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A INTELIGIBILIDADE PRIMORDIAL: FUNDAMENTO TEOLÓGICO-ANTROPOLÓGICO DA FENOMENOLOGIA DA VIDA EM MICHEL HENRY

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José Sebastião Gonçalves

A INTELIGIBILIDADE PRIMORDIAL:

FUNDAMENTO TEOLÓGICO-ANTROPOLÓGICO DA

FENOMENOLOGIA DA VIDA EM MICHEL HENRY

Dissertação de Mestrado em Teologia

Orientador: Prof. Dr. Geraldo De Mori

BELO HRIZONTE

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José Sebastião Gonçalves

A INTELIGIBILIDADE PRIMORDIAL

FUNDAMENTO TEOLÓGICO-ANTROPOLÓGICO DA

FENOMENOLOGIA DA VIDA EM MICHEL HENRY

Dissertação de Mestrado em Teologia

Orientador: Prof. Dr. Geraldo Luiz De Mori

Apoio CAPES

BELO HORIZONTE

FAJE - Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia

2014

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A INTELIGIBILIDADE PRIMORDIAL

FUNDAMENTO TEOLÓGICO-ANTROPOLÓGICO DA

FENOMENOLOGIA DA VIDA EM MICHEL HENRY

Dissertação apresentada ao Departamento de Teologia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, como requisição parcial para a obtenção do título de Mestre em Teologia.

Área de concentração: Teologia Sistemática Orientador: Prof. Dr. Geraldo Luiz De Mori.

Apoio CAPS

BELO HORIZONTE

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G643i

Gonçalves, José Sebastião.

A Inteligibilidade Primordial: fundamento teológico-antropológico da Fenomenologia da Vida em Michel Henry/ José Sebastião Gonçalves. - Belo Horizonte, 2014.

163 p.

Orientador: Prof. Dr. Geraldo Luiz De Mori

Dissertação (mestrado) – Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, Departamento de Teologia.

1. Arqui-inteligibilidade. 2. Inteligibilidade primordial. 3. Fenomenologia da Vida. 4. Encarnação 5. Corporeidade 6. Antropologia 7. Teologia 8. Henry, Michel. I. De Mori, Geraldo Luiz II. Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia. Departamento de Teologia. III. Título

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DEDICATÓRIA

"A fé é um modo de já possuir aquilo que se espera, é um meio de conhecer realidades que não se vêem". (Hb 11,1)

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AGRADECIMENTOS

Ao Deus que é Vida, ao Deus da minha vida. Amor primordial, Caminho e Verdade que nunca cessa de amar.

Ao meu orientador, Prof. Dr. Geraldo Luiz De Mori, por ter acreditado no potencial desta pesquisa e reservado preciosos momentos para o acompanhamento, sempre manifestando carinho, paciência e competência.

À comunidade Santa Dorotéia ( aos meus irmãos Fernando, Carmelo, Enivaldo, Maurício, Rogério), bem como à presença escolápia de GV. Por terem sido, muitas vezes, o clarão do raio em meio às tempestades.

Aos outros irmãos escolápios com os quais tive a honra de conviver (juniores e pré-noviços), e aos irmãos que possuem responsabilidade de Governo (a Pe. Fernando, ex Vice provincial que apoiou o início desta empreitada; a Pe. Juan Mari, atual Vice-provincial; a Pe. Mariano, Provincial, e a Pe. Pedro, Geral).

Ao Jesuítas da comunidade acadêmica da FAJE (Caros colegas de mestrado, professores, funcionários da biblioteca e xérox, bem como ao CTP.). Responsáveis por aguçar ainda mais minha paixão pela pesquisa e vida intelectual.

Aos meus amigos amores e Amores amigos: Cláudio Paul, Juliano, Natalino, Élio, Filipe, Taborda, Nilo, Daniel, Kleber, Cristiane, Amanda. E aos meus alunos pelo carinho brindado e intuições suscitadas.

À minha família e aos meus afilhados (as), pelo carinho e confiança. Escola de amor e de vida.

À Michel Henry ( in memoriam) e a todos que se dedicam ao árduo e nobre exercício do pensamento filosófico e teológico.

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RESUMO

O intuito desta pesquisa consiste em pensar a Arqui-inteligibilidade, haurida do prólogo joanino, como fundamento teológico-antropológico da Fenomenologia da Vida de Michel Henry. Partindo do pensamento deste autor, especificamente da perspectiva de seu discurso sobre a corporeidade, propomos a articulação entre Antropologia e Teologia. Nosso ponto de partida, tanto filosófico quanto teológico, é o fenômeno da Vida. Este tema, esboçado fantasticamente na reflexão do filósofo francês, pode ser pensado teologicamente, a partir do âmbito da Revelação-Encarnação-Salvação, através da noção de Inteligibilidade primordial do prólogo de São João. Além da fecundidade historicamente atestada do diálogo entre filosofia e teologia, as razões pelas quais pretendemos investigar o tema proposto tocam questões de caráter eminentemente existencial, no que se refere à reflexão teológica e à prática pastoral. A necessidade de repensar o corpo e a corporeidade, situando-os numa nova conjuntura em que seja superada a noção epistemológico-dualista segundo a qual todo conhecimento da realidade brota de um intelecto desencarnado, apresenta-se aqui como uma de nossas motivações explícitas. Neste sentido, consideramos a noção de Inteligibilidade primordial, Arqui-inteligibilidade Joanina, como uma intuição fundamental. Ela pode ressignificar nossa vivência da fé a partir da experiência de nossa corporeidade. Para tanto, propomos,de acordo com o pensamento henryriano, explicitar a Inteligibilidade primordial esboçada de forma especial no Prólogo joanino. Trata-se da tarefa de recordar a verdade fundamental de nossa existência encarnada, a saber: antes do pensamento, existimos enquanto carne afetada, participamos do mistério da Vida. A possibilidade de toda ação e reflexão emerge de nossa condição humana originária de sermos afetados na vida de Deus e por Deus. Pensar e, sobretudo, agir enquanto carne e a partir da carne, tendo como referência a humanidade do Verbo encarnado, eis nossa motivação existencial de fundo.

