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CAPÍTULO 2: FENOMENOLOGIA DA VIDA E CRISTIANISMO: A

2.1 A autorrevelação da Vida Absoluta no Logos Primordial

A Fenomenologia de Cristo não pode ser pensada fora da dinâmica da autorrevelação de Deus no Logos Primordial. Por outro lado, a questão da Autorrevelação da Vida absoluta apenas permite ser ideada a partir do evento Cristo. Por isso mesmo, situamos esta temática dentro da seção da Fenomenologia de Cristo. A partir da cristologia percebemos a graça de Deus que se autorrevela no Filho, e que, ao fazê-lo, abre também caminho para a compreensão da nossa humanidade. Segundo Rahner, o homem é percebido neste processo como "evento da livre e indulgente

autocomunicação de Deus". Chamamos a atenção para o ponto de conexão entre

Rahner e Michel Henry ao abordar um tema que somente pode ser tocado no despojo de todo orgulho intelectual e da pretensão de compreensão daquilo que, por nós mesmos, não poderíamos compreender. Rahner dirá que o homem, como evento da livre e indulgente autocomunicação de Deus, pode ser pensado a partir de três perspectivas: como ouvinte da palavra, como ser diante do mistério absoluto e como ser radicalmente

113

Cf. Ibid, p.119.

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ameaçado pela culpa115. Em seu Curso Fundamental da Fé, o teólogo situa didaticamente esses três temas como passos prévios para a abordagem daquilo que constitui a mensagem cristã por excelência. Embora não utilize as mesmas palavras e metodologia, Henry oferece, em seu pensamento, destaque especial a estes três temas: o homem situado frente ao mistério do absoluto, constitui, no fundo, o tema de toda a produção de uma Fenomenologia da Vida; o homem como ouvinte da Palavra, tratado especificamente em seu livro Palavras de Cristo 116; por fim, a ilusão transcendental do

ego, pode ser pensada como o homem frente ao mistério do esquecimento da sua

condição de filho, fonte também de culpabilidade.

A impossibilidade de se aceder à Vida (Deus) pelo pensamento ou pelo horizonte de visibilidade do mundo constitui o cerne da reflexão fenomenológica henryriana. Porque o cristianismo possui seu centro de gravidade na relação da Vida com o vivente, Henry propõe uma Fenomenologia da Vida como condição de possibilidade para a compreensão da mensagem cristã117. A Vida será pensada sempre como Verdade a partir da autorrevelação.

Segundo o cristianismo, não existe mais que uma só Vida, a única essência de tudo o que vive. Não se trata de uma essência imóvel ao modo de um arquétipo ideal como o de um círculo presente em todos os círculos, mas de uma essência atuante que se atualiza com uma força invencível, fonte de potência, potência de geração imanente a tudo o que vive e que não cessa de lhe dar a vida.118

Sobre a impossibilidade de acesso à Vida pelo pensamento, já tratamos em nosso primeiro capítulo. Sabemos que tal situação ocorre porque existe uma distinção fundamental entre a Fenomenologia do Mundo e a Fenomenologia da Vida. Trata-se de dois modos de 'visibilidade' radicalmente distintos. De tudo isto surge, segundo Henry, a primeira aproximação fenomenológica da Vida, que deve ser pensada então como autorrevelação. Afirma-se, desta forma, categoricamente que, se temos acesso à Vida, isto não ocorre pelo esforço do pensamento que se encontra compreendido a partir da estrutura ek-stática do mundo. A respeito disto, propõe-se uma espécie de 'purificação'

115

Cf. RAHNER, Curso fundamental da fé, p. 145. Dedica três seções, por separado, para cada um dos temas em questão.

116

CF. HENRY, Michel. Paroles du Christ. Paris: Seuil ,2002, 155p.

117

Cf. HENRY, C'est moi la vérité, p.71.

