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A POLÍTICA LINGUISTICA: HISTÓRICO, CONCEITOS E REFLEXÕES

1.3 Qual é concepção de bilinguismo presente no PEIF?

Interessa-nos agora saber qual é a proposta de bilinguismo do PEIF.

Em princípio, no documento fundador não aparece uma única definição clara e norteadora, mas podemos extrair dele trechos onde desenvolve-se a questão, de modo de ajudar na compreensão da postura adotada frente ao bilinguismo. Além da ênfase mencionada no subtitulo, o ponto 2.1 de “Escolas de Fronteira” (BRASIL e ARGENTINA, 2008) fala que:

O programa possibilita uma exposição sistemática a:

a) usos da segunda língua, na medida em que a outra língua passa a fazer parte de maneira cada vez mais presente no cotidiano da escola...

b) uma relação pessoal com um falante nativo da segunda língua. A criança não é exposta somente a usos da segunda língua, mas é possibilitado a formação de um vínculo com uma pessoa que conversará com ela exclusivamente na segunda língua...

c) um profissional da comunidade nacional / cultural da qual essa língua é a

expressão mais generalizada... (BRASIL e ARGENTINA, 2008: 17)

Então aparece com claridade a intenção de exposição a uma L2 acompanhado da escolha de um tipo específico de contato com falantes nativos e profissionais. Consideraremos as implicações destas caraterísticas no capítulo de análise de dados, ressaltando por enquanto que a L2 é apresentada principalmente por um professor-modelo. Continuando com a leitura, aparece em seguida um propósito:

o aluno egresso do Programa terá um domínio suficiente das línguas portuguesa e espanhola para interatuar com seus pares em contextos previsíveis de intercâmbio linguístico. Ao trabalho intercultural e de sensibilização linguística realizado nos primeiros anos de escolaridade, soma-se, nos últimos anos, um trabalho mais sistemático que permita aos alunos atuar de forma plena em contextos que demandem a utilização de práticas sociais de compreensão e produção nas duas línguas.(BRASIL e ARGENTINA, 2008: 21)35

35 Na versão do documento em espanhol, feita para o Mercosul Educativo, aparecem mais línguas envolvidas, como o guarani.

Dessa maneira planteia-se a questão da aprendizagem dessa L2 como um objetivo do programa. Na hora de definir como esse objetivo seria atingido, aparece a seguinte asserção:

Para o aprendizado da segunda língua vale o mesmo princípio: as práticas da escola serão bilíngues na medida em que falantes de espanhol e de português conviverem nas suas funções escolares ligadas à produção e à circulação do conhecimento. O bilinguismo aqui trabalhado apresenta uma estrutura que parte das práticas efetivamente construídas nas escolas, da convivência e dos contatos linguísticos que se fazem presentes na rotina escolar. O planejamento conjunto, como outros encontros entre o corpo docente, são oportunidades da prática do bilinguismo: fazem circular discursos falados e textos escritos nas duas línguas, permitem escutar a língua do outro, e portanto, escutar o outro e entendê-lo na sua língua. (BRASIL e ARGENTINA, 2008: 27)

Note-se que aparece a palavra aprendizado sem sua habitual acompanhante ensino. Isto poderia causar a impressão que a proposta é a aquisição pelo simples contato. O Projeto tem como propósito o ensino na língua segunda e não o ensino da língua, focando nos usos das línguas. Isto está expressado na metodologia de Ensino via Projetos de Aprendizagem (EPA) definida da seguinte forma:

Na perspectiva do ‘Ensino via Projetos de Aprendizagem’ (EPA) as crianças participam de projetos bilíngues que preveem tarefas a serem realizadas

em português e em espanhol, coordenadas respectivamente pela docente

brasileira ou argentina, de acordo com o nível de conhecimento do idioma que possuam e de acordo com o planejamento conjunto realizado periodicamente por professoras argentinas e brasileiras com suas respectivas assessorias pedagógicas. Os projetos, portanto, são bilíngues:

o aluno realiza determinadas tarefas em uma língua e outras tarefas na outra língua, mas todas estas tarefas confluem para um objetivo comum,

que é produzir respostas e compreensões a partir de uma problemática central, determinada de antemão. (BRASIL e ARGENTINA, 2008: 28) O foco neste trecho, insistimos, não está colocado no aprendizado de uma língua, mas em adquirir a capacidade de realizar tarefas utilizando a outra língua, uma noção próxima à proficiência e mais complexa que a intercompreensão.

