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1 ESCÂNDALOS POLÍTICOS, DO GERAL AO ESPECÍFICO: O PROCESSO DE

1.2 APRESENTAÇÃO DAS CATEGORIAS NORTEADORAS DAS DISCUSSÕES:

1.2.3 Mar de lama e suas formas: uma categoria para pensar a “mentalidade

escândalo”

A expressão “mar de lama”21, até hoje, tem sua concepção remetida a Getúlio

Vargas. Essas foram as palavras usadas por Getúlio Vargas, em 1954, para se referir aos inúmeros casos de corrupção que estavam emergindo das investigações do famoso atentado da Rua Tonelero, em que Carlos Lacerda, um de seus principais opositores, tinha sofrido uma tentativa de assassinato. O principal suspeito estava sendo implicado em diversas denúncias de suborno, empréstimos irregulares e contato com criminosos profissionais (CPDOC), e, principalmente, estava sendo conectado ao próprio Vargas22.

Esse período, vale lembrar, foi marcado pela forte oposição entre varguistas e anti- varguistas. Na imprensa, essa disputa foi protagonizada pelas figuras de Samuel Wainer e Carlos Lacerda. Como veremos quando adentrarmos nos pormenores de um dos maiores embates entre os dois, na CPI da Última Hora, cada um deles estava à frente de um periódico. Nesse contexto, Wainer, com o seu Última Hora, e Lacerda, com a Tribuna da Imprensa, mostram-nos algumas situações cujas características nos permitem tecer comentários sobre os escândalos, além de ajudar a repensá-los.

Além disso, essa expressão que tomamos aqui como uma “guia narrativa”, conecta os dois tempos distintos que observamos, a década de 1950 e a primeira dos anos 2000.

Em setembro de 2012, uma carta endereçada “À sociedade brasileira” (ANEXO A), assinada pelos presidentes do PT, PSB, PMDB, PCdoB, PDT e PRB, cinco legendas da base aliada do governo petista, afirmava que havia uma tentativa dos opositores de “comprometer a honra e a dignidade do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva”. A carta

21 Na Tribuna da Imprensa, a expressão “mar de lama”, na concepção que ficou mais conhecida e que nos

serve de guia argumentativo, aparece pela primeira vez, em relação à corrupção e às relações incestuosas do poder do Estado com instâncias fora de sua responsabilidade, em 1951. À época, a discussão que suscitou a expressão aparece relacionada com a permissividade de funcionamento às casas de jogos, proibidas por lei.

22 De acordo com a descrição do verbete, disponível no site do CPDOC, tem-se: “Decepcionado com toda

aquela situação, habilmente explorada pela imprensa da oposição e pelos parlamentares da União Democrática Nacional (UDN), Getúlio teria afirmado ao coronel da Aeronáutica João Adil de Oliveira, responsável pelo inquérito policial-militar que investigava o atentado da Toneleros: ‘Tenho a impressão de me encontrar sob um mar de lama.’”. Disponível em: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete- tematico/mar-de-lama>. Acesso em: 12 mar. 2018.

se referia a uma nota, lançada dias antes, pelos dirigentes do PSDB, DEM e PPS, que pediam explicações ao ex-presidente e seu partido a respeito das denúncias de que ele seria o chefe do esquema do Mensalão23.

Nesse contexto, essa carta de apoio ao ex-presidente Lula rememora a categoria que nos serve de guia, ao afirmar que os opositores de Lula:

Impotentes, tentam fazer política à margem do processo eleitoral, base e fundamento da democracia representativa, que não hesitam em golpear sempre que seus interesses são contrariados. Assim foi em 1954, quando inventaram um "mar de lama" para afastar Getúlio Vargas (FALCÃO et al, CARTA À SOCIEDADE BRASILEIRA, 2012).

Nesse ponto, os problemas enfrentados por Vargas são usados pelos apoiadores de Lula como uma bandeira de luta. Inicialmente, partindo dessa ilustração, pode-se ler essa tentativa de conexão entre dois momentos distintos como o reconhecimento de que o “mar de lama” de Vargas foi, de fato, uma injustiça, perpetrada pelos seus opositores e que, tamanha a potência dessa injustiça, conseguir acioná-la, hoje, pode ser uma oportunidade de alçar o atual injustiçado a uma imagem mítica de mártir. Não é por acaso que, quando usada nesse sentido, a categoria de “mar de lama” precisa ser legitimada.

Logo após a divulgação da carta, por exemplo, o jornal O Globo se apressou em fazer alguns esclarecimentos em torno dessa aproximação. Em uma matéria24 intitulada “Comparações históricas de carta em defesa de Lula são ‘descabidas’”, o historiador Marco Antonio Villa, então professor da Universidade de São Carlos (UFSCAR), foi convidado a comentar as comparações históricas feitas nessa carta de apoio a Lula. Em uma curta entrevista, focada essencialmente nas comparações – e, consequentemente, nos efeitos de se assumir que há alguma ressonância entre o contexto de Vargas e o de Lula –, o professor é categórico ao afirmar que esse paralelo “é absolutamente descabido. E isso mostra também que o ensino está muito ruim” (VILLA, online, 2012).

23 A nota se refere às acusações feitas por Marcos Valério, à época, e veiculadas na revista Veja. Em uma

matéria no site da revista, veiculada no dia 15 de setembro de 2002, e com título “Marcos Valério envolve Lula no mensalão”, faz-se alusão à longa reportagem de cinco capítulos que é o carro-chefe do periódico naquela semana. De acordo com o que é veiculado no site, a reportagem é “reabre de forma incontornável a questão da participação do ex-presidente Lula no mensalão”. O foco, então, nesta reportagem e também na nota dos opositores, é a afirmação de Marcos Valério de que “Lula era o chefe” do esquema, frase que o empresário viria repetindo “com mais frequência e amargura agora que já foi condenado pelo STF”. Disponível em <https://veja.abril.com.br/politica/marcos-valerio-envolve-lula-no-mensalao/>. Acesso em: 7 nov. 2018.