Palavras-chave: Arqui-inteligibilidade; Inteligibilidade primordial; Fenomenologia da

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ABSTRACT

The goal of this research is to think the Arch- intelligibility, drawn from the Johannine prologue, as theological- anthropological foundation of the Phenomenology of Life in the Michel Henry's thought. Starting from his thought , specifically from the perspective of his speech on corporeality , we propose the relationship between anthropology and theology . Our starting-point , both philosophical and theological , is the phenomenon of Life . This matter, fantastically outlined in the reflection of the French philosopher , could be thought theologically , from the scope of Revelation - Incarnation - Salvation , concerning the notion of prime or main Intelligibility at the prologue of St. John. Beyond the fertility, historically attested, of the dialogue between philosophy and theology, there are other reasons which move us to begin this investigate. They touch existential questions, with regard to the theological reflection and pastoral practice . The need to rethink the body and embodiment , placing them in a new environment where exceeding the epistemological and dualistic notion that think that all knowledge of reality springs from a disembodied intellect , is presented here as one of our explicit motivations. In this sense we consider the notion of prime or main intelligibility, Arch Joanina intelligibility , as a fundamental insight . It can reframe our experience of faith from the experience of our corporeality . To this end, we propose , according Henry's thought, explaining the prime Intelligibility, outlined in a special way in the Johannine Prologue . We want do the task of recalling the fundamental truth of our embodied existence, namely, to affirm that before thought , we exist as flesh affected , partake of the mystery of Life . The possibility of all the action and reflection begins with our original conditional of being affected at the Life of God and by God. So, we can say that our main existential motivation, which moved us to do this work, it is think, and above all, act as flesh affected by God's life.

Key words: Arch-intelligibility; Prime intelligibility; Phenomenology of Life,

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 10

CAPÍTULO 1: A VIRADA FENOMENOLÓGICA: PRESSUPOSTOS FILOSÓFICOS DA FENOMENOLOGIA DA VIDA PARA UMA POSSÍVEL INVESTIGAÇÃO TEOLÓGICA ... 18

1 O corpo de carne: distinção basilar e considerações preliminares... 19

2 A questão da verdade como busca fundamental de uma inteligibilidade Primordial .. 25

2.1 A questão do aparecer e sua indigência ontológica ... 26

2.2 A Verdade segundo a Fenomenologia do Mundo ... 36

2.3 O esvaziamento do poder da impressão em sua auto-afecção ... 44

3 A virada fenomenológica: do aparecer do mundo à Fenomenologia da Vida ... 47

3.1 A carne impressiva: O esquecimento da subjetividade e sua recordação no pathos da vida ... 50

3.2 A remissão da Fenomenologia da Carne (impressiva) à Fenomenologia da Vida ... 54

3.3 A Verdade segundo o Cristianismo... 62

CAPÍTULO 2: FENOMENOLOGIA DA VIDA E CRISTIANISMO: A REVELAÇÃO SOBRE NOSSA HUMANIDADE ... 69

1 Fenomenologia e ontologia: possíveis implicações teológicas ... 70

2 Fenomenologia de Cristo: função soteriológica ... 73

2.1 A autorrevelação da Vida Absoluta no Logos Primordial... 81

2.2 A questão da Palavra viva de Deus ... 92

2.3 O Deus relação: perspectiva trinitária ... 101

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3.1 Filhos no Filho ... 107 3.2 Sobre o esquecimento da nossa condição de filho: Ilusão Transcendental do Ego 113 3.3 Por uma antropologia fundamental ... 117

CAPÍTULO 3: INTELIGIBILIDADE PRIMORDIAL: O SENTIDO CRISTÃO DA SALVAÇÃO ... 122

1 A fenomenologia da encarnação ... 123 2 A inteligibilidade Primordial: o sentido cristão da salvação ... 132 3 Por uma teologia mistagógica da corporeidade e da ação: recordação da nossa condição de filhos e nossa incorporação ao Corpo místico de Cristo ... 144

CONCLUSÃO ... 157

REFERÊNCIAS ... 160

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INTRODUÇÃO

O escopo desta dissertação é pensar como a Inteligibilidade primordial, haurida do prólogo joanino, pode ser vislumbrada como fundamento teológico-antropológico da Fenomenologia da Vida de Michel Henry1. A partir do pensamento deste autor, mais especificamente da perspectiva de seu discurso sobre a corporeidade, que emerge de sua Fenomenologia da Vida, propomos a articulação entre Antropologia e Teologia. Nosso ponto de partida, tanto filosófico quanto teológico, é o fenômeno da Vida. Este, que se encontra esboçado na fantástica reflexão do filósofo francês, é pensado teologicamente a partir do âmbito da Revelação-Encarnação-Salvação, através da noção de Inteligibilidade primordial do prólogo de João. Apesar da impressão inicial, é importante ressaltar que este trabalho não se trata de uma dissertação bíblica centrada na investigação exegética do texto de João. Assumimos a perspectiva de nosso autor e procuramos torná-la explícita. Contudo, não adentraremos em um discurso analítico do texto bíblico. O mesmo se pode dizer em relação à fenomenologia. Apesar da relevância do discurso filosófico, concentrado, principalmente, no primeiro capítulo, nossa empreitada não constitui uma investigação filosófica sobre a fenomenologia enquanto escola. Desde já, assumimos então as possíveis lacunas referentes a tais disciplinas.

Além da fecundidade historicamente atestada do diálogo entre filosofia e teologia, as razões pelas quais pretendemos trabalhar o tema proposto tocam questões de caráter eminentemente existencial, no que se refere à reflexão teológica pessoal e à

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prática pastoral. A primeira razão explícita é a necessidade de repensar o corpo e a corporeidade, situando-os numa nova conjuntura, em que seja superada a noção epistemológico-dualista segundo a qual todo conhecimento da realidade brota de um intelecto desencarnado. Aqui falamos do “saber ser carne”. É neste sentido que consideramos a noção de inteligibilidade ou arqui-inteligibilidade Joanina como uma intuição primordial para ressignificar nossa vivência da fé a partir da experiência de nossa corporeidade. Para tanto, propomos, com Henry, desvelar uma Inteligibilidade primordial esboçada de forma especial no Prólogo joanino. Não a inventamos absolutamente, apenas queremos fazer notar que, antes do pensamento, existimos enquanto carne afetada (participamos do mistério da Vida). Desta afecção brota a possibilidade de toda ação e reflexão. Pensar e, sobretudo, agir enquanto carne e a partir da carne, tendo como referência a humanidade do Verbo encarnado, eis nossa motivação existencial de fundo.

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outros. Todo este cenário contribuiu para que se pudesse pensar, por exemplo, uma sociologia do corpo, como é o caso de David Le Breton e Sandro Spinsanti2.

