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1 ESCÂNDALOS POLÍTICOS, DO GERAL AO ESPECÍFICO: O PROCESSO DE

3.1 SOBRE O CONTEXTO POLÍTICO DO SEGUNDO GOVERNO VARGAS

3.2.2 A autoridade jornalística e os escândalos políticos

Viemos delimitando que é pertinente pensar que as mudanças ocorridas no centro do processo de “modernização” contribuíram para a percepção do compromisso político que o jornalismo brasileiro passaria a perseguir. O compromisso político jornalístico diz respeito ao papel que o jornalismo deseja desempenhar na sociedade, usando seu

exercício como um serviço prestado em benefício da manutenção da democracia, ou sendo o fiscal dos poderes políticos, desempenhando o papel de cão de guarda (AZEVEDO, 2010), ou ainda, como representante de um poder único, capaz de arbitrar as disputas políticas e, em última instância, instrumentalizar a política, como no caso do jornalismo como poder moderador (ALBUQUERQUE, 2000b).

Ainda dentro dessa discussão, é preciso pensar que esse compromisso que o jornalismo brasileiro busca instituir, atrelando seu exercício a uma pauta específica, como a defesa democrática, não é articulado de maneira simples. É preciso que haja também a preparação de um lugar de fala legítimo, a partir do qual se possa falar e ser ouvido. Em outras palavras, é necessário que seja estabelecida uma autoridade para se dizer que o exercício jornalístico se atrela à defesa democrática, para que ele seja, de fato, considerado fundamental para o funcionamento da democracia.

Essa autoridade, no jornalismo, é autoinstituída e sobre ela recai a legitimidade de narrar a política. Os escândalos políticos, uma de suas principais formas de narrar a experiência política, são reivindicados por essa mesma autoridade. Justamente para fortalecer sua legitimidade – o que, consequentemente, angariaria mais poder para sua autoridade. Mas isso não quer dizer que a legitimidade desse autoritário narrador esteja intacta. Pelo contrário. Dessa forma, aspiramos uma conexão com o que Sodré e Paiva (2011) afirmam, ao pensar em pactos de credibilidade:

Pensar no jornalismo nos termos deste raciocínio leva a se concluir que não está ali em jogo nenhuma demonstração lógico-filosófica da verdade, e sim um pacto de credibilidade que, como toda convenção, institui as suas próprias regras (ficcionalmente sedutoras) de aceitação do pactuado (SODRÉ, PAIVA, 2011, p.23)

Ainda nessa seara de argumentação, de acordo com Zelizer (1993), ao veicular suas narrativas a respeito de determinados eventos, os jornalistas criam repertórios de eventos anteriores que passam a ser usados como parâmetros para os eventos atuais. Zelizer discute a legitimação de jornalistas através de (suas) narrativas, afirmando que “os jornalistas posicionam a si mesmos em suas estórias ao construir, documentar e perpetuar sua autoridade de recontar eventos56”, diz a autora (1990, p.366). Para

consolidar sua discussão, a referida autora parte da análise do caso da morte de Kennedy.

56 Tradução livre do trecho: Journalists position themselves in their stories by constructing, documenting,

É desse evento que ela pontua que, à época, foram poucos os materiais disponíveis para os jornalistas basearem suas estórias. Como tudo aconteceu muito rápido e houve restrições governamentais, houve um trabalho jornalístico para, primeiro, estabelecer as bases do que deveria ser considerado importante de ser veiculado. Esse trabalho foi inteiramente realizado se debruçando sobre as consequências do evento. Sua magnitude, seus desenlaces relevantes, tudo é incorporado à narrativa jornalística aos poucos, sendo compartilhado entre os profissionais no momento em que tentam transcrever suas versões dos acontecimentos.

Em resumo, nas palavras da autora:

Jornalistas se envolvem em um processo contínuo através do qual eles criam um repertório de eventos passados que é usado como um padrão para julgar ações contemporâneas. Ao confiar em interpretações compartilhadas, os jornalistas constroem autoridade para práticas que não são enfatizadas pelas visões tradicionais do jornalismo (ZELIZER, 1993, p.223-4).

Tomando como pertinente essa linha de raciocínio, propomos pensar os escândalos políticos como sendo um desses “momentos chave” e cujos conhecimentos compartilhados servem de base para se construir os principais sentidos atuais em torno da ruptura da ordem política que os escândalos evocam. Isso dado que, sobre essa ideia, recai um princípio semelhante ao da mentalidade escândalo que o jornalismo é capaz de instaurar. A mentalidade escândalo depende muito dessa cultura profissional compartilhada pelos jornalistas, na medida em que é fundada sob uma gama de conhecimentos específicos e sentidos que vão sendo reunidos conforme os jornalistas precisem falar sobre os acontecimentos que reconhecem como escândalos.

A mentalidade escândalo surge da necessidade de se falar sobre o escândalo e de imputar a essa série de eventos uma condição diferenciada; mais dramática, com um peso político maior e, também, com uma narrativa jornalística que empodera o próprio jornalismo. É nesse sentido que a mentalidade escândalo e a legitimidade jornalística se retroalimentam; um se fortalece na presença do outro.