24 Disponível em: <https://oglobo.globo.com/brasil/comparacoes-historicas-de-carta-em-defesa-de-lula-

Sem qualquer pretensão de discutir, nos limites deste trabalho, a opinião do professor Villa, o que se pretende chamar atenção aqui é a rápida ação de tentar desmistificar uma aproximação entre os ataques à honra – para ficar nos termos postos pela carta – de Vargas e à de Lula. Até um dia antes de sua morte, Vargas foi alvo de diversos ataques. Não há como saber o que teria acontecido se não houvesse suicídio, mas, é possível reconhecer que houve uma blindagem em torno de seu legado, que não é facilmente acessado. Pelo menos, não quando se trata de benefícios de imagem.

Isso porque, ao longo dos anos em que os escândalos envolvendo personagens do PT estiveram em foco, não foram poucas as menções ao “mar de lama”. O mesmo que, em teoria, Vargas detectou e lamentou sobre, mas, obviamente, sem a parte benéfica de transformar aquele que se encontra em seu epicentro em um herói.

Um exemplo disso foi trazido em outubro de 2015, quando o jornal Estado de S. Paulo veiculou um editorial25 em que insinua que Lula finge não ter dimensão de sua relação com o “mar de lama que inundou a política e a gestão da coisa pública como nunca antes na história desse país”. Nesse caso, o “mar de lama” como intensa atividade de corrupção, ou infestação do sistema político por atividades ilícitas, se faz presente. Este uso, que não representa qualquer ganho positivo de poder simbólico (BOURDIEU, 1989) para o partido ou para a figura do político que está sendo implicado, não precisa ser contestado. Ele parece poder ser usado livremente, sem que qualquer especialista no assunto precise se manifestar e dizer que a apropriação está equivocada ou não faz sentido algum.

Por ora, o que queremos apontar é que essa expressão é, em teoria, dita por um presidente, e usada para se referir a outro 61 anos depois. Sua forma, antiga e recente, diz respeito a eclosão de contravenções circundando a figura de um presidente; a diferença é que a implicação do presidente nessas contravenções, na primeira, não está posta. Ele é o personagem que está sendo atingido pela lama que insiste em tentar alcançá-lo. Já na segunda, a participação do presidente é um pressuposto.

Mas o que conecta essas duas expressões, temporalmente separadas? Em comum, elas trazem o indicativo de instabilidade política, de descobertas de esquemas de corrupção que, postos à luz da opinião pública, se tornam escândalos. Sua potência narrativa é, então, inegável. Não só por ter perdurado no tempo, mas porque aparenta

25 Editorial intitulado “Lula e o mar de lama”, veiculado em 28 de outubro de 2015. Disponível em:

<https://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,lula-e-o-mar-de-lama,10000000788>. Acesso em: 16 de mar. 2017.

manter ampliado o entendimento de escândalo.

Neste ponto, para pensar na utilidade de se abordar a “mentalidade escândalo” a partir da noção de “mar de lama”, sentimos a necessidade de propor uma analogia. Sabe- se que uma tempestade está se aproximando ou se afastando pelo tempo entre um raio e um trovão. Quanto mais próxima a tempestade, mais curto o tempo entre esses dois fenômenos. Quanto mais distante, então, mais os trovões vão ficando espaçados, em relação aos raios que caem.

Algo semelhante acontece nos escândalos, da maneira como os enxergamos. Quanto mais expandida esta mentalidade está, como uma tempestade que se estabelece, mais raios e trovões permeiam seu cerne – ou seja, mais fatos lidos de acordo com esse julgamento são postos em evidência. Este é um mar de lama: uma situação de envolvimento com escândalos de aparência completamente tomada por uma tempestade. A sua frequência e a continuidade são duas medidas fundamentais para visualizar a expansão da mentalidade. Quanto mais expandida, mais frequente e contínua.

Então, se o escândalo é uma mentalidade, um modo de julgar eventos, isso significa que, sem a mentalidade acionada, esses mesmos eventos não causariam as consequências que só a mentalidade escândalo é capaz de causar. Pode-se intuir, então, que a mentalidade escândalo advém da mentalidade consolidada do jornalismo brasileiro. Nela, na “mentalidade escândalo” do jornalismo brasileiro, estão contidas as suas características empíricas, seu contexto de desenvolvimento, sua cultura profissional, enfim, tudo que faz com que haja certa predisposição a encarar determinados eventos sob uma ótica específica, com contornos escandalosos.

Perante essa intuição, chegamos ao último elemento que compõe o nosso percurso de aproximação com o objeto de pesquisa: a relação entre o jornalismo e a democracia. Isso dado que as bases dessa relação se encontram na cultura profissional jornalística que se desenvolveu no país; a mesma cultura profissional que parece sustentar essa mentalidade escândalo que o “mar de lama” nos ajuda a desvelar.

Igualmente, é essa cultura também que garante a legitimidade de fala do jornalismo, especialmente a respeito de certas questões que, normalmente, são dadas como garantidas, mas que precisam ser tensionadas. Neste caso que nos cabe, a predisposição em aceitar que escândalos políticos existem como narrativas com um sentido próprio. E, para tal, a relação estabelecida entre a cobertura de escândalos e a defesa democrática desempenha um papel fundamental.