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A carne impressiva: O esquecimento da subjetividade e sua recordação no pathos

CAPÍTULO 1: A VIRADA FENOMENOLÓGICA: PRESSUPOSTOS

3.1 A carne impressiva: O esquecimento da subjetividade e sua recordação no pathos

3.1 A carne impressiva: O esquecimento da subjetividade e sua recordação no pathos da vida

Ao pensar a questão das raízes da modernidade, Lima Vaz, propõe uma fenomenologia e uma axiologia da história intelectual do ocidente. Nestes termos, definem-se três grandes momentos ou eventos fundamentais, a saber: o primeiro diz respeito ao próprio nascimento da razão grega, a passagem do mito à filosofia, ou como já dissemos, a emergência da noção de Logos; o segundo diz respeito à assimilação da filosofia antiga pela teologia cristã, e o terceiro grande evento se refere ao advento da razão moderna65. Recordamos de propósito esta distinção histórico-metodológica para situar nossa questão neste último contexto. É nele que se insere propriamente dita a análise fenomenológica do mundo, no sentido científico tal qual se nos aparece hoje. O problema do esquecimento da subjetividade, como fundamento último do que nos aparece, é evocado aqui, metaforicamente, como o elo perdido. O passo de uma Fenomenologia do mundo a uma Fenomenologia da Vida, proposto por Henry, não pode prescindir da abordagem desta questão. Ela é quem prepara o terreno para a inversão fenomenológica operada pela filosofia henryriana.

A fantástica descoberta do mundo da geometria, feita pela redução galileana, deixou de fora, como vimos, toda referência ao mundo sensível, subjetivo. A isto decidimos chamar, metaforicamente, de “elo perdido”. Assim o denominamos de acordo com aquela constatação segundo a qual todo conhecimento intelectual parte de

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Cf. Ibid, p. 138.

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uma experiência sensível real e se refere, em último caso, como teoria explicativa, a ela. Neste sentido, o limite apontado à inteligibilidade proposta por Galileu foi ter ocultado a pergunta fundamental, a saber: como conhecemos? Em outras palavras, como chegamos à formação intelectual das figuras geométricas? A ciência galileana não questionou coisa alguma sobre aquele “modo do aparecer” que faz possível a inteligibilidade do inteligível. De fato, o que torna inteligível a intuição intelectual das figuras puras é sua referência concreta ao mundo da natureza. Como bem lembrou Husserl, não existe nenhum círculo ideal na natureza, este é deduzido a partir da percepção meio bruta da realidade dos corpos percebidos e sentidos no mundo66. Percebemos anteriormente que a visão cartesiana significa uma continuidade na ruptura com a tradição galileana. Isto porque Descartes recupera este elo perdido, colocando a ênfase nas intuições intelectuais, na própria subjetividade. A realidade só é realidade se a cogitatio que tenho dela também é real. Vimos também que o pensamento cartesiano desemboca no dualismo suposto pela assunção da teoria galileana. Esta dualidade entre

res extensa e res cogitans levantará o problema complexo de como pode acontecer a

passagem de uma à outra, como pode a alma tocar o corpo. A questão levantada por Descartes parece ser ignorada por muitos. Por ser uma questão aparentemente de ordem metafísica, não será foco de discussões, a não ser por alguns, como Maine de Biran.

Com matiz diferente, podemos afirmar que Husserl recupera também este elo perdido, ao propor o corpo transcendental intencional como fundamento do conhecimento. Assim se diz que nosso corpo é transcendental porque é a condição de possibilidade de tudo aquilo que é sentido (do mundo sensível). Por isso, este corpo transcendental será definido pelo conjunto de nossos sentidos. Aqui aparece a questão fundamental que levará M. Henry a propor uma Fenomenologia da Vida. Esta se refere ao fato de que esta intencionalidade do corpo transcendental, sendo responsável pelo aparecer das coisas na nossa consciência, não se funda a si mesma, não pode ser responsável pela sua própria condição de possibilidade. Ela nos abre ao mundo, mas não funda sua própria manifestação. Dizemos então, com Henry, que ao constatar isto somos lançados da possibilidade transcendental do mundo sensível (que reside no corpo transcendental intencional que permite senti-lo) à possibilidade transcendental mesma do corpo intencional, que é a auto-revelação da intencionalidade no mundo da Vida. Passamos de uma possibilidade transcendental à outra. Aquilo que até agora

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pensávamos ser o mais originário, o corpo transcendental intencional de Husserl, parece se remeter a algo ainda mais originário, que veremos a seguir.