A segunda característica que auxilia a contextualização de uma atual pesquisa sobre nossa condição corpórea, pode nos ser dada pela perspectiva filosófica da fenomenologia. Neste sentido, tocamos o tema do 'aparecer' da Vida, ou seja, de sua manifestação, desde as vivências mais hodiernas até as mais elaboradas e complexas formas do existir humano. A reflexão sobre o fenômeno da vida e da existência foi acentuada pelas filosofias modernas que precederam a reflexão fenomenológica enquanto escola. A começar pela reflexão cartesiana, precursora de uma filosofia da consciência, passando pela reflexão do sujeito transcendental de Kant, atingindo o sistema hegeliano da manifestação do Espírito absoluto, como manifestação do sentido da vida na história. No limiar da crise da modernidade uma fenomenologia da vida3 foi esboçada pelo pensamento de Schopenhauer. Em sua obra intitulada "O mundo como

vontade e representação4", o autor compreende a existência como consequência de uma vida cega e sem sentido. Esta perspectiva schopenhauriana será retomada pela filosofia de Nietzsche que anunciará, de forma assombrosa, a morte de Deus. Intuiremos, ao final de nosso discurso sobre a Fenomenologia da Vida, que o Deus morto do pensamento Nietzschiano, felizmente, não coincide com o Deus que é Vida da existência cristã. O anúncio da morte de Deus não é, efetivamente, o anúncio da morte da Vida. Ainda mais podemos dizer sobre isso. Na perspectiva do pensamento henryriano, em certo sentido, este anúncio nietzschiano sobre a morte de Deus é até mesmo vazio e sem sentido. Isto porque no horizonte fenomenológico do mundo não é possível nenhum Deus, sempre quando este é entendido como Vida. Assim então, constatamos que, segundo a fenomenologia henryriana, a proclamação da morte de Deus é inútil, pois este nunca existiu, eminentemente, no mundo, uma vez que este é vazio de toda Vida. A perspectiva Schopenhauriana, de uma vida cega e sem sentido, que se expressa como pura Vontade, haverá de ser retomada também por Freud. O médico de Viena confinará a existência humana ao mundo inconsciente, palco de ação desta vida cega proclamada

2

Cf. LE BRETON, David. A sociologia do corpo. Petrópolis: vozes, 2006. - SPINSANTI, Sandro. Il

corpo nella cultura contemporanea. Brescia: Queriniana, 1990.

3

Evidentemente esta fenomenologia da vida em minúscula, delineada por Schopenhauer, nada tem a ver com a Filosofia da Vida, em maiúscula, do pensamento henryriano. De fato, a perspectiva do filósofo do século XIX ainda permanece, como notaremos mais adiante, na perspectiva que Henry haverá de chamar de Fenomenologia do mundo. Assim sendo, ressaltamos, que a concepção do aparecer da vida no primeiro autor difere, radicalmente, da manifestação da Vida da perspectiva de Michel Henry.

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por Schopenhauer. Os impulsos da dimensão dionisíaca, atestada pela filosofia nietzschiana, agem, segundo Freud, no inconsciente de cada ser humano que está fadado a uma existência inautêntica, uma vez que, como ser social, nunca poderá dar vazão à todas suas vontades. Este discurso tão truncado e, para muitos, de difícil intelecção ao início, haverá de ser elucidado aos poucos quando iniciarmos a narração da virada fenomenológica proposta por nosso autor.

A fenomenologia, enquanto escola, esboça-se como um método de investigação tendo Edmund Husserl como seu precursor. Para muitos estudiosos, tal método constitui o centro de gravidade de grande parcela do pensamento filosófico do século XX. Ele influenciou grandes pensadores como Heidegger5. Posteriormente, a filosofia transcendental de Husserl foi retomada por exímios fenomenólogos como, por exemplo, Merleau-Ponty. Autores contemporâneos como Paul Ricoeur também levam em conta a reflexão proposta pela fenomenologia na hora de elaborar seu pensamento, como é o caso da abordagem hermenêutica ricoeuriana6. Pensar uma possível abordagem teológica sobre nosso corpo encarnado, a partir das descobertas do pensamento henryriano, na perspectiva de uma fenomenologia da carne, poderá nos ajudar a resgatar e a vivenciar melhor a verdade fundamental de nossa fé. Esta, encontra-se esboçada de forma “espantosa” no fenômeno Cristo, chamado também de fato Cristão, e poeticamente narrado no prólogo joanino: “O verbo se fez carne”. De fato, nosso propósito investigativo pode ser explicitado também da seguinte maneira: pensar nossa condição antropológica e teológica fundamental, nossa forma de aparecer no mundo enquanto carne afetada, tendo como ponto de partida a contribuição da Fenomenologia da Vida de Henry, à luz de nossa referência Teológica fundamental, a saber: a Revelação- Encarnação do Cristo.

Para que pudéssemos oferecer condições práticas de factibilidade de nossa pesquisa, delimitamos nossa empreitada a partir do grande objetivo já explicitado no início desta introdução, a saber: pensar a noção de Arqui-inteligibilidade, anunciada no prólogo de João e esboçada pelo pensamento de Henry, como possível fundamento teológico-antropológico da Fenomenologia da Vida. Para pautar nossa reflexão delimitamos nosso estudo a duas obras do autor, a saber: Incarnation e C'est moi la

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Cf. HUSSERL, E. Investigações lógicas- sexta investigação. In Os pensadores. São Paulo: Abril cultural, 1980, p. 6-14.

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vérité7. Pensamos que, embora nossa questão tenha como ponto de partida o pensamento de um filósofo e fenomenólogo, as condições práticas de factibilidade da pesquisa se dão porque o tema, como se pode antever pelo mesmo título, leva-nos a um âmbito explicitamente teológico. A partir destas obras empreenderemos um diálogo com a Antropologia teológica. Modestamente, buscamos levar em consideração as reflexões da Teologia fundamental, esboçada pela tradição da Igreja através de grandes teólogos, desde a tradição dos padres (Irineu, Tertuliano) até o pensamento teológico contemporâneo evocado aqui através de teólogos como Xavier Lacroix, Karl Rahner e Adolph Gesché8. Quanto à delimitação do tema, pensamos que ela se esboça de forma bastante clara no mesmo título de nossa pesquisa. Ressaltamos, portanto, que não temos pretensão de abordar toda a reflexão sobre a Fenomenologia da Vida de Henry. Nossa empreitada visa somente indicar que a reflexão fenomenológica desenvolvida pelo autor recupera dimensões escondidas ou esquecidas no que se refere ao corpo e sua relação com a doutrina da Salvação. Parafraseando Tertuliano e mesmo Gesché, pretendemos elucidar que o corpo, segundo a sã tradição cristã, aparece como caminho de Deus e caminho para Deus. Neste sentido, enquanto opção metodológica, podemos dizer que nossa pesquisa se refere ao método hermenêutico enquanto reflexão dialógica que busca a comunicação entre as duas disciplinas, a saber: Fenomenologia e Teologia, tendo como centro a reflexão sobre nossa forma de aparecer e viver no mundo que se dá através de nossa “condição de seres encarnados – corporeidade".