3.2.2.1 Do moderno ao “independente”

Dentro dessa lógica de legitimação e consolidação de uma autoridade do lugar de fala, o peso da autoimagem jornalística é constantemente posto à prova. À época da “modernização” o uso do adjetivo “moderno”, para descrever o exercício jornalístico

ressignificado em especial, passou a ser um dos grandes definidores dessa tentativa de “novo” modelo. No entanto, vale salientar, esse adjetivo já permeava a descrição do imaginário jornalístico desde antes. Como lembra Jácome (2017, p.10), “argumentos similares aos utilizados por ela já podiam ser encontrados em jornais brasileiros do século XIX, o que nos leva a questionar a ideia de um corte temporal abrupto e também a recolocar a questão da modernidade”. O autor se refere aos argumentos de que o jornalismo que estava sendo reestruturado em meados da década de 1950 era moderno, fazendo supor que houve um momento anterior, “não moderno”, ou cujo exercício não estivesse alinhado com a atualidade.

No entanto, à medida que nos aproximamos da metade do século XX em adiante, o adjetivo moderno parece tomar contornos específicos nos discursos autorreferentes das diversas mídias informativas brasileiras. Isso porque adquire também a força de um conceito que passa a valorizar um tipo específico de prática, buscando delimitar o que deveria ser entendido propriamente como jornalismo. (JÁCOME, 2017, p.9)

Como vimos, no entanto, este parece ter sido, também, um recurso narrativo de autopromoção de uma guinada do exercício jornalístico: em resumo, a relação entre atual e moderno, que esteve presente em diferentes momentos da afirmação de identidades do jornalismo brasileiro, entre as décadas de 1940 e 1960, como é pontuado por Tokarski (2003, p.77). Certamente, houve mudanças na maneira como os jornais passaram a estruturar as notícias, no modo como os jornalistas – e os jornais – se profissionalizaram, e, consequentemente, como passaram a ver a si próprios e a profissão que exerciam.

Mas, vimos, houve também a implementação de uma agenda que buscava fortalecer todas essas mudanças como estratégias fundamentais para tornar o jornalismo alinhado com os ideais de um “mundo moderno”. O padrão do ideal objetivo parece ter sido um esforço no sentido de derrubar quaisquer dúvidas de que o jornalismo poderia servir mais para entreter. Ele deveria servir, acima de tudo, a uma causa considerada mais nobre e acompanhá-la de tal modo que, seu pleno exercício estaria conectado ao pleno exercício dessa causa. A causa democrática coroa esta possibilidade.

Algum tempo depois, também como seria de se supor, o “moderno” se torna obsoleto, ultrapassado. Ao menos, o uso do adjetivo não implica mais na força de outrora. Poderíamos pensar, então, que um correspondente – em estratégia de autolegitimar sua autoridade – seria o adjetivo “independente”. Se “se é atual é moderno”, em alusão à discussão de Tokarski (2003), agora, poderíamos pensar em uma analogia que abarque que “ser atual é ser independente”.

Sem qualquer pretensão de comprovar essa afirmação, mas apenas de constituir as bases para um raciocínio, observamos alguns dos principais jornais brasileiros e como apareceria, neles, esse adjetivo independente. A editora do O Globo e o jornal Folha de S. Paulo apresentam em suas descrições a palavra “independente”; já “moderno” não faz parte de nenhuma das duas descrições.

Em uma chamada em uma de suas redes sociais, em dezembro de 2018, o The Intercept Brasil convida seus leitores a colaborarem com a publicação online da seguinte forma: “Financie o jornalismo investigativo e nos ajude a defender a democracia”. Direta, pode-se ver a relação de causalidade entre um jornalismo investigativo fortalecido, com espaço e verba para ser “independente” (palavra frequentemente usada pelos veículos que querem reforçar sua condição de pilar democrático), e a defesa da democracia. Não é preciso que haja mediação entre uma ideia e outra; isso foi extensamente feito na constituição do papel do jornalismo liberal.

Em momentos em que esse papel é questionado ou diminuído, no entanto, é preciso refazer esse “passo-a-passo”. Foi o que aconteceu ao fim das eleições presidenciais de 2018, na primeira entrevista do presidente Jair Bolsonaro (PSL) ao programa Jornal Nacional, da Rede Globo, quando este disse que “por si só esse jornal se acabou”, em relação à Folha de S. Paulo.

A declaração vinha depois de uma série de denúncias publicizadas pela Folha, envolvendo Bolsonaro, e que colocaram em prova sua crescente popularidade no pleito. A crítica do político ao jornal gerou uma onda de defesa ao periódico, enaltecendo sempre esse caráter da liberdade de imprensa ferida e a necessidade de se manter seguro o exercício jornalístico para o pleno funcionamento democrático. Essa defesa também é reforçada pelos próprios veículos, que aproveitam o momento para tentar preencher qualquer vácuo de poder que as críticas ao jornalismo, que se fortalecem de tempos em tempos, possam gerar.

Perpassada pelo compromisso histórico para com a ética do liberalismo, essa narrativa procura assegurar a seus públicos que cabe à imprensa, desde os começos do regime republicano europeu, assegurar ao cidadão a representatividade de sua palavra, de seus pensamentos particulares, garantindo assim a sua liberdade civil de exprimir-se ou manifestar-se publicamente. Esta função, que é a virtude intrínseca do jornalismo, lastreia eticamente o pacto de credibilidade implícito na relação de entre os meios de comunicação e a sua comunidade receptora (SODRÉ, PAIVA, 2011, p.22).

Esse movimento de constante autolegitimação e, consequentemente, reforço de sua própria autoridade, é particularmente importante de ser observado porque desemboca em uma questão imprescindível para a análise de escândalos políticos: o monopólio que o jornalismo parece ter dessas narrativas. Tendo isso em vista, discutiremos na próxima seção o jornalismo como um lugar privilegiado para narrar esses eventos escandalosos e quais são as implicações disso.