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da linguagem sobre a Vida. Realiza-se tal empreitada minimizando os efeitos da categoria 'ser', tão cara à filosofia tradicional, pois ela sempre nos remete, segundo o autor, à ontologia ou ao ver ek-stático do mundo119. Como ocorre, então, o acesso à Vida? Se temos acesso à Vida é porque ela se nos dá a si mesma em si mesma, isto é: o acesso à vida está em sua autorrevelação. Para o cristianismo e a fenomenologia henryriana, não existe afirmação mais plausível. Respondendo à questão sobre a independência da Fenomenologia da Vida ou da revelação de Deus com relação à estrutura de visibilidade do mundo, Henry afirma:

Onde acontece uma autorrevelação deste tipo? Na Vida, como sua essência. A Vida não é nada mais que o que se autorrevela, não algo que teria a propriedade de se autorrevelar, mas o fato mesmo de se autorrevelar, a autorrevelação enquanto tal. Sempre que se produz algo como uma autorrevelação, existe vida. Sempre que existe vida se produz esta autorrevelação. Então, se a revelação de Deus é uma autorrevelação que não depende da verdade do mundo, e se perguntamos onde acontece tal revelação, a resposta só pode ser: na Vida e só nela. Aqui se dá a primeira equação fundamental do cristianismo: Deus é

Vida, a essência da Vida é Deus.120

A equação fundamental do cristianismo, segundo Henry, pode ser vislumbrada na autorrevelação como atualização necessária da Vida, como sendo ela mesma Vida. Não se trata de uma possibilidade interna como qualquer outra, mas da identidade consigo mesma. A Vida se compreende como autorrevelação e a vida de cada vivente está ligada visceralmente à Vida fenomenológica absoluta. Se pensamos a Vida a partir desta fenomenologia radical, e se afirmamos, com o autor, que a essência da Vida é Deus, então temos que, se a Vida é autorrevelação enquanto tal, o mesmo pode se dizer de Deus. A criação, nestes termos, pode ser pensada licitamente como autorrevelação de Deus. Isto traz consequências teológicas complexas. A 'criação-salvação' não pode jamais ser entendida como acaso, plano divino casual, mas uma espécie de 'cumprimento essencial' daquilo mesmo que Deus 'é'. E ele 'é' visceralmente Vida que

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Cf. Ibid, p.72-73.

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se autorrevela, uma fenomenologia radical. Mundo e salvação nada mais são que a expressão da graça intrínseca da Vida que por ser Vida se autorrevela, gerando viventes. O Deus amigo que se revela aos homens e com eles se entretém121, não é um horizonte de luz que lança claridade sobre uma realidade totalmente separada, como acontece na estrutura ek-stática do mundo. Este Deus, ao se revelar, autorrevela-se como aquilo que ele é, a saber: Vida, vida corrente e presente nos viventes. Isto quer dizer que não há oposição entre o conteúdo da revelação e aquele que revela, por isso mesmo, por tal coincidência dos termos, chamamos a revelação de Deus de uma autorrevelação. Sobre a autorrevelação da Vida, Henry afirma que nela não há nenhuma estrutura opositiva. Isto quer dizer que não existe uma realidade que revela outra realidade. Então: o que revela é também o revelado122. De fato, diz Jesus: "Eu e o Pai

somos um" (Jo 10,30). Esta asserção espantosa se torna compreensível diante da

afirmação precedente. A Fenomenologia da Vida, a partir do texto evangélico (Jo 14,6-10), afirmará decisivamente a interioridade fenomenológica recíproca do Pai com o Filho.

Cabe-nos aqui destacar a possível conexão entre a glória e a fenomenalização original da Vida. A glória do Pai é a glória do Filho, isso é o que Henry chama de interioridade recíproca do Pai e do Filho. Esta categoria henryriana, remete-nos a um tema teologicamente relevante do evangelho de João. Trata-se do tema da manifestação da glória de Deus em seu Cristo. Em João, esta glória de Deus, shekiná, manifesta-se não somente no Filho, mas como sendo o próprio Filho. Cristo manifesta a glória do Pai porque ele mesmo é a glória de Deus, sendo ele mesmo um com Ele (Jo 10,30). A partir da unção em Betânia (Cap 12) Jesus anuncia sua glorificação. Os capítulos 13-20 formam a segunda parte do evangelho, sendo considerados como livro da glória, pois tratam da manifestação da glória do Pai em Jesus. O cap. 17 é o ponto cume desta manifestação da glória de Deus no seu ungido (Cristo). Sobre a reciprocidade do Pai e do Filho, pode-se dizer, com Konings, que "Jesus é a Shekiná de Deus, a inabitação

salvadora junto ao povo"123. A partir desta mesma perspectiva, o discurso henryriano descortina outras duas categorias teológicas caras à sua Fenomenologia da Vida. A primeira delas diz respeito à humildade ontológica. Esta, outra coisa não é que o reconhecimento, por parte de Cristo, de que o Filho não poder ser compreendido sem o

121

Cf. DEI VERBUM sobre a revelação divina ( n.2). In Compêndio do vaticano II constituições, decretos e declarações, Petrópolis: Vozes, 1969, p.122.