Desta forma, seguindo nosso objetivo primeiro (pensar a Inteligibilidade primordial como fundamento teológico da Fenomenologia da Vida), de acordo com nossa opção metodológica de colocar em diálogo Fenomenologia e Teologia, por meio de uma modesta hermenêutica, estruturamos nosso discurso a partir de três objetivos específicos. O primeiro deles gira em torno à tentativa de explicitar a Fenomenologia da Vida de Michel Henry como uma possível filosofia cristã. Em segunda instância, buscamos elucidar o vínculo entre Teologia e Fenomenologia da Vida, fazendo notar a

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Cf. HENRY, Michel. C'est moi la vérite: pour une philosophie du christianisme. Paris: Seuil ,1996. A outra obra já se encontra citada em nossa primeira nota. Trabalhamos, majoritariamente, em nossa dissertação com a tradução espanhola das duas obras: Encarnación: una filosofia de la carne ; Yo soy la

verdad: para uma filosofia do Cristianismo. Contudo, conferimos todas as notas com o texto original e,

doravante, fizemos a opção por citar sempre o texto em sua versão de língua francesa.

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profunda intimidade entre Teologia e Antropologia. Por fim, no terceiro objetivo, propomos um pensamento teológico-mistagógico, que reforce a experiência ética vital da corporeidade na sua relação com a alteridade. Destaca-se aqui o tema de nossa incorporação ao Corpo místico de Cristo, através das nossas ações carnais, na relação com os outros corpos encarnados. A estrutura do presente texto segue, metodicamente, a elucidação dos três objetivos acima citados. Desta forma, nossa reflexão está elaborada a partir de três momentos, sendo que cada um deles corresponde estruturalmente a um capítulo. Sobre isso discorreremos brevemente a seguir.

O primeiro capítulo desta dissertação, intitulado "A virada fenomenológica", busca expor os pressupostos filosóficos da Fenomenologia da Vida para uma possível investigação teológica. Nele ganha destaque especial a tese que provoca a investigação, a saber: a questão da encarnação. É a pergunta pela nossa condição carnal que conduz o autor a pensar uma Fenomenologia da Vida, operando assim, uma guinada no pensamento fenomenológico. Partindo da análise henryriana dos pressupostos infundados da Fenomenologia do mundo, construiremos a base para o desvelamento de uma Fenomenologia da Vida. O discurso, eminentemente filosófico, possui objetivo teológico. Analisando a epistemologia moderna, desde a chamada redução galileana, passando, brevemente, pela contra-redução cartesiana e a perspectiva husserliana, buscamos explicitar a gratidão crítica de Henry. Este, reconhecendo-se na esteira da fenomenologia tradicional, lança-nos para um novo modo de ver, a partir do qual, pretende-se superar a dualidade entre fenomenologia e ontologia, entre ser e aparecer.

Emerge, neste contexto, a questão da verdade como busca fundamental por uma Inteligibilidade dita primordial. A partir do conceito das duas verdades esboçadas no pensamento de Henry, a saber: verdade do mundo e verdade do cristianismo, pretende-se pensar a Fenomenologia da Vida como uma legítima filosofia do cristianismo. Na medida em que, segundo a perspectiva fenomenológica do autor, a verdade do cristianismo difere essencialmente da verdade do mundo, impõe-se como necessária a elucidação destas duas fenomenologias. Nossa reflexão será de cunho teológico-antropológico-fundamental. Trata-se de pensar a verdade do cristianismo e, assim mesmo, a cristologia desde a perspectiva da Fenomenologia da Vida. O discurso desta unidade haverá de gravitar em torno a conceitos centrais como: verdade do mundo,

verdade do cristianismo, autorrevelação, fenomenologia da vida (e da carne).

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da Autorrevelação de Deus que nos abre o horizonte para pensar a revelação sobre nossa condição humana de seres encarnados. Esta reflexão gravitará em torno da função soteriológica da fenomenologia de Cristo, que nos lançará no campo de uma antropologia fundamental, a partir da qual será possível pensar nossa condição humana primordial. Uma vez elucidada a Fenomenologia da Vida, como verdade fundamental que legitima uma filosofia do cristianismo, propomos pensar nossa existência carnal a partir da Inteligibilidade primordial do prólogo joanino. A intuição que pretendemos elucidar pode ser encarada como uma virada hermenêutica na forma de compreender e pensar nossa forma de aparecer e ser no mundo. A Inteligibilidade primordial, pensada por Henry, está estritamente ligada à verdade do cristianismo e sua Fenomenologia da Vida. Nela ocorre uma revelação surpreendente sobre a nossa humanidade: na carne de Cristo, e misteriosamente, na nossa carne se faz presente a Inteligibilidade primordial, que ultrapassa toda pretensão racionalista de abordagem completa da verdade. Para vislumbrar algo da verdade, antes é preciso saber ser carne e saber-se carne. A fonte do pensar não parte, como advoga a tradição racionalista, de um nous desencarnado, mas da nossa realidade patológica de autoafecção. Com isto, pode-se verdadeiramente pensar o cristianismo e sua verdade como uma filosofia da carne.

O derradeiro capítulo dessa dissertação, buscando aprofundar ainda mais o estreito vínculo entre Fenomenologia da Vida e Cristianismo, tomando como ponto de partida a questão da Inteligibilidade primordial, desenvolvida por Henry, a partir do anúncio do prólogo joanino, explicitará o horizonte do sentido cristão da salvação. Trata-se aqui de repensar nossa condição humano-corporal a partir do mistério da encarnação do Cristo. Segundo as reflexões anteriores sobre a verdade do mundo e a verdade do Cristianismo, buscamos propor uma Teologia mistagógica concernente à nossa corporeidade. Queremos pensar e viver nosso corpo de carne como lugar teológico da manifestação da verdade fundamental de Deus e do ser humano. O corpo como caminho de Deus e caminho para Deus.

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consequentemente, nossa incorporação a Cristo como lugar de encontro e revelação do próprio Deus. Deixamos, portanto, manifesto, que um dos objetivos deste capítulo, consiste em abrir horizontes através dos quais possamos pensar, a partir da Fenomenologia da Vida de Henry, uma possível Teologia do corpo. Esta, por sua vez, partiria do fundamento de nossa fé que está enraizada, no espantoso e bem aventurado anúncio, do prólogo joanino: “o Verbo se fez carne” (Jo 1,14).

