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1 ESCÂNDALOS POLÍTICOS, DO GERAL AO ESPECÍFICO: O PROCESSO DE

1.2 APRESENTAÇÃO DAS CATEGORIAS NORTEADORAS DAS DISCUSSÕES:

1.2.4 Os escândalos políticos e a defesa democrática

Parte considerável das análises feitas de escândalos, narrados pelo jornalismo de viés “moderno”, estabelece como parâmetro um jornalismo que está voltado para a informação (CHAIA, TEIXEIRA, 2001; ALDÉ, VASCONCELLOS, 2008; SENNE, 2009; AZEVEDO, 2010; GUAZINA, 2011; LATTMAN-WELTMAN, 2016)26. Isso pressupõe o entendimento de que a cobertura de escândalos serve para fins de informação e consulta. Além disso, estabelece que o escândalo é primordial para que os cidadãos estejam cientes das lutas políticas e que, a partir dessa ciência, possam tomar decisões mais qualificadas sobre a política27 (CHAIA, TEIXEIRA, 2001; AZEVEDO, 2010; PRIOR, 2016). Essa compreensão, poderíamos pensar, perdura em parte devido à legitimidade que o jornalismo puxou para si ao longo dos anos.

Afinal, como podem essas narrativas ter algo a ver com a manutenção da democracia? Nesse contexto de entrelaçamento do público com o privado, a identidade da narrativa escandalosa calcada no compromisso democrático, é preciso reconhecer, apresenta uma série de contradições que precisam ser discutidas. A primeira delas, e que ganhou evidência no episódio recente do impeachment, adiantamos, é que a publicização dos escândalos políticos pode levar a problemas na própria democracia – e interromper o seu fluxo normal.

Diante desse cenário de contrariedade, Albuquerque (2017) argumenta que as elites latinoamericanas e as mídias que lhe servem se veem como uma minoria que tem uma “missão civilizatória” em relação ao resto da sociedade. Os discursos midiáticos em torno de um quarto poder, nesse ensejo, seriam manipulados em benefício dessas elites, como uma maneira de assegurar e legitimar seus benefícios. O autor não trata

26 Privilegiamos, nesse ponto, a referência a trabalhos nacionais. Porém, é importante ressaltar algumas

discussões feitas para além do contexto brasileiro. Cf. SCHUDSON, Michael. Notes on scandal and the Watergate legacy. American Behavioral Scientist, v. 47, n. 9, p. 1231-1238, 2004; TUMBER, Howard; WAISBORD, Silvio R. Introduction: Political scandals and media across democracies, volume II. American Behavioral Scientist, v. 47, n. 9, p. 1143-1152, 2004.

27 Reconhecemos que essa é uma questão sensível. Há um debate sobre a construção de uma narrativa

jornalística que se coloca como provedora de informações que seriam fundamentais para o funcionamento democrático, falando especificamente de democracias liberais. O trabalho de Hallin e Mancini (2004) é uma referência base nesse contexto, ao apresentar os diferentes sistemas de mídia e articular a realidade estadunidense com um modelo de mídia que privilegia a narrativa do entrelaçamento das democracias liberais e a liberdade de imprensa. Como discutiremos nos próximos capítulos, o modelo brasileiro busca um alinhamento – proposital ou não – com essa narrativa. Note-se que falamos com mais ênfase nas narrativas que a imprensa constrói em torno de si, e não tanto nos respaldos que essas pretensões encontram na realidade.

especificamente de escândalos políticos, mas seu ponto de discussão provê um diálogo proveitoso com o que é desenvolvido aqui.

