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PROBLEMATIZANDO AS FRONTEIRAS

2.4 Caracterização das cidades de São Borja e Santo Tomé

2.4.1 A região de São Borja-Santo Tomé como ideopaisagem.

2.4.1.2 Santo Tomé, Ciudad Jesuítica.

O acesso principal da cidade de Santo Tomé está marcado pela presença jesuítica num monumento que lembra algumas das construções típicas das reduções, feitas com tijolos, e uma grande cruz das missões que a Companhia de Jesus usara como símbolo. Esse monumento lembra do passado reducional da cidade, e foi construído a finais dos anos 1970, quando conformou-se o corredor turístico das missões. Essa é a primeira marca da identidade jesuítica recuperada, junto com diversos monolitos que se erguem nas calçadas do centro da cidade lembrando diversos fatos históricos do passado jesuítico e das guerras da independência e do Paraguai, quando Santo Tomé foi arrasada e reconstruída duas vezes.

Quem entrar na cidade pela estrada desde a Ponte da Integração, vai achar a presença de outro monumento lembrando as lutas pela defesa do território dos portugueses (ou luso-brasileiros segundo a literatura que for consultada). É o

monumento ao comandante guarani Andrés Guauzurarí (ou Guaçurary) y Artigas, quem foi herói da defesa de Santo Tomé, participou das lutas pela independência da Argentina e as expedições ao Paraguai e foi Comandante das Missões Ocidentais. Andresito, (quem fora adotado pelo José Gervasio Artigas, herói nacional uruguaio) possui várias homenagens nas províncias de Corrientes, Misiones, e na República Oriental del Uruguay. Foi reconhecido general post-mortem pelos exércitos de Argentina e Uruguai. Desde 2015, no dia do seu nascimento, 30 de Novembro, é comemorado o “Día Nacional del Mate”.77

No centro da cidade, como poderia inferir-se a partir da descrição que fizemos do traçado arquitetônico, encontra-se a praça principal do povoado, e na frente, dividindo o quarterão com os prédios das instituições mais importantes da comunidade, como a Municipalidad e uma sede da Universidad Nacional del

77La Nación, 28 de Janero de 2015 http://www.lanacion.com.ar/1763730-a-celebrar-ya-tienen-su-dia- el-mate-y-los-humoristas

A Praça e a Avenida principal, como milhares na República Argentina, homenageiam ao herói nacional “Padre de la Patria” General Don José de San Martín, quem era natural da provincia de Corrientes, segundo a história oficial da cidade de Yapeyú, uma das cidades missioneiras, não muito distante de Santo Tomé. A presença da figura de San Martín nas praças argentinas, sempre retratado no seu cavalo, é marcante, e está ligada como ícone à província, porque mesmo ele não tendo vivido muito tempo no seu lugar de origem, a história que a escola primária argentina conta não deixa esquecer os fatos. Como ilustração apresentamos o seguinte trecho:

Me acuerdo de la provincia de Corrientes, en Argentina, por la escuela primaria. Por la figurita de un prócer, el libertador de América Don José de San Martín, que recortaba de la revista Anteojito, para hacer el cuadro en la hoja del cuaderno de clase. Marco de papel glacé plegado y su rostro allí adentro. Si de rincones de tierra correntina se trata, tengo presente a Yapeyú, por ser la cuna del General. (OCHOA, 2008: 3)

A imagem escolar que aparece no texto foi tirada de um relato de experiência feito por uma professora de Buenos Aires que narrou seu passo pelo PEIF em Paso de los Libres- Uruguaiana. Assim nos achamos no centro da cidade junto ao “Padre de la Patria, Libertador de Argentina, Chile y Perú” e com o guarani Andresito na periferia, marcando as hierarquias que as elites políticas locais escolheram historicamente para ela.

No mesmo quarterão da Igreja e a Intendencia, vários murais lembram o passado das reduções, as lutas pela independência, as guerras guaraníticas e a destruição da cidade durante a guerra contra o Paraguai. Apresentamos eles junto com os epígrafes que os acompanham em placas coladas nos muros.