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CAPÍTULO 1: A VIRADA FENOMENOLÓGICA:

PRESSUPOSTOS FILOSÓFICOS DA FENOMENOLOGIA DA

VIDA PARA UMA POSSÍVEL INVESTIGAÇÃO TEOLÓGICA

Sendo esta empreitada uma investigação eminentemente teológica, ao leitor poderia incomodar um capítulo exclusivamente filosófico. Contudo, para além de todo capricho intelectual, a reflexão fenomenológica encabeçada neste primeiro momento, situa-se como condição de possibilidade para o desenvolvimento sóbrio de nossa pesquisa. É neste sentido que propomos explicitar a virada fenomenológica henryriana, assim como os pressuposto filosóficos da Fenomenologia da Vida, afim de promover uma autêntica investigação Teológica. Nosso percurso contará com três momentos principais.

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1 O corpo de carne: distinção basilar e considerações preliminares

Como já explicitamos na introdução, a tarefa de nossa pesquisa consiste em pensar a fundamentação teológica do discurso Henryriano em sua Fenomenologia da Vida. Obviamente por se tratar da Vida absoluta na sua doação geradora desta vida singular que cada um de nós vivemos, o discurso também é antropológico. Temos então, que nosso trabalho traz como pano de fundo o tão mencionado binômio relacional: Teologia-Antropologia. Sendo, portanto, que o objetivo da investigação é teológico, o discurso filosófico, ou, no nosso caso específico, fenomenológico, encontra-se pautado por um propósito investigativo específico. Este diz respeito à explicitação necessária dos princípios filosóficos ou fenomenológicos que, doravante, permitir-nos-ão uma plausível empreitada Teológica.

Por ousada que seja nossa postura, parece-nos conveniente afirmar que o tema do Cristianismo, abordado diretamente por M. Henry no último período da sua produção intelectual, não se desvincula, em absoluto, de sua empreitada fenomenológica. A busca pela verdade, seja como for, o conduziu até às portas do pensamento cristão. Caminhando por estas veredas, como bom fenomenólogo, homem empenhado em compreender o que há de mais fundamental na realidade, nosso autor se deparou com a questão central da fé cristã. Trata-se do tema da encarnação. Centrando nele seus últimos esforços intelectuais, dele também exauriu as forças necessárias para levar a cabo sua proposta de pensar a Fenomenologia da Vida a partir do ethos cristão. Afirmará Henry que a questão da encarnação, eixo central da fé cristã, também se coloca como questão central para todos os homens e mulheres viventes que existem sobre a terra. Isto ocorre simplesmente pelo fato de que todos esses viventes são seres encarnados9. Esta verdade, proclamada no cristianismo, através do evento Cristo, é também a verdade antropológica mais fundamental. De fato, diante da pergunta filosófica mais básica, aquela que se refere à diferença entre os corpos vivos10 e os

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HENRY, Incarnation, p.7. Aproveitamos a oportunidade para comunicar que todos os fragmentos literais da obra do autor que se encontram neste texto possuem uma tradução livre (do espanhol ou francês ao português) de responsabilidade nossa.

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corpos inertes, objetos de estudo das ciência duras ( física, química, etc), dizemos que a encarnação se apresenta, de fato, como o marco diferencial entre o corpo humano e os corpos materiais. Agora, se esta é uma diferença fundamental, ela se impõe como questão basilar na hora de pensar a verdade da vida ou a verdade de como conhecemos esta vida.

Para levar adiante sua investigação fenomenológica, Henry introduz no início de seu discurso, no livro Encarnação, uma distinção não só metodológica, mas de cunho fundamental. Esta diz respeito à definição ou circunscrição, por meio das diferenças, entre os dois corpos: por um lado, o corpo de carne, por outro, os corpos opacos que povoam o universo. De um lado, temos um corpo encarnado, capaz de sentir as interpelações do mundo. Este corpo, capaz de sentir, só o é, porque primeiro se sente. Assim sendo, desponta-se o tema da auto-afecção como raiz da distinção primordial entre o corpo sentido e o corpo que sente. Sendo que nosso corpo possui as duas características, já que é, ao mesmo tempo, corpo que sente e corpo sentido. A capacidade de sentir-se ou, como veremos adiante, de 'Poder sentir-se', capacidade esta que não possui seu fundamento em si mesmo, estabelece-se como condição de possibilidade de 'Poder sentir' os corpos exteriores. Afirmamos que aqui surge uma questão epistemológica de fundo, a saber: a pergunta pelo ponto de partida do conhecimento e o que se 'Pode' realmente conhecer. Esta questão, da teoria do conhecimento, tão antiga e tão nova, esteve presente no pensamento humano desde tempos imemoriais. Potencializada pela filosofia grega, continuou seu desenvolvimento a partir da teologia cristã. Retomada pela filosofia moderna, foi reformulada por Descartes, em seu Discurso do método, discutida pelos filósofos empiristas do séc. XVII, e sintetizada de forma magistral pelas duas críticas de Kant. A questão, obviamente, não se fecha em Kant, e continua a ser tematizada pelas filosofias posteriores (positivismo de Comte, a retomada da questão da vida por Schopenhauer). Despontam neste contexto duas personalidades que tratam da busca pela verdade utilizando, embora de forma diferente, diretamente o termo fenomenologia, a saber: Hegel (Fenomenologia do Espírito) e, posteriormente, Husserl. Este último, herdeiro da tradição cartesiana, fundará uma das escolas filosóficas mais fecundas no limiar do séc. XIX ao XX.

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Esbarrando com a confissão cristã de um Verbo encarnado, percebe a fecundidade desta categoria para sua reflexão fenomenológica e para a própria teoria do conhecimento. Ao avançar em suas pesquisas sobre a encarnação, tomá-la-á como premissa epistemológica fundamental. Isto quer dizer: para Henry está clarividente que somente nossa carne nos permite conhecer, ela é, a partir de seus limites, a condição de possibilidade de todo conhecimento. Esta afirmação será elucidada mais adiante quando abordarmos diretamente a fenomenologia da carne, assim como o tema da impressão e dos seus "Poderes"11. Por agora, parece-nos indispensável aprofundar um pouco mais a distinção antropológica básica proposta por Henry, a saber: aquela que se refere ao corpo de carne e ao corpo inerte, objeto das ciências duras.

