o tradicionalismo ferrenho deles na eleição das temáticas que esse festival propõe ano a ano, temáticas como “O cavalo e o tempo”, “Três Pampas e um Homem”, “Reflexões na Hora do Mate”, “Terra, fonte de Vida”, “Querência”, “Este jeito Gaúcho” que não parecem refletir evolução nenhuma desde seu início e continuam apelando ao essencialismo. Por exemplo, não aparece como tema a ribeira de Santo Tomé, ou nos últimos anos a ponte, presenças pregnantes na paisagem são-borjense. Os temas poderiam formar parte de qualquer festival em qualquer parte do Estado.

O festival é um dos eventos de maior relevância no Rio Grande do Sul, e ainda mantém, não sem críticas, particularidades como a da participação unicamente por convite e a muito polêmica tradição de não aceitar mulheres já faz 45 anos. Em artigos recentes como o da violinista e etnomusicóloga gaúcha Clarissa

104HALL, S. As culturas nacionais como comunidades imaginadas em “A identidade cultural na pós- modernidade” Trad. Tomaz Tadeu da Silva, Guaracira Lopes Louro. 11 ed. R.J. (2006)

Ferreira106(2016), se debate esta característica “excêntrica” e junto com ela outras do universo do tradicionalismo gaúcho:

Todas as justificativas que ouço sobre a proibição de mulheres no festival, ao meu ver, recaem em uma única explicação: a falta de interesse em ouvir o que a mulher tem a dizer. Vocês já se perguntaram como seriam nossos entendimentos sobre a cultura gauchesca? Por que o eu-lírico da música gaúcha tem que ser sempre masculino? Possivelmente seja porque nossos discursos não tenham por objetivo exaltar o mundo masculino (e suas peripécias) que é o que parece ser o cerne e o intento da cultura

gauchesca. Esta, como sabemos, foi construída e alicerçada a partir das representações do masculino. Segundo o antropólogo Roberto Da Matta “a figura masculina é predominante nos locais que, como o Rio Grande, tem suas identidades forjadas pelas questões políticas. Os gaúchos foram republicanos antes do restante do país. E o que quer dizer ser republicano? Quer dizer igualdade perante a lei, ter uma constituição que vale para todos, etc. Esses elementos acabam determinando uma imagem de um cara que luta pelos seus direitos, é assertivo, fala alto – e que acabou simplificado como machão”.

Outra explicação para esta construção da identidade gauchesca relacionada ao gênero masculino pode ser entendida a partir das citações do historiador Hobsbawm, quando relaciona as construções de mitos ocidentais que tem em comum “serem gerados por um grupo social e economicamente marginalizado de proletários desarraigados”, afirmando: “Os grupos que geram com mais facilidade o mito heroico, suponho, são as populações especializadas em andar a cavalo, mas que, em certo sentido, ainda se mantêm vinculadas ao resto da sociedade; ao menos no sentido de que um camponês ou um rapaz da cidade possa imaginar a si mesmo como um caubói, um gaúcho ou um cossaco.”

Este tipo de criação social imaginária não está presente exclusivamente na cultura gaúcha. Segundo o historiador, a constituição deste mito refere-se a uma fundamentação histórica secular, do mito do centauro, que teria influenciado enormemente a cultura ocidental através de características masculinas, pastoris e que possuem ligação com o cavalo. Para Hobsbawm “o que eles têm em comum é óbvio: tenacidade, bravura, o uso de armas, a prontidão para infligir ou suportar sofrimento, indisciplina e uma forte dose de barbarismo ou ao menos de falta de verniz, o que gradualmente adquire o status de nobre selvagem. Provavelmente também esse desprezo do homem a cavalo pelo que anda a pé, do vaqueiro pelo agricultor, e esse jeito fanfarrão de andar e se vestir que cultiva como sinais de superioridade. Acrescente-se a isso um distinto não intelectualismo, ou mesmo anti- intelectualismo. Tudo isso tem excitado mais de um sofisticado filho da classe média citadina. ”

Nesta extensa citação condensa-se muito do universo cultural do tradicionalismo gaúcho com uma visão atualizada e feminina, uma novidade para 106 Até quando só eu lírico masculino? Sobre o Festival da Barranca e a proibição de mulheres há 45 anos http://rondadosfestivais.blogspot.com.br/2016/03/sobre-o-festival-da-barranca.html Originalmente no blog “Gauchismo líquido”, 2016

esse universo ideológico, que nos permite compreender, ao menos parcialmente, sua importância como parte da ideopaisagem são-borjense, dados los componentes ideológicos que pode veicular. Por último, não deixaremos de lembrar que Apparício Silva Rillo forma parte do panteão de figuras que a cidade resgata (além do Museu Municipal e uma escola estadual levarem seu nome, todo ano realiza-se uma semana em sua homenagem patrocinada pela Câmara de vereadores) e que foi um articulador de muitas das imagens que aqui descrevemos como membro ativo da cena cultural local e colaborador da Prefeitura nos anos 1980, como historiador (entre outros livros, escreveu “São Borja em perguntas e respostas” que distribuíram nas escolas), autor do hino municipal, jornalista, promotor dos monumentos das missões, revitalizador de antigas tradições e figura destacada do nativismo.