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1 ESCÂNDALOS POLÍTICOS, DO GERAL AO ESPECÍFICO: O PROCESSO DE

1.3 SOBRE COMO ABORDAR AS NARRATIVAS DITAS ESCANDALOSAS

1.3.1 Em busca das formas narrativas

Explicitados os caminhos indagativos que nos serviram de propulsão para o desenvolvimento deste trabalho, passamos agora a explorar as abordagens que imaginamos mais apropriadas para acompanhar nossas pretensões. A primeira delas surge da necessidade de apreender a mentalidade escândalo em meio a essas narrativas patrimonialistas, extremamente ancoradas no entendimento de que servem à defesa democrática. O entendimento de escândalo que surge daí não é tão simples de ser desvelado.

Buscamos, então, por uma análise que contemplasse a identificação de conjuntos de ideias, que indicassem a construção de percepções em torno de determinados temas. E, nessa busca, chegamos à proposta de “formas narrativas”, mantendo uma preocupação com a maneira como nos apropriaríamos dela. Nesse sentido, encontramos em “A revolução dos bichos”, icônico livro de George Orwell, um interessante estímulo para se pensar essa categoria.

Ao longo de toda a obra, os porcos, que são os animais que levantam a revolução contra os humanos, repetem aos seus companheiros: “quatro pernas bom, duas pernas ruim”. Este é o lema do movimento, um dos mandamentos que os outros animais internalizam e repassam, mantendo viva a ideia de igualdade entre os não-humanos e de que os homens não devem comandar, e, sim, os animais que andam em quatro patas. No entanto, depois de tomarem o poder e deturpar todas as pretensões coletivas, os porcos começam a se parecer cada vez mais com os homens que os dominavam. A sinalização disso, que vai aparecendo aos poucos na narrativa, é resumida por Orwell, ao descrever o momento em que “um porco caminhava sobre as duas patas traseiras”.

Quatro pernas bom, duas pernas ruim. Os homens andam em duas pernas. Os homens não respeitam os outros animais. Os porcos lideram os animais para destituir o poder dos homens. E os porcos andam em duas patas. “Quatro pernas bom, duas pernas melhor”, concluem os novos dominadores. O final, como se poderia supor, narra a dificuldade em se distinguir entre porcos e homens. Tornaram-se iguais.

Algumas páginas separam o momento em que os porcos são descritos andando em duas pernas daquele em que homens e porcos não são diferenciados. Mas, se o livro acabasse nessa primeira cena ao invés desta última, entenderíamos o ponto do autor. As interpretações acerca de sua obra são diversas. Alguns dizem que se trata de uma crítica ao regime soviético, outros são mais genéricos e apontam para a questão do autoritarismo posto em evidência. Independente das reais alusões, é interessante observar que, em uma única frase, nos é indicado que a revolução tomou outros caminhos e que os porcos se voltaram contra os preceitos que pregavam.

Uma formação capaz de condensar ideias. Mas, para que essa frase fosse capaz de comunicar tanto, foi preciso, antes, ao longo da narrativa, que elementos fossem estrategicamente anunciados; a luta dos animais contra o domínio dos homens, as estratégias de submeter as ovelhas e os cachorros a um novo regime, a sede de poder que gradativamente toma conta dos porcos. Junto com esses elementos, a repetição da máxima “quatro pernas bom, duas pernas ruim” também foi fundamental. Ela, a máxima, que pode ser vista como um resumo de toda a discussão do livro, é uma forma, uma moldura que abarca enunciados, ideias e debates. Uma estrutura que se conecta com as regras previamente estabelecidas, crenças e valores difundidos, ritos morais que se perpetuaram ao longo dos tempos.

Como tal, essa estrutura também resume bem o que este trabalho busca demonstrar: há formas no jornalismo político que, assim como as apresentadas por Orwell, condensam entendimentos sobre o mundo da política, seus participantes e, ainda, como se relacionar com eles. Essas formas, seus elementos e possíveis desdobramentos são entendidos aqui como organizados pela mentalidade que advogamos existir e, por isso, constituem nosso ponto de partida primordial.

É diante desse entendimento que explicitar essas formas narrativas parece ser o caminho mais apropriado de explicitar a própria existência da mentalidade escândalo. Embora apresentar a existência dessa mentalidade a partir das formas narrativas – e, consequentemente, a inexistência de escândalos políticos – seja um desafio, se feito corretamente e de maneira consistente, essa reestruturação perceptiva pode contribuir para compreender a cultura profissional jornalística que se instalou no Brasil e as bases do compromisso que o jornalismo autoestimula com a democracia.

Aqui, antes de tudo, reconhece-se o seguinte: há formas que precedem o conhecimento provido pelas notícias. Estas formas que aludimos podem não estar claras à primeira vista, o que faz com que, frequentemente, nos estudos de jornalismo, sejam

deixadas de lado. No entanto, negligenciá-las é uma atitude particularmente improdutiva, já que faz com que diversos elementos sejam dados como pontos pacíficos, intrínsecos à produção noticiosa e às representações – de instituições, movimentos e campos do mundo da vida (LUCKMANN; SCHUTZ, 2003) – veiculadas pelas páginas dos jornais. O escândalo político como narrativa com sentido próprio é apenas um desses pontos pacíficos, nesse contexto.

Focando na apreensão das formas, Schudson (1982) segue o caminho de identificar o surgimento de algumas dessas convenções do jornalismo político, para compreender como o jornalismo interpreta seu papel político. Tratando essas convenções exatamente por “formas narrativas”, o autor investiga, por exemplo, o surgimento e consolidação de se convencionar narrar acontecimentos políticos tendo como personagem principal o presidente, ou a convenção hoje inquestionável de que as notícias que tratam de um assunto complexo, sobre um ato político, devem ser acompanhadas de uma explicação do que esse ato político significa. Ou seja, uma explicação que se tornou uma convenção, mesmo indo de encontro à objetividade que o jornalismo “moderno” preconiza.