Na distinção que opera entre os dois corpos: o corpo vivo, dos seres humanos, e o corpo opaco, dos objetos das ciências, o autor chamará carne o primeiro e corpo o segundo. Todas as vezes, portanto, que falarmos de uma carne, estamos falando deste corpo de carne, o nosso corpo vivo, encarnado e bem distinto dos outros corpos que nada podem sentir. Aqui se encontra a riqueza do pensamento henryriano tal como sua capacidade de fecundar o chão da teologia, ao abrir uma porta no seu pensamento fenomenológico para pensar o tema cristão da encarnação. O que mais nos impressiona é que ao pensá-lo, não o faz como uma questão marginal, como se fosse um acidente de percurso do seu pensar filosófico. Ao contrário, destaca este tema como algo fundamental na sua Fenomenologia da Vida, e o afirma como pivô da virada fenomenológica que propõe. Por isso, lançamos nosso olhar investigativo sobre este autor e nos propusemos buscar os fundamentos teológicos de sua fenomenologia da vida a partir de sua fenomenologia da carne e da encarnação. Para continuar nossa empreitada, passamos agora a pensar a definição de homem como carne12.

Para avançarmos na distinção proposta por nosso fenomenólogo, temos que passar necessariamente pela abordagem das duas antropologias clássicas que subjazem à visão ocidental do homem. Trata-se da visão do ser humano propagada pelo pensamento grego e da visão propagada pelo pensamento semítico presente na tradição das Sagradas Escrituras. Pese sua importância, passaremos brevemente por esta análise por ser ela um lugar comum tanto na reflexão teológica quanto na filosófica. Henry percebe que a definição do homem como carne, por mais evidente que pareça, não é uma questão tão fácil de ser compreendida. A palavra encarnação, encruzilhada que pode proporcionar o

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HENRY, Incarnation, pp. 69-74; 156-162.

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fértil encontro entre Teologia e Filosofia, também suscita um ferrenho confronto entre aqueles que a tomam como fundamento da própria vida (cristãos) e aqueles que a rejeitam de forma, diz ele, "incondicional"13. Vejamos os traços principais das duas antropologias, para percebemos os seus confrontos e desencontros, assim como alguma possibilidade de aproximação da verdade proclamada pelo cristianismo.

Que a antropologia grega seja dualista, isto é um conhecimento proclamado aos quatro ventos pela tradição filosófica e retomada pela reflexão teológica moderna. Lugar comum é também a percepção que temos de que este dualismo ultrapassou as fronteiras do mundo grego e penetrou na própria tradição cristã. Com certa razão se fala de uma helenização do cristianismo. Contudo, este não é nosso tema. Constatar o dualismo antropológico da filosofia grega deve nos levar a pensar concretamente a dificuldade encontrada pela tese cristã da encarnação para penetrar os corações e mentes helenizados. Com não menos razão, deve-nos fazer admirar a coragem dos primeiros convertidos e imaginar o impacto deste anúncio (Deus encarnado) em suas vidas. O dualismo grego encontra-se plasmado de forma brilhante em Platão, em uma de suas obras mais lidas. Trata-se do Fédon. Neste diálogo, Platão expõe aquilo que pode ser considerado como o duplo pilar do platonismo. Por um lado, desenvolve a Teoria das ideias, por outro, defende a tese da imortalidade da alma humana. Nesta visão platônica, o corpo é relegado ao mundo da ruína. Existe um logos imperecível que se situa para além da realidade sensível.

A imortalidade da alma humana está na contemplação constante deste logos imperecível, a contemplação do nous: " (...) Nenhuma alma que não tenha praticado a

filosofia e que não esteja absolutamente pura quando deixa o corpo pode alcançar a natureza divina; isso só se aplica ao que ama aprender."14. Vemos nessa citação elementos bastante interessantes para nossa análise. Primeiro, configura-se uma espécie de salvação no sentido grego da alma. A respeito disso Michel Henry traçará uma diferença fundamental, ao falar da possibilidade de uma salvação no sentido grego e da salvação em sentido cristão. Vemos, segundo o que Henry percebe da tradição filosófica, que se há alguma brecha para pensar algo como uma salvação no mundo grego, isto somente se daria pelo exercício da contemplação, via exercício filosófico do logos imutável, que habita em luz inacessível à carne. Contemplação, portanto, é a

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Cf. Ibid, p. 10.

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palavra de ordem quando pensamos algo como uma soteriologia no mundo grego15. Obviamente, a salvação, em sentido cristão, difere radicalmente daquela proposta por Platão no Fédon. Isso porque, enquanto a primeira despreza o corpo e toda a realidade sensível, a segunda faz da carne o eixo da própria salvação, como afirmavam os padres da Igreja. Assim, já se pode vislumbrar a incompatibilidade do conceito de corpo no mundo grego e no cristianismo. Antes de passar ao olhar antropológico do mundo semita plasmado na tradição bíblica, queremos voltar à citação precedente para fazermos nossa última observação. Assim como podemos ver uma preocupação de fundo, no que se refere ao alcance da imortalidade pela alma humana na psicologia platônica, da mesma forma também é possível vislumbrar uma outra perspectiva cara à nossa pesquisa. Esta diz respeito àquela que aborda o tema da contemplação da verdade. É inegável que esse pequeno trecho do Fédon contém o princípio da teoria do conhecimento em Platão. Aqui, nenhum conhecimento verdadeiro se dá fora da contemplação das essências. Por outro lado, o corpo não contempla coisa alguma e, portanto, nada pode conhecer. Em Platão, a sensibilidade está relegada ao plano da ignorância e da perdição16. Como pode então um grego aceitar a afirmação de que o Logos se faz carne?

A antropologia semita ou a noção do homem bíblico difundida por ela, apresenta traços bem distintos daquele apresentado pelo mundo grego. O homem criado por Deus aparece como um ser unitário, uma carne (basar) animada pelo sopro de vida (nichmat' haim)17 vindo de Deus. Não existe, portanto, separação entre alma e corpo, um princípio vital capaz de manter uma identidade separada do basar. A alma ou a psiché bíblica nada tem a ver com a psiché platônica. Existe, portanto, algo que poderíamos chamar de uma simpatia escriturística que une judaísmo e cristianismo em torno à concepção unitária do ser humano. Esta sintonia, porém, será colocada em questão quando se trata de pensar o tema da Encarnação. Também para a tradição bíblica a encarnação oferece problemas e dificuldades de ser aceita. E isso, segundo Henry, acontece por dois motivos: o primeiro deles tem a ver com a noção de um Deus criador, que, ao criar o

15

Cf. HENRY, Incarnation, p.12.

16

Por uma questão de tempo e delimitação passaremos de largo sobre a questão do debate entre Platão e Aristóteles e a valorização que este último dá à sensibilidade. Ainda assim, a filosofia Aristotélica, herdeira de Platão, ao discordar de sua postura sobre a realidade sensível, não introduz uma ruptura com sua visão dualista.