122

Cf. HENRY, Incarnation, p. 172.

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Pai. A humildade ontológica é a porta de entrada para pensar, em termos clássicos, a doutrina trinitária. Conectada ainda à questão da interioridade fenomenológica recíproca do Pai com o Filho, desponta-se uma segunda categoria teológica. Esta diz respeito à questão da autogeração da Vida e da geração do Arqui-Filho, ou Filho Primordial124. Discursando sobre a autogeração da Vida como geração do Primeiro Vivente, diz o autor:

A vida não é, ela advém e não pára de advir. Este advento incessante da vida é seu eterno chegar a si, um processo sem fim, um movimento. No cumprimento eterno deste processo, a vida se joga em si, se esmaga contra si, se experimenta a si mesma, goza de si, produzindo sua própria essência, posto que consiste neste gozo de si e se esgota nele. Assim, a vida se engendra continuamente a si mesma. [...] A essência da vida é o movimento pelo qual a vida não deixa de vir a si, chamamos de

auto-geração.125

A afirmação segundo a qual a vida se identifica consigo mesma, enquanto advento incessante que se experimenta continuamente a si mesma e, em experimentando-se, produz sua própria essência, que é o eterno gozo de si, coloca-nos em contato com duas ideias preciosas para a reflexão fenomenológica henryriana. A primeira delas é a noção de auto-afecção ou de uma arqui-passibilidade essencial da Vida126. Esta ideia de que a Vida se experimenta a si mesma constantemente, que goza de si incessantemente e, neste gozo, se auto-engendra, lançar-nos-á, por sua vez, em direção à segunda ideia, a saber: a questão das tautologia essenciais da vida. Este pensamento se conecta com as outras duas categorias acima citadas: a que se refere à interioridade fenomenológica recíproca do Pai e do Filho que, por sua vez, lança-nos frente à ideia de humildade ontológica127. Nenhuma dessas categorias são abordadas por acaso na teoria henryriana. Elas são as membranas de um núcleo duro da sua fenomenologia. No centro se encontra uma rede de relações classificadas a partir daquilo que é o mais originário. A relação mais primordial na Fenomenologia da Vida diz respeito justamente à auto-geração da Vida que engendra, ao engendrar-se a si

124

Cf. HENRY, C'est moi la vérité, pp.102-114.

125

Ibid, pp.74-75.

126

Cf. HENRY, Incarnation, p. 176.

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mesma, o Primeiro vivente, chamado também de Arqui-Filho. Desta relação primordial do Pai com o Filho, da Vida com o Primeiro vivente, depreende-se uma rede de relações: a relação da Vida com todos os viventes, a relação do Arqui-Filho com os outros filhos, e, por último, a relação dos filhos entre si, o que se denomina, no campo filosófico, da relação intersubjetiva128. Observemos o seguinte texto:

A Vida absoluta se experimenta a si mesma em uma ipseidade efetiva que é, como tal, um Si ele mesmo efetivo e, como tal, Si singular. Deste modo, a auto-geração do Pai implica nela a geração do Filho e constitui um com ele. A geração do Filho, inclusive, consiste na auto-geração do Pai e se faz um com ele. Não há vida sem um vivente. Não há vivente sem vida. Não se pode dizer: gerando-se a si mesma a Vida gera o Vivente [...] mas que a Vida se engendra a si mesma como esse Vivente, que é ela mesma em seu auto-engendramento. E é por isso que este