Depois de um tempo, assim como na ilustração baseada na obra de Orwell, o fato de se ter uma infinidade de notícias com o presidente como figura principal não é uma questão. Essa forma, agora, nos comunica a quem devemos prestar atenção na vida política, só para indicar um caminho relacional entre a forma e os códigos de experiência cultural (WHITE, 1992) que ela suscita. De caráter sociológico, o estudo feito por Schudson parte da observação de notícias em jornais estadunidenses por mais de um século. O levantamento feito por ele, de reconhecido valor, destaca as disputas simbólicas do exercício político nos Estados Unidos. Ademais, salienta os valores e mitos que vão circundando o poder e vão se alterando, paulatinamente, em direção a novos modos de enxergar e se relacionar com a política.

Retomando a ilustração trazida no início desta seção, com os momentos finais de “A revolução dos bichos”, pode-se pensar que a forma só tem seu sentido potencial explicitado quando em relação com o contexto. A fazenda, seu dono, a opressão dos seres humanos sobre os animais, a tomada de poder, a revolução dos oprimidos e o autoritarismo dos porcos. Tudo se relaciona com a forma. Sozinha, “quatro patas bom, duas pernas melhor” não comunica além do óbvio.

Mas como identificar, categorizar e compreender essas formas, em suas relações com contexto do jornalismo brasileiro? Sendo ponto de partida, a organização proposta

por Schudson é uma via possível, útil e suficiente. Mas, como articuladora de processos que, embora desenvolvidos à luz de um modelo estadunidense, como foi a “modernização” do jornalismo brasileiro, é preciso que se veja para além dessa influência. Sobressai-se, então, a necessidade de se observar o caso brasileiro por uma via própria, sem que seja a mera tentativa de incorporar uma abordagem, que deu certo em outros contextos, a este específico.

Na nossa argumentação, essa tentativa se dá a partir da incorporação da noção de narrativa sob uma perspectiva ricoeuriana29, em que a tríplice mimese é central e cuja compreensão de mimese I se torna o próprio entendimento de forma narrativa. Adiciona- se, assim, a temporalidade à equação. Põe-se em evidência a necessidade de se reconhecer que as ações que compõem a intriga só fazem sentido e são percebidas como tal na medida em que são articuladas no tempo.

No caso do jornalismo, o tempo cronológico, a organização elementar que encadeia fatos, que hierarquiza acontecimentos. Schudson, de fato, também enxergava as notícias como narrativas, mas toma a cronologia como dada, ao subjugar a temporalidade ao papel de coadjuvante. O tempo cronológico não deve ser admitido como pressuposto, visto que ele, também, é constituído por processos. Ou seja, o tempo cronológico não é a única maneira de o tempo ser e representar a ação humana, mas ele é o escolhido privilegiado no jornalismo – e, como toda escolha, ela se dá por algum motivo. E isso importa tanto quanto a constatação de sua presença.

A obsessão cronológica pode ser relativizada, por exemplo, no caso dos escândalos da CPI da Última Hora, que mais uma vez suscitamos preliminarmente. Pré- Watergate, a configuração da intriga nesse episódio é completamente difusa, em comparação ao que hoje se habituou a ver nas narrativas de escândalo político. Carlos Lacerda, o personagem que ativa e cultiva as denúncias nesse caso, discute os seus desdobramentos em múltiplas plataformas; faz denúncias no rádio, questionamentos na televisão e relatos no seu jornal impresso Tribuna da Imprensa. Ele dissolve o que hoje se costuma ver compilado. Ele informa através da dissonância.

Isso não significa dizer que a cronologia é de todo dispensada, mas que suas bases eram outras. A dinâmica temporal a que se submetiam os escândalos à época pode ser

29 A adaptação de Paul Ricoeur da tríplice mimese aristotélica será vista em detalhes no próximo capítulo,

ao tratar das especificidades da narrativa jornalística. Optamos por não aprofundar essa questão nesse ponto, por conceber este primeiro capítulo como uma espécie de “glossário”, em que os principais conceitos que serão trabalhados ao longo da tese precisavam ser apresentados, refazendo os passos que demos para delinear nosso problema de pesquisa e a forma como iríamos abordá-lo.

apenas indicativos da ausência de um padrão. Esse padrão de narrativas escandalosas vai ser iniciado justamente com o Watergate, nos Estados Unidos, entre 1972 e 1974 (SCHUDSON, 2004). Pode também indicar a constituição de um escândalo em épocas em que o jornalismo era feito em outro ritmo. Ou ambos. Mas há também a possibilidade de ser visto como a constituição de um escândalo que leva em consideração as particularidades brasileiras – seus contextos tecnológico/estrutural e cultural fazem parte disso. Esse é um dos pontos que se precisa – e pretende-se – que sejam repensados e para o qual se reforça a necessidade de inserção da temporalidade como elemento narrativo.

Na esteira desse raciocínio, incluímos à preocupação de identificar as formas narrativas uma articulação com o sensível. É diante dela que, alinhado com a importância do tempo, chegamos à interpretação de que as formas narrativas mais preponderantes, nas exposições do que é concebido como escândalo, aparecem sob a moldura do que chamaremos de polarizações. E nelas, nas polarizações, também há uma estruturação própria, com articulações específicas de ideias. E não poderia ser diferente; já que a mentalidade escândalo pressupõe um indicativo de como julgar determinados eventos, ela precisa angariar elementos diversos para contemplar o maior número possível de possibilidades de narrativas.