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mundo fora de si fica tão afastado dele como do homem. Esta ideia de um Deus transcendente, no sentido de separado, coloca sérios problemas na hora de pensar a Encarnação do Verbo. O segundo motivo tem a ver justamente, como diz nosso autor, com a mesma ideia de Encarnação. O Deus transcendente de Israel é um Deus ciumento, e entre as coisas das quais tem ciúmes está aquela que se refere ao seu caráter único: somente ele é transcendente, divino, e isto não partilha com ninguém. Trata-se de um ciúme ontológico18. Esse Deus ciumento da sua essência divina coloca em cheque a ideia cristã de um Verbo encarnado, e, aliás, coloca em questão, toda a doutrina sobre a Trindade. Acaso esse não é um dos conflitos patentes entre Cristianismo e Judaísmo? A dificuldade da cultura semita para pensar a encarnação a partir de sua antropologia e ideia de criação se apresenta de forma tão patente quanto ocorre no pensamento grego. Contudo, difere radicalmente deste último porque abre espaço para pensar o homem como um corpo de carne.

Retomando a distinção basilar entre nosso corpo de carne e os outros corpos do universo, cientes da dificuldade que supõe avançar na análise, damos, com Henry, um passo a mais ao afirmarmos nossa carne como lugar epistemológico por excelência. Assim diz nosso autor:

Não se trata de uma dificuldade técnica, mas de uma aporia metafísica [...]. Sem nossa carne a coisa da física, a coisa em si, o noumeno kantiano, permanecem desconhecidos. Longe de que a análise do corpo possa se converter no de nossa carne e no princípio, um dia, de sua explicação; a verdade é totalmente outra: somente nossa carne nos permite conhecer; nos limites prescritos por este suposto ineludível, algo assim como um corpo. Assim temos uma singular inversão: o homem que não sabe nada mais que não seja a experiência de todos os sofrimentos em sua carne ferida e pobre, provavelmente sabe mais que um espírito onisciente que tem seu lugar ao término

do desenvolvimento ideal da ciência.19

Esta afirmação da carne como lugar epistemológico toma como ponto de partida o tema principal da investigação henryriana: a encarnação no seu sentido Cristão. Este, por sua

18

CF. HENRY, Incarnation, p.14.

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vez, tem seu fundamento naquilo que Henry chamará de alucinante proposição de João: "O Verbo se fez carne" (Jo 1, 14). Assim sendo, a fenomenologia da carne, tal como a elucidação sistemática da carne e do corpo e sua possível inter-relação, apresenta-se como pré-requisito para o desenvolvimento de nossa pesquisa.

Pensando o tema da encarnação, Henry propõe uma inversão fenomenológica que resulta na suspensão da Fenomenologia do mundo e a adoção daquilo que chamaremos Fenomenologia da Vida. Trata-se aqui da busca por um ver originário, da construção de uma fenomenologia de cunho radical. Pensamos que, ao propor sua inversão fenomenológica, nosso autor opera também uma inversão epistemológica. Afirma assim que uma Fenomenologia do mundo não pode ser o princípio do conhecimento do homem e sua condição, uma vez que sob a luz do mundo somente aparecem corpos inertes, que nada sentem porque são desprovidos da capacidade de 'se sentir'. Desprovidos de carne, também esses corpos inertes e opacos permanecem alheios à questão do conhecimento. Somente uma Fenomenologia da Vida pode fornecer uma inteligibilidade que é, por sua vez, Primordial20. Esta Inteligibilidade primordial, ou Arqui-inteligibilidade, segundo a linguagem henryriana, levanta a questão de fundo não somente sobre o 'como' e o 'a partir de onde' se faz possível todo o conhecimento. Desponta-se também o tema de fundo de toda a Fenomenologia da Vida, a saber: a dimensão da Verdade e de sua constante busca.

2 A questão da verdade como busca fundamental de uma inteligibilidade Primordial

A partir do conceito das duas verdades, esboçado no pensamento de Henry, a saber: verdade do mundo e verdade do cristianismo, pretende-se pensar a Fenomenologia da Vida como uma legítima filosofia do cristianismo (ou como uma genuína reflexão que toca o mundo do pensamento teológico). Na medida em que, segundo a perspectiva fenomenológica do autor, a verdade do cristianismo difere essencialmente da verdade do mundo, impõe-se como necessária a elucidação destas duas fenomenologias. Nossa reflexão tomará como ponto de partida as análises fenomenológicas de Henry.

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Partindo da questão concreta do aparecer do mundo, avançaremos por meio da fenomenologia da carne na compreensão da proposta concreta de uma Fenomenologia da Vida, através da qual, nos propomos a desenvolver a reflexão teológica sobre a encarnação e a salvação em sentido Cristão. Desta forma, afirmamos que nosso discurso será de cunho antropológico-fundamental. A partir desta perspectiva antropológica basilar (questionamento sobre a verdade do mundo e a fenomenologia da carne - a questão da impressão), trataremos de pensar a verdade do cristianismo (cristologia-antropologia) desde a perspectiva da Fenomenologia da Vida. Portanto, nosso discurso gravitará em torno de conceitos centrais como: Verdade do mundo, Verdade do cristianismo, Autorevelação, Fenomenologia da Vida (carne impressiva).

2.1 A questão do aparecer e sua indigência ontológica

Antes de pensar concretamente a questão do aparecer, segundo a visão de nosso autor, convém relembrar ligeiramente a experiência fundamental da epistemologia platônica fundada a partir da teoria das ideias (Fédon). Na alegoria da caverna, Platão coloca em evidência a questão fenomenológica. A pergunta pela realidade do que aparece pode ser vislumbrada como o início de uma reflexão fenomenológica. Esta surge primeiramente do senso comum que se pergunta pela realidade do aparecer numa visão mais banal e, posteriormente, se estabelece enquanto disciplina que se pergunta pela origem do próprio aparecer ou pelas condições de possibilidade que fundam o aparecer. Seja como for, não se pode negar que a questão do aparecer se destaca como a reflexão básica da teoria do conhecimento de Platão. Há aí raízes de uma reflexão fenomenológica que haveria de florescer com maior vigor no nascimento da epistemologia moderna. A oposição platônica entre mundo inteligível e mundo sensível, o conflito latente entre verdade e aparência, tomando o último termo sempre em sentido negativo, coloca já em evidência a relação entre ser e aparecer, digo, entre ontologia e fenomenologia. No contexto da teoria das ideias de Platão, o fenômeno é relegado ao último plano, ao mundo das cópias, da irrealidade. A realidade não é o que aparece, verdade e realidade não se identificam com o fenômeno se este é pensado como sombra do mundo inteligível. Na epistemologia platônica, portanto, a ontologia funda a fenomenologia.