Assim o PEIF propõe a introdução de uma língua estrangeira específica (a dos vizinhos do outro lado da fronteira) de um modo particular dentro das salas de aula, o ensino de conteúdos escolares nessa língua selecionada, e pretende influenciar nas atitudes para com essa língua, entendendo que com isso último se influencia também a atitude para com os falantes dessa língua. O programa explicita

a ênfase nas línguas entendendo-as como veículos de cultura, sem traçar objetivos sobre o domínio de estruturas gramaticais ou tarefas específicas. Compreende-se assim a seguinte afirmação feita no documento Política para una Nueva Fronteira (ARGENTINA, 2007):

A decisão básica de que fossem os próprios docentes das escolas os que atravessassem a fronteira para trabalhar no país vizinho outorgou ao Programa uma das suas características mais originais. Esta decisão, sem dúvidas, mostra a importância substantiva do componente intercultural para o desenvolvimento do bilinguismo. As nossas dúvidas e perguntas teriam sido outras se tivéssemos escolhido os professores de português ou de espanhol do próprio país, para trabalhar num espaço curricular pré- determinado para o ensino de uma língua estrangeira. (ARGENTINA, 2007: 43)(grifo nosso)

Neste trecho, aparece a estreita relação entre interculturalidade e bilinguismo, deixando clara a escolha de não ensinar as línguas como parte da grade curricular. Assim continua o documento:

… docentes que sem ser professores de segundas línguas se desempenhariam como portadores de cultura, ensinando na sua própria língua, segundo os projetos de sala de aula desenhados em parceria, entre a Argentina e o Brasil. Quer dizer que, na construção desse modelo comum de ensino, o bilinguismo parte das práticas pedagógicas efetivamente

desenvolvidas em ambas as línguas, e não da existência de uma grade curricular previamente configurada, como seria o caso de uma escola que

oferece o ensino de uma língua estrangeira. (ARGENTINA, 2007: 46)(grifo nosso)

Esse partir “das práticas pedagógicas efetivamente desenvolvidas em ambas as línguas” aproxima a proposta àquela que aborda Maher (2007:79) ampla e abarcadora. Coincidindo com os autores dos textos apresentados, isto constitui um rasgo de originalidade e poderíamos adicionar de dinamismo, porém, também de incerteza. Nos trechos citados aparece a possibilidade de atingir a proficiência em determinadas tarefas, mas não todas, em cada uma das línguas. Mas nos seguintes trechos achamos outras definições sobre o tipo de bilinguismo proposto. Na portaria 798/12, que institui o PEIF, lemos no art. 2 que descreve seus princípios a seguinte definição:

II - Bilinguismo, que prevê que o ensino seja realizado em duas línguas, o

espanhol e o português, com carga horária paritária ou tendendo ao paritário, com uma distribuição equilibrada dos conhecimentos ou disciplinas ministradas em cada uma das línguas. Prevê, ainda, pelo

respeito ao sujeito do aprendizado, a presença na escola de outras línguas regionais, conforme a demanda; (BRASIL, 2012)

E em Política para una nueva frontera expressa-se que “A perspectiva a ser desenvolvida é de bilinguismo aditivo, em que não haja perda da língua materna, mas desenvolvimento linguístico nas duas línguas.” (ARGENTINA, 2007: 72)(grifo nosso). Para recapitular, esta última asserção e o parágrafo anterior não deixariam dúvidas sobre o tipo de bilinguismo escolhido, desde o ponto de vista do status das línguas, que é de caráter aditivo. A Portaria não aclara se essa paridade entre conhecimentos e disciplinas ministradas nas duas línguas implicaria também produção verbal nas duas línguas, o que afastaria a proposta da intercompreensão.

As definições apresentadas transitam entre partir das “práticas efetivas” do bilinguismo e seguir o modelo do “falante nativo”. Estas ambiguidades, que foram aparecendo com o tempo, podem ser uma chave para compreender porque a palavra “bilinguismo” tem desaparecido da sua denominação original no Brasil. O esforço que realizamos para definir esse conceito neste contexto especial é um exercício que coloca-nos de novo frente a ideologias linguísticas diversas, ideologias e práticas. Johnson (2013: 6) lembra-nos, sobre a diferença de concepções entre Schifmann e Spolsky que

… enquanto Schiffman afirma que a política linguística é baseada em crenças linguísticas e ideologias, Spolsky retrata tais crenças e ideologias como política linguística. Ele também inclui as práticas de linguagem, não ocorrendo como resultado de, ou resultando em, políticas linguísticas, mas como políticas linguísticas em si mesmas. (JOHNSON, 2013: 6)

ressaltando a dimensão política da linguagem. Retomando então a pergunta que abre o subtópico, por que o PEIF caracteriza uma Política Linguística?, no percurso realizado apareceram problemas tais como a regulação dos usos e funções de uma ou outra língua (ensinar a ou na L2 é um exemplo), neste caso na sala de aula e a escola em geral; a regulação das ações dos sujeitos sobre a língua (quando é permitido ou estimulado falar em uma ou outra língua), as decisões sobre as línguas de trabalho e outras que surgem das “práticas pedagógicas efetivamente desenvolvidas em ambas as línguas” trazendo de novo a voz oficial. Essas práticas pedagógicas são também práticas linguísticas, posto que se realizam materialmente através da linguagem e muitas vezes envolvem explicitamente decisões e reflexão

sobre as línguas. Podemos responder finalmente que o conjunto das crenças, ideologias e práticas expressadas tanto nos documentos como as apresentadas nos trabalhos acadêmicos, que aqui tentamos resumir, configuram uma Política Linguística no sentido que Spolsky (2004) a define.

Seguidamente, nossa atenção estará focada no conceito de ideologia linguística.