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A POLÍTICA LINGUISTICA: HISTÓRICO, CONCEITOS E REFLEXÕES

1.6 O Conceito de Intercompreensão na PLE.

Um dos conceitos que está presente no PEIF, mas que não está escrito com esse nome nos documentos fundadores, é o de intercompreensão. Este conceito nasceu com esse nome no contexto da educação plurilíngue na União Europeia, como resposta à atenção da diversidade linguística do continente, e começou a ser

desenvolvido a princípios dos anos 1990. Doyé (2005: 7) o define como “uma forma de comunicação na que cada pessoa usa sua língua e compreende a do outro”51. Esta definição exclui o uso da língua “alvo” e inclui tanto as formas de comunicação falada como escrita. Isto é importante já que um traço característico da intercompreensão é que não demanda a habilidade de produção verbal na língua “alvo” (DOYE, 2005: 7). Apresenta-se como uma alternativa à difusão e uso de uma língua franca diante das desvantagens que isso apresenta, como são: o perigo de imperialismo linguístico, a desvantagem do uso da língua cindido da cultura dessa língua franca, e a insuficiente comunicação e potencial depreciação da língua mãe.

Em compensação, Doye apresenta os consensos atingidos sobre as vantagens desta abordagem:

 é politicamente relevante

 está bem fundamentado psicologicamente  é educacionalmente razoável (DOYE, 2005: 9)

Sobre o primeiro ponto, se bem podemos coincidir em ambos os casos, das desvantagens do uso da língua franca e as vantagens da abordagem da intercompreensão, reiteramos que toda a fundamentação desta abordagem nasce das necessidades linguísticas e educacionais do contexto plurilíngue e plurinacional da União Europeia, encarando a intercompreensão como:

uma capacidade importante na construção de uma Europa mais aberta ao diálogo e mais respeitadora das especificidades linguístico-culturais de cada contexto, região ou país, permitindo ultrapassar barreiras e obstáculos (Andrade & Moreira et. al. 2002, p. 54 apud Andrade etal. 2007).

O deslocamento desta proposta para o Mercosul, promovendo a interculturalidade levando em conta culturas nacionais e linguisticamente e educacionalmente traduzido no lema “ensinar na língua e não a língua” pressuporia ter achado similitudes históricas ou conjunturais entre os processos europeu de unificação continental e o de integração do Cone Sul de América que fariam que a abordagem fosse frutífera nestas terras. Afirmar esta última condição resulta pelo menos arriscado. Ainda assim poderíamos coincidir em que uma abordagem da 51 DOYE, P Intercomprehension: Guide for de developement of language education policies in Europe: from linguistic diversity to plurilingual education. 2005. Strasburg, Council of Europe.

intercompreensão seria politicamente relevante, mas estudando antes quais situações são similares e se é possível tratar da mesma maneira diferentes contextos socioculturais e realidades escolares divergentes.

A fundamentação psicológica repousa sobre “a interação da faculdade do homem para a linguagem e sua capacidade de explorar recursos de conhecimento previamente adquiridos.” (DOYE, 2005: 10)

A razonabilidade da abordagem baseia-se na confiança nas capacidades dos professores para motivar os alunos e de promover aprendizagens significativas.

Continuando com a breve descrição da abordagem, numa dimensão metodológica, seguindo a Andrade et. al. (2007), a intercompreensão “consiste em inter-relacionar dados linguísticos e não-linguísticos em situação de comunicação intercultural, isto é, em situação de contacto com línguas não dominadas”52 e cita Santos e Andrade apontando que:

A intercompreensão parece ser, por excelência, a competência que permite ao sujeito movimentar-se entre dados linguísticos, pertencentes ou não a uma mesma língua, ou seja [...] permite lidar com o linguisticamente desconhecido através do estabelecimento de relações entre este desconhecido e outros dados que [o sujeito] domina melhor, sejam eles dados já adquiridos e que, por isso, já pertencem ao quadro de conhecimentos prévios do sujeito, ao seu referencial linguístico-cultural, sejam outros dados novos, em presença, até, daqueles com que está a lidar, mas que, por alguma razão, lhe são, naquele momento, mais acessíveis (Santos & Andrade, 2004 apud Andrade, 2007).

Desde a dimensão política, a abordagem da intercompreensão deveria ser capaz de favorecer a tomada de consciência sobre a diversidade linguística e cultural, pressupondo que “o tratamento didático da intercompreensão promove a vontade de compreender o outro” (ANDRADE et. Al. 2007: 3) e que “Tudo o ensino de línguas deve promover uma posição que reconheça o respeito da dignidade humana e da igualdade dos direitos humanos como a base democrática para a interação social”.53(BYRAM, GRIBKOVA AND STARKEY, 2002: 13 apud ANDRADE op. Cit : 3).

Para finalizar citamos novamente Andrade quando afirma que:

52 ANDRADE et Al. Intercompreensão e formação de professores: percursos de desenvolvimento do projecto ILTE. (2007)

53 “All language teaching should promote a position which acknowledges respect for human dignity and equality of human rights as the democratic basis for social interaction” (Byram, Gribkova and Starkey, 2002, p. 13). apud ANDRADE Op. Cit.: 3.

A intercompreensão acaba por ser uma noção que, no repertório didático do professor/educador, mobiliza a preocupação de reintroduzir o sujeito na construção da linguagem, num paradigma crítico-reflexivo, onde esse mesmo sujeito é confrontado com a diversidade linguística e cultural (múltiplos códigos, linguagens, culturas, sujeitos), em contextos simultaneamente locais e globais de comunicação, onde a diversidade pode ser apreendida e reconstruída na relação com o outro. (ANDRADE et. Al; 2007:4)

Podemos dizer que os fundamentos políticos, psicológicos e didáticos da abordagem podem resultar coerentes, mas a recepção da proposta na América Latina requer uma revisão das condições socioculturais, políticas e, por se tratar de uma proposta de política linguística e educacional, das tradições e conceições sobre língua e cultura que circulam nos sistemas educativos, fundamentalmente na formação de professores. Para promover uma mudança de abordagem da língua e seu ensino, isto constitui uma condição necessária. Muitas destas questões aparecem neste trabalho na fala de de professores e autoridades, em relatórios e depoimentos, mostrando as inadequações, conflitos entre pares, e desinteresse produto da falta de entendimento sobre a abordagem da intercompreensão. Veremos como ela gerou conflitos com a prática e tradições escolares, construídas durante gerações, analisadas nos diferentes capítulos do nosso texto.

Ao longo deste capítulo montamos todo nosso arcabouço teórico relacionado com as Políticas Linguísticas, apresentando o desenvolvimento histórico da disciplina, a especificidade que têm as Políticas Linguísticas Educacionais e por que deve considerar-se o PEIF uma delas. Apresentamos diferentes conceições de bilinguismo, visando responder qual delas guia a proposta do PEIF e introduzimos os conceitos que mobilizam as Ideologias Linguísticas, fundamentais para uma posterior análise. Desenvolvemos o conceito de intercompreensão, que está presente no Programa, e propusemos problematizar sua adoção na América Latina.

CAPÍTULO 2