Vivente em concreto é o Único e o Primeiro como disse João.129

A Fenomenologia da Vida introduz uma distinção radical no que se refere à compreensão da geração deste "Si" primordial chamado também de Arqui-Filho ou Primeiro Vivente. De fato, a sentença segundo a qual a Vida se engendra a si mesma como esse "Si" vivente difere radicalmente da afirmação segundo a qual a geração deste "Si" vivente, como Arqui-Filho, ocorre como consequência da auto-geração da Vida. A sutileza está em que no segundo caso introduzimos discretamente a noção ek-stática espaço-temporal, ao sugerir o nascimento do Primeiro Vivente como consequência da auto-geração da Vida absoluta. Sem querer pode-se cair na estrutura opositiva da Fenomenologia do mundo, o que seria um absurdo para a Fenomenologia da Vida. Isto porque na Vida não há espaço-tempo, uma vez que não existe nenhuma distância entre o que revela e aquilo que é revelado. Aqui se expressa uma vez mais a tautologia essencial da Vida. Ainda no contexto do que Henry chama de interioridade fenomenológica recíproca entre a Vida e o Primeiro vivente, parece-nos relevante a citação que segue:

128 Cf. Ibid, pp.80-81. 129 Ibid, pp.79-80.

87 No entanto, a Vida não necessita ter terminado sua obra em Cristo, como em qualquer outro vivente, para que o Primeiro vivente seja vivente, se a geração do Filho co-pertence à auto-geração da Vida como aquele sem o qual esta auto-auto-geração não teria acontecido. E isto porque a Vida não se dá a si mesma mais que se abraçando a si mesma na ipseidade essencial, cuja

efetividade fenomenológica não é outra que o Verbo.130

Efetivamente, a geração do Primeiro Vivente na Vida traz uma revelação decisiva em relação aos outros viventes. Retoma-se aqui, na linguagem teológica, o vínculo outrora esboçado entre Cristologia e Antropologia. Esta discussão é proposta por Henry ao tratar do homem em qualidade de filho de Deus131. O autor retoma em seu texto a crítica à cristologia das duas naturezas, que, segundo ele, constitui um verdadeiro impedimento para a intelecção do cristianismo. Parece-nos, de fato, que para Henry está clarividente que a ideia de uma natureza humana autônoma contradiz a verdade essencial do cristianismo. Esta afirma que o nascimento transcendental do homem se dá na Vida, por meio do Primeiro Vivente. Assim sendo, constitui um absurdo e uma verdadeira aporia antropológica afirmar a possibilidade de existir uma natureza humana que seja radicalmente diferente da essência na qual ele foi engendrado (Vida). Portanto, Henry advoga que a vida deve ter um único sentido, tanto para Deus quanto para o Cristo, e, assim mesmo, para o homem. Diz o autor:

Se o homem é filho engendrado na Vida e a partir dela, não pode haver nele nada mais que essa essência da Vida, não pode haver uma outra natureza [...] Compreender o homem a partir de Cristo, compreendido Cristo a partir de Deus, radica a intuição decisiva da fenomenologia radical da Vida que é precisamente a do cristianismo: que a Vida tem o mesmo

sentido para Deus, para Cristo e para o homem.132

A crítica henryriana à linguagem cristológica convida à reflexão sobre algumas categorias-chave da teologia. Como é o caso, por exemplo, daquela que afirma a encarnação do Verbo como assunção da nossa carne. Uma pergunta fundamental

130 Ibid, p.102. 131 Cf. Ibid, pp.120-141. 132 Ibid, pp. 127-128.

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emerge neste contexto: pode a Vida assumir algo fora daquilo que ela é em si mesma? A resposta afirmativa à esta questão, segundo a fenomenologia henryriana, constituiria o maior dos contrassensos, uma verdadeira agressão à Fenomenologia da Vida. Esta afirma categoricamente que nossa vida é a mesma vida de Deus e de Cristo. Existe, pois, uma cumplicidade existencial entre a Vida de Deus e a vida dos homens. Portanto, se o Verbo enquanto Vida não pode assumir outra coisa que não sejam as propriedades da própria Vida, e isto pela simples razão de que não existe nada fora desta Vida absoluta que é a de Deus e a do seu Verbo, então, o que dizer sobre a questão da vida do homem enquanto corpo de carne, o que dizer sobre a encarnação? Se tudo que vivemos provém da Vida, então não é lícito sustentar nenhuma espécie de dualismo, como outrora ocorreu nas visões antropológicas que separaram definitivamente o ser humano em duas realidades inconciliáveis. Assim mesmo, toda epistemologia que concebe o conhecimento a partir desta cisão radical é digna de suspeita.