Como primeira reflexão devemos dizer que nas ruas da cidade está presente o passado missioneiro da cidade e da Republica argentina expressado na trama urbana, em monumentos, obras artísticas várias e na arquitetura. Essa valorização pode entender-se em parte, a partir do ingresso da cidade ao “circuito turístico das missões” em 1978, que promoveu a restauração e integração de todos os povoados jesuíticos da região com o propósito de gerar um mercado turístico a partir da História das Missões.

Continuando com a paisagem urbana, numa das esquinas da praça encontra-se o prédio da Sociedade Italiana. Como na maioria das cidades argentinas, os italianos que chegaram a princípios do século passado formaram sociedades de beneficência que chegaram ter grande porte e importância social. O prédio conta hoje com uma quadra esportiva, e no térreo um restaurante, que hoje é atendido por brasileiros, e onde a televisão está sempre ligada em canais brasileiros. Como testemunha do sentido destes hibridismos temos as fotos que o ilustram.

Note-se o nome do restaurante “Integracion” o mesmo que é utilizado na Ponte Internacional, “Puente de la Integración” uma referência ao presente da cidade, às ideias que circulam sobre ela e a seu caráter internacional. Outra amostra desse fluxo são os cartazes onde se anuncia o valor de câmbio entre o real e o peso.

Para continuar o percurso é preciso andar pela Avenida principal da cidade, a Avenida San Martín. Nela estão as principais lojas da cidade, e nessa mesma Avenida, a umas cinco quadras, ergue-se o prédio da Escola Normal “Víctor Mercante”, edificado em 1933. Com ela divide as instalações o Instituto Superior de Formación Docente “Jorge Luis Borges”. A escola foi fundada em 1910, ano do centenário da Revolução de Maio78, no auge do normalismo pedagógico e do estabelecimento do projeto liberal de extensão da Educação pública, laica e gratuita. O prédio, com as caraterísticas de um “templo laico”, é de uma grandiosidade que concorre com a Igreja Matriz, e é um dos poucos na cidade que ocupa um quarterão inteiro.

Para compreender a importância da escola e seu prédio resulta esclarecedor ler a memória que o Ministro de Justicia e Instrucción Pública redigiu para o Congresso Nacional79 onde falava de todas as Escolas Normais e ao chegar a vez de Santo Tomé escrevia:

ESCUELA NORMAL MIXTA DE SANTO TOME, Corrientes. Director Profesor JF VILLALBA

EL MEDIO SOCIAL Y LA ESCUELA

78 A revolução do 25 de Maio de 1810 depôs o Virrei espanhol e estebeleceu o primeiro governo formado por “criollos”. É a principal data comemorada na Argentina.

79 Argentina. Ministerio de Justicia e Instrucción Pública, 1921. Memoria presentada al Honorable Congreso de la Nación por el Ministro Dr. José S. Salinas 1920. Disponível em

En muy pocos puntos del país será más necesario que en Santo Tomé la existencia de una escuela normal, pero de una escuela que cuente con

edificio, material didáctico y personal adecuados para poder desarrollar

dentro y fuera del aula la acción educadora que les está encomendada a estos establecimientos. En efecto:

Santo Tomé una ciudad que está situada a pocas cuadras de Brasil del cual el río Uruguay la separa. Tiene una población de algo más de ocho mil habitantes. La cuarta parte de éstos, y quizá algo más, son extranjeros - brasileños en su inmensa mayoría- y mucha parte del resto de la población tiene ascendientes de la misma nacionalidad.

Extranjeros son la mayoría de los capitalistas, de los propietarios, de las

más importantes casas de comercio, establecimientos ganaderos e industriales. Las más importantes operaciones comerciales se hacen también con el extranjero y por eso la moneda extranjera circula aquí profusamente.

El idioma, las costumbres, algunos convencionalismos sociales y de otro carácter de la nación vecina han ido poco a poco infiltrándose en nuestra sociedad; y así se explica que aquí se hable mal el castellano y se entienda bien el portugués.