Afinal, o ideal jornalístico “moderno”, veremos, se associa com o desenvolvimento e consolidação das democracias liberais (MCNAIR, 2009). Nessa perspectiva de entendimento, o jornalismo se coloca como uma peça fundamental para a manutenção democrática, principalmente quando evoca e vê ser evocado o discurso da liberdade de imprensa para o pleno funcionamento da democracia. Essa posição, acreditamos, não tem sido tensionada com frequência28. O que se discute, em linhas gerais, tem mais a ver com os usos que o jornalismo – como ator político (DE LIMA, 2006; AZEVEDO, 2017) e também empresa (MARQUES, MONT’ALVERNE, 2015) – tem feito desse poder. Em especial, em relação à cobertura política.

Agora, é importante que se lembre que o processo de estabelecimento dessa democracia liberal, no Brasil, e, consequentemente, do jornalismo permeado por esses seus ideais, ocorre de uma maneira curiosa. Para dizer o mínimo. Como pontua Pinto (2011), os grandes conglomerados de mídia foram formados a partir concessões públicas. Lideranças, a elite política e econômica do país, já dentro de sua influência, foram os agraciados com a possibilidade de desenvolver os diálogos entre a mídia e a política.

Em outras palavras, chama-se a atenção para o fato de, dentro dessa perspectiva, o jornalismo brasileiro ter se desenvolvido com base na conveniência da manutenção das elites – mais do que democrática. Diante disso, poderia-se trilhar um raciocínio em que a exploração de escândalos políticos, no jornalismo, tem tanto a ver com a legitimidade de um ethos profissional (GUAZINA, 2011) quanto com rupturas e continuidades das elites no poder (GRÜN, 2011).

Em um primeiro momento, essas ideias não parecem excludentes. Mas, não seria impróprio pensar, há uma incongruência em admitir a cobertura de escândalos como um legitimador do papel do jornalismo, ou como um fator crucial para a manutenção democrática, quando se rememora que o projeto de jornalismo que predomina no Brasil

28 Pontue-se as considerações de Albuquerque (2017), como referenciamos anteriormente. Além disso, cabe

lembrar de Josephi (2012), quando este questiona “quanto de democracia o jornalismo precisa?”. Para o autor, em ambientes tidos como não-democráticos, esse valor do jornalismo como projeto informativo ainda é perseguido. E afirma: “No entanto, como o exemplo da Al-Jazeera demonstra, o jornalismo, que contribui de forma vital para o debate político e para o desenvolvimento, pode vir de países não-democráticos” (JOSEPHI, 2012, p.486). Percebe-se, então, que, apesar da provocação contida no título de seu artigo, e de questionar esse lugar do jornalismo como fundamental para a manutenção democrática, já que ele persiste em países não-democráticos também, o autor tensiona pouco o próprio jornalismo como projeto informativo essencial para o debate político.

foi implementado pelas elites que são colocadas no centro das disputas de poder apresentadas nos escândalos.

Tomando essa provocação como pertinente, primeiramente, é preciso pontuar que a autoridade contida na explicitação de escândalos parece se estabelecer, em grande parte, na possibilidade de se enquadrar a “intocável” elite. Por outro lado, o jornalismo, nas bases que o conhecemos hoje, no Brasil, também seria posto em prática por uma elite. Seria exatamente por necessidade de se distanciar dos rótulos de servente/pertencimento às elites, que a exposição de escândalos se torna uma grande chance para o jornalismo?

Considera-se, então, que o jornalismo assim o faz em prol da consolidação de sua legitimidade, seu ethos profissional. Aí, está abarcada a compreensão de que a cobertura de escândalos reforça os compromissos dos ideais jornalísticos frente à composição democrática. Guazina (2011) alude a esse ponto, pensando no contexto brasileiro. Mas, apesar da aparente calmaria que essa explicação transmite, há algumas questões que ainda permanecem. Afinal, que autoridade/legitimidade é essa que se funda na contradição?

Se pensarmos que as análises acompanham essa autoimagem constituída do jornalismo, poderíamos pensar também que as suposições detidas nessas análises partem de uma ilusão. Assim como se tenta medir a objetividade jornalística – ideal sempre problematizado e nunca atingido –, algumas análises de escândalo ainda tentam estabelecer uma moral jornalística (SENNE, 2009; NUNOMURA, 2012).