Quando a vida revela a carne, não se limita a revelá-la como se estivesse em presença de dois termos, um que revela e o outro que é revelado [...] a vida revela a carne ao engendrá-la, como aquilo que nasce nela, que se forma e se edifica nela, tomando sua substância fenomenológica pura, da substância mesma da vida. Uma carne impressiva e afetiva, cuja impressividade e afetividade não provém de algo distinto à impressividade e

afetividade da vida mesma.133

Como compreender nosso corpo de carne segundo a afirmação primordial do cristianismo, que revela o homem a partir da sua solidariedade existencial com a Vida, que é Deus, revelando-o como filho da própria Vida? Aqui desponta uma questão crucial: segundo a fenomenologia henryriana, a carne não pode ser entendida como um anexo da vida. Trata-se de uma questão complexa que urge ser pensada com mística e devoção, pois toca a tese que provoca nossa investigação, a saber: o tema da encarnação. A Fenomenologia da Vida, inspirada no ethos cristão, aborda a questão da carne como condição interna de possibilidade da vida. Advoga que a Vida, enquanto arqui-passibilidade, autoafecção, engendra-se enquanto carne. Contudo, exige-se que a categoria 'carne' seja decantada do contexto de nossa linguagem dualista e demasiado

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materialista. Para a Fenomenologia da Vida, carne não significa outra coisa que o "Poder de auto-afecção Primordial". Trata-se do poder de se sentir, sua origem é a arqui-passibilidade, na arqui-carne. Seu contexto vital é o abraço patético da Vida em si mesma. Este abraço patético, que nunca cessa e que é a constante auto-geração da Vida enquanto autorrevelação de si mesma. Assim diz o autor:

A única razão pela qual, necessariamente, onde quer que uma vida vem a si, tal vinda é idêntica à vinda de uma carne, a vinda a si desta carne na Arqui-Carne da Vida [...] reside no fato que esta vinda originária a si mesma se cumpre no patos originário de seu gozo de si, no Arqui-Patos de uma Arqui-Carne. A carne é justamente a forma que tem a vida de se fazer Vida [...] Esta conexão entre Carne e Vida, somente diz respeito a uma vida como a nossa porque, antes do tempo, estabeleceu-se na Vida absoluta como o modo fenomenológico segundo o qual esta Vida vem eternamente a si no Patos de sua Arqui-Carne.134

O que significa dizer, com Tertuliano, que a carne é o eixo da salvação? Se pensamos a carne como algo fora de Deus, uma coisa de outra natureza que ele precisa assumir para se tornar um de nós, então esta sentença carece de sentido. Isto porque, a partir desta premissa, a salvação seria pensada e compreendida fora de Deus. Dizer que a carne é o eixo da salvação significa dizer que somos salvos pela e na carne. Por mais absurdo que pareça à nossa mente dualista, isso significa afirmar que a carne vem de Deus. Nossa carne é deífera, não só porque pode ser salva, mas porque nela se encontra o princípio mesmo de salvação, já que se trata de uma carne viva. Posto que a carne, como diz Henry, é justamente a forma que tem a Vida de se fazer Vida. Nesta sentença, afirma-se a intuição de que o vínculo entre a vida do ser humano e a Vida que é Deus se dá justamente nesta carne que é pura autoafecção e que pode afetar e ser afetada. O vínculo da salvação significa, pois, autoafecção. A categoria carne deve fugir da sua significação hodierna, que a entende como matéria que perece, imanência fadada ao fracasso. Assumindo, portanto, seu verdadeiro sentido como carne fenomenológica, que

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se autorevela como 'poder de sentir', como autoafecção que pode afetar e ser afetada, primeiro em si mesma.

Aqui se desponta uma das mais surpreendentes teses da Fenomenologia da Vida. Trata-se da questão da carne como condição interna de possibilidade da vida. Esta tese henryriana lançar-nos-á em direção a um surpreendente conceito de transcendência. O autor afirma que transcendência, no sentido cristão, e segundo a Fenomenologia da Vida, outra coisa não pode ser que a imanência da vida na carne.135Afirma, então, que a substância fenomenológica patética do viver é a carne entendida como lugar de afecção pura. Nela se dá, segundo a teoria henryriana, a essência mesma do viver que é a autoafecção, ou seja, o sentir-se a si mesmo. A partir de então podemos fazer uma afirmação eminentemente teológica, que possui caráter revolucionário: o Deus que é