O esquecimento da subjetividade, no sentido radical da imanência da Vida em nossa carne, lança-nos, irremediavelmente, de volta à questão da impressão. Ao afirmarmos que nossa carne é impressiva, fazemos referência a um 'Poder de sentir' cuja fonte vai para além da aparência deste mundo, de sua estrutura ek-stática. Perguntar pela origem desta condição de possibilidade de todo sentimento, é, no fundo, colocar-se a questão sobre a origem da impressão. Sobre a origem da impressão Henry afirma:

Originário então, diferente de Husserl, designa aqui o que vem antes de toda intencionalidade. Aquilo que vem antes do mundo concebível, a-cósmico. O “antes” do originário não indica uma situação inicial, o começo de um processo. Mas se refere a uma condição permanente, interna, de possibilidade, uma essência. Assim, aquilo que vem antes do mundo, jamais virá a ele, e isso por uma razão essencial, a saber: nunca virá a ele porque não pode se mostrar nele, mas somente desaparecer nele. Assim, não se pode, como em Husserl, tomar a impressão originária como uma existência que cai por seu próprio peso, simples

suposto não questionado em sua possibilidade interna67.

Percebemos, pela citação acima, que Henry fala da impressão originária no sentido radical, como aquilo que não pode ser justificado pela estrutura ek-stática do aparecer do mundo. Descarta então a acepção temporal de origem da impressão. Esta não pode ser pensada como sucessão de tempos, não se refere ao conteúdo que brota, sem ser explicado, constantemente, e que desliza para o passado em direção ao nada. Esta impressão originária, assim se designa porque se trata de uma condição de possibilidade, a que se refere ao próprio 'Poder de sentir'. Não obstante, este 'Poder de sentir, já tantas vezes mencionado, não possui sua origem nele mesmo. Isto implica afirmar que esta impressão Originária não possui, tampouco, sua origem nela mesma. E isto pode ser compreendido na filosofia de Henry através do argumento da possibilidade que possui uma impressão de se transformar em outra. De fato, segundo Henry, nenhuma impressão se funda a si mesma, caso contrário ela teria a capacidade de determinar o tipo de impressão que desejasse ser. Contudo, pelo contrário, todas nossas

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impressões se transformam constantemente, não no não ser do fluxo ek-stático, mas em outra e sempre nova impressão: a enfermidade em bem-estar, a fome em saciedade. A impressão não elegeu ser o que é: uma impressão que se experimenta em sua própria carne, em uma matéria impressiva que Husserl chamou com o termo grego de hylé. Então, qual é a origem da impressão?68

Ao perceber que, por mais originária que seja a impressão, ela não pode ser o fundamento de si mesma, passamos de uma fenomenologia da impressão, de uma fenomenologia da nossa carne impressiva a uma outra. A pergunta sobre a origem em fenomenologia, nos recorda Henry, nos remete à questão do ser. E como bem lembra o autor, ser, no âmbito fenomenológico, é o aparecer. Então a origem da impressão é o seu aparecer69. Contudo, onde a impressão originária aparece? Constatamos anteriormente, pelo estudo da redução galileana, da contra-redução cartesiana e da fenomenologia husserliana, que a impressão, no seu sentido originário, não pertence ao horizonte de fenomenalidade do mundo, independe da sua estrutura ek-stática. Por este motivo, Husserl, por exemplo, submete toda impressão ao olhar formatador da intencionalidade, renovando a noção hilemórfica na qual está inserido o pensamento ocidental. A impressão originária escapa a toda epistemologia que queira definir o ser a partir do pensamento, esquecendo a condição originária de que todo pensar é, antes, um 'Poder do vivente'.

Afirma-se então que a impressão originária tem sua origem no aparecer da Vida e não no horizonte de visibilidade do mundo:

A origem da impressão é seu aparecer: um aparecer tal que tudo o que se revela nele advém como momento sempre presente e real da carne impressiva da qual falamos. Não é o aparecer do mundo, mas o aparecer da Vida, que é a Vida em sua

fenomenização originária.70

Passamos assim de uma fenomenologia da impressão para uma Fenomenologia da Vida. Não abordaremos aqui a questão do tempo, compreendido a partir da fenomenologia henryriana. Parece-nos apenas conveniente ressaltar que a noção de tempo nesta Fenomenologia inaugurada por Henry, difere essencialmente da ideia de tempo da

68 Cf. Ibid, p.83. 69 Cf. Ibid, p.84. 70 Cf. Idem.

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fenomenologia de Husserl (consciência interna do tempo: como deslizamento da realidade para a irrealidade do passado irrecuperável), ou o tempo na filosofia heideggeriana, como 'praias da exterioridade, como a condição de possibilidade de todo aparecer. A Fenomenologia da Vida fala de nossa impressão a partir de um presente sempre real de uma carne impressiva. Todo 'sentir' se insere neste horizonte da vida que nunca é passado, mas sempre presente, sob pena de, quando passado, deixar de ser vida. A impressividade de nossa carne pertence, portanto, ao aparecer da Vida na sua autorevelação originária, na sua autoafecção constante, que nunca cessa, que é sempre presente. A vida é aquela que sempre se sente, tendo a autoafecção, como aquilo que a define, como sua própria essência71.