No se puede decir que esto constituya una amenaza para el sentimiento patrio de los naturales de esta zona, pero sí que se corre el peligro de que en ella ocurra lo que hace algunos años pasaba en algunas colonias de Entre Ríos, Santa Fe, y Córdoba, en las que a juzgar por la lengua que se

hablaba, las costumbres y la indumentaria de los habitantes, los argentinos parecían ser los extranjeros. (ARGENTINA, 1921: 134)

[…] Se dispone de una manzana de terreno donada al por ley de la legislatura provincial y escriturada a favor gobierno nacional por el escribano público local (ARGENTINA, 1921: 135)

O prédio levantou-se doze anos depois de publicada a memória.

Assim neste rico excerto vemos as ideias do nacional, o estrangeiro, a língua, que circulavam na época de consolidação do sistema educativo argentino. Quando se aponta que “En muy pocos puntos del país será más necesario que en Santo Tomé la existencia de una escuela normal” expõe-se a função atribuída às escolas, e em especial aquelas, como esta, que formavam professores para ensino básico, uma escola que é custódia dos valores “nacionais”, e a língua vem junto com eles. Mas vale a pena lembrar que este enunciado Memoria é um texto do poder central e a ele dirigido. A ideia de “infiltração” da língua e costumes brasileiras, por exemplo, é uma noção própria de quem escreveu a memória, mandado pelo poder central em Buenos Aires, já que a história local-regional dos povos das missões é uma história comum, não existe tal “infiltração” mas sim o que hoje poderíamos chamar de “hibridismo” ou “terceiro espaço” gerado a partir do contato destes com os estados

nacionais e não o inverso.80 O mesmo aparece quando se refere às colônias de imigrantes da “Pampa gringa” fazendo referência a um ideário nacional de um país que não tinha mais de cem anos, mas que era imaginado de acordo com um modelo81 que nas décadas seguintes explodiu, e deu lugar a fusões culturais e linguísticas com a população imigrante. Cinquenta anos depois, quando funda-se o Instituto Superior del Profesorado de Santo Tomé, depois rebatizado como “Jorge Luis Borges”, expressava-se, segundo o site oficial da instituição, o seguinte mandato implícito, negociado entre a gestão e a comunidade

que el nuevo Establecimiento Educacional debía brindar a los jóvenes de las clases menos pudientes la posibilidad de un estudio superior, evitar el éxodo a las grandes ciudades y ofrecer al personal sin título docente, que se desempeñaba en las escuelas de la zona, la alternativa de acceder a una titulación adecuada, y además que la Institución se constituyera en promotora del desarrollo cultural en general, y en órgano de afianzamiento

de la Cultura Nacional en esta zona de frontera.

(http://www.institutoborges.edu.ar)

Devemos compreender então que estas instituições onde se formaram várias gerações de professores receberam diversos mandatos, entre o que se destaca com claridade a “defesa da cultura nacional”. Um dato fundamental é que as professoras que foram entrevistadas neste trabalho foram formadas nelas, e que as escolas de educação primária visitadas foram fundadas poucos anos depois, sendo elas centenárias. Este dado pode ajudar na compreensão da persistência de alguns discursos de “defesa”, já que as instituições educativas, que sempre teveram e têm o mandato de formar o cidadão da nação, cobram maior importância em contexto de contato com outro Estado, como expressaram as palavras de Ministros e diretores, e que veremos que reaparecem em análise de documentos mais atuais.

80 Vale lembrar também que a língua dos povos que ocuparam a região originalmente era a guarani, pelo que poderiam se considerar “estrangeiras” tanto a língua castelhana como a portuguesa. 81 Em ocasião da celebração do Centenário da Revolução de Maio convidou-se à Infanta de Borbón

(a princesa espanhola) aos atos em Buenos Aires. Por esses anos também tiraram as estrofas do Hino Nacional Argentino que resultavam ofensivas para Espanha. A hispanidade e a língua castelhana foram parte da construção de um ideário nacional argentino.