Nesse contexto, todo desvio é tratado como falha, mas não necessariamente aponta para um caminho de compreensão do fazer jornalístico. Uma cobertura de escândalos que compromete um político específico ou um partido, em determinado contexto, é uma cobertura tendenciosa. Análises de enquadramentos podem aferir isso sem grandes problemas. Mas pouco se volta para o jornalismo que produz esse viés – para além de intencionalidades. Ou seja, aqui se propõe olhar o que essas narrativas escandalosas dizem sobre o jornalismo brasileiro, mais do que apontar para as falhas de cobertura – que, mais uma vez, estariam sendo apontadas com base em uma cartilha do que deveria ser o jornalismo que nunca correspondeu ao que, de fato, o jornalismo apresenta.

Vê-se, então, os escândalos como uma grande narrativa sobre o jornalismo, mais do que sobre malfeitos ou esclarecimentos do emaranhado da teia política. E a grande odisseia do escândalo aponta para um jornalismo que precisa, na repetição, indicar seu lugar no mundo. Para um jornalismo que escancara suas contradições e usa dessas mesmas contradições para consolidar sua autoridade. Mas, claro, o escândalo não é só

autopromoção jornalística. Ele também pode indicar algumas mudanças na maneira de vivenciar o jogo político.

Nesse sentido, cabem também algumas considerações sobre a experiência política que é reforçada nesses escândalos. A passagem de uma experiência personalista para uma focada em um partido – e aqui não se quer denotar evolução – é digna de nota. E a ela voltaremos quando tratarmos dos indícios de polarizações.

Mas a manutenção da democracia nem sempre vai aparecer livre de embates. Pelo contrário. A primeira coisa que precisa ser estabelecida, então, é que a manutenção democrática não é a consequência natural de um jornalismo que se fortalece no escândalo. Em discurso, autoproclamado, ela seria uma bandeira promissora de luta. Na prática, no entanto, ela aparece em um emaranhado de pretensões.

Colocar-se em evidência em momentos tidos como cruciais para o funcionamento democrático, como o processo eleitoral, também faz dos escândalos um mecanismo de intervenção desse jornalismo. Se o jornalismo é tão em prol da democracia, por que parece também jogar contra ela (ALBUQUERQUE, 2017), em favor de interesses seletivos? Se o jornalismo se comporta de maneira tão contraditória, por que é colocado como fundamental para essas democracias? É a contradição mais evidente dessa relação e que, aqui, não esperamos tanto oferecer respostas, mas apontar caminhos de observação que levem em consideração esses desencontros.

Como esse descompasso se conecta com a ideia de mentalidade?, pode-se questionar. A mentalidade é uma maneira de perceber os escândalos que leva em consideração suas contradições no jornalismo. A mentalidade tenta organizar essas contradições, em meio ao caos narrativo das narrativas que aponta como escândalos. É nesse ensejo que a mentalidade escândalo propõe pensar o escândalo como um caminho necessário para se garantir a democracia. Nele, o jornalismo reivindica seu uso com esse propósito e julga os eventos de acordo com essa lógica. Reforça, assim, o papel que constituiu para si ao longo dos anos, alinhado com o ideal liberal.

Tendo esse entendimento como ponto de partida, então, seguimos em busca de propor uma compreensão mais ampla dessa mentalidade. Mesmo que o compromisso democrático permaneça como uma de suas principais características, quais outros elementos estão por trás da sistematização de uma narrativa tida como escandalosa e como eles operam esse julgamento? Ao tentar articular esse movimento, esperamos confirmar a validade de se perceber a ideia de escândalos políticos, a partir de como essas

narrativas são apresentadas nos jornais, como uma mentalidade instaurada no jornalismo, e cujas formas precisam ser exploradas.