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fenomenologia na sua obra Na escola da fenomenologia, este autor discute a questão da fenomenologia rigorosa. Afirma que, seguindo a etimologia da palavra, qualquer pessoa que trate do aparecer das coisas está fazendo fenomenologia. Assim, ele dirá que a fenomenologia nasce quando se coloca em suspenso o ser das coisas para tratar do seu aparecer. Contudo, Ricoeur faz uma observação, dizendo que uma fenomenologia profunda brota quando esta distinção (ser - aparecer) é refletida por si mesma. Ao contrário, uma fenomenologia se torna banal quando o ato de "nascimento", que faz surgir o aparecer, não é tematizado. No segundo caso, para o autor, a fenomenologia se torna simples apresentação de opiniões21.

Ao iniciar sua reflexão fenomenológica sobre a tese que provoca sua investigação, a saber, a encarnação, Michel Henry o faz a partir de uma perspectiva que supõe, ela mesma, a análise fenomenológica do método, que, em si, leva este nome. Poderíamos dizer que faz antes uma reflexão fenomenológica sobre a fenomenologia e suas raízes. Assim sendo, a partir de Heidegger (§7 Ser e tempo), retoma a questão do objeto e do método da fenomenologia, através da análise semântica do próprio termo. Não nos interessa aqui reproduzir em detalhes o caminho de nosso autor. Exporemos somente as questões de cunho mais fundamental, exauridas por ele nesta empreitada. A conclusão imediata, tirada por Henry, ao se questionar, a partir de Husserl e Heidegger, sobre o objeto e o método da fenomenologia, será decisiva e diz respeito às bases sobre as quais se fundamenta a fenomenologia mesma, tal como a conhecemos. Trata-se da afirmação segundo a qual a fenomenologia tem a tarefa de estudar não o conteúdo dos diversos fenômenos, mas sua essência, o aparecer enquanto tal. Assim, temos a retomada da ideia de Husserl ao afirmar que a distinção entre o conteúdo do fenômeno e o modo no qual ele se nos dá, nos permite captar o verdadeiro objeto da fenomenologia. Com a afirmação de que o objeto da fenomenologia não é o fenômeno em si, mas o seu aparecer, funda-se a distinção basilar da fenomenologia em relação às outras disciplinas22.

No percurso feito por Henry, deparamo-nos uma vez mais com a questão fundamental acerca da verdade. Isto porque afirma de forma categórica em seu texto que entre os vários termos que concerne ao campo da fenomenologia (doação, manifestação, revelação, termos utilizados também pela teologia), a palavra "verdade",

21

RICOEUR. Paul. Na escola da fenomenologia. Petrópolis: vozes, 2009, p. 149.

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não somente remete ao verdadeiro objeto da fenomenologia, mas forma também seu núcleo principal. É a propósito disso que se falará de Verdade originária. Ao analisar fenomenologicamente a própria fenomenologia, o autor encontrará em seu caminho uma objeção quanto à forma da fenomenicidade daquilo que chamamos mundo. Trata-se, em linguagem henryriana, do tema complexo do que aqui chamaremos, segundo o próprio autor, de indigência ontológica do aparecer do mundo. Para chegar a abordar esta temática, de caráter extremamente delicado, o autor jogará sempre com o binômio fundamental de seu pensamento, a saber: Verdade do mundo e Verdade da Vida.

Constata-se simplesmente que existem, na linguagem fenomenológica, duas formas de se entender o que é verdadeiro. A primeira delas é filosófica ou pré-fenomenológica e a segunda, diz respeito à questão da compreensão do "aparecer" daquilo que aparece, a fenomenização do fenômeno. Observemos a citação abaixo:

Há duas formas de entender a verdade: uma pré-filosófica ou pré-fenomenológica na qual verdade designa aquilo que é verdadeiro ( ex.: o cachorro caminhando ou 2+5=7). Contudo, o que é verdadeiro desta forma deve primeiro aparecer. Assim sendo, não é verdadeiro mais que num sentido secundário e pressupõe uma verdade originária, uma manifestação primeira, um poder que funda o aparecer do cachorro ou da proposição aritmética23.

Fica deste modo estabelecido que a primeira concepção de verdade, fundada na acepção mais popular da compreensão de fenômeno ou fenomenologia, depende de uma verdade mais originária sobre a qual se fundam todos esses fenômenos ou verdades pré-filosóficas.

Henry, obviamente, reconhece, como todo fenomenólogo, o impressionante esforço daqueles que o precederam na reflexão fenomenológica (de forma especial Husserl e Heidegger). Contudo, afirma que, apesar de seus esforços para buscar a fundamentação de tudo aquilo que aparece, a questão fundamental do modo como aparece, permanece ainda indeterminada nas suas reflexões. A isso Henry chamará dos pressupostos indeterminados da fenomenologia. Discorrendo sobre esta questão, nosso autor proporá a seguinte análise:

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29 Um problema permanece, apesar do caminho feito por Husserl e Heidegger para chegar à verdade como o fenômeno mais originário (ou ao fenômeno mais originário da verdade?). Este problema consiste em que o aparecer puro ou que a fenomenicidade pura seja a condição de todo fenômeno possível. Situa-se este aparecer no núcleo da reflexão fenomenológica como seu verdadeiro objeto, mas não diz em que consiste este aparecer puro. Isto se refere à uma indigência ontológica do aparecer puro ou originário na fenomenologia de

Husserl e Heidegger.24

Para Michel Henry, no caso de Heidegger, ao pensar o "aparecer puro", como o fenômeno mais originário da verdade, e, principalmente, ao classificá-lo a partir da mesma categoria de fenômeno, deixa-se uma lacuna ontológica no que se refere à fundamentação mesma deste "aparecer puro". Em uma formulação mais simples podemos perguntar: o que funda ou onde se funda o "aparecer puro", qual é, segundo Henry, sua substância fenomenológica?

A questão crucial para Henry, ao tratar da indigência ontológica do aparecer se refere, pois, então à indeterminação inicial dos pressupostos fenomenológicos da mesma fenomenologia. Segundo Henry, esta indeterminação pode ser compreendida ao pensar a relação entre as duas verdades na filosofia de Heidegger. Assim temos, como descreve nosso autor, que na obra Ser e Tempo (§44), o filósofo alemão apresenta a verdade originária não somente como condição de possibilidade que funda a verdade segunda (o cachorro que vemos caminhar ou a proposição matemática), como também haverá de designar a verdade originária com o nome mesmo de fenômeno. Falar-nos-á, pois, então do fenômeno mais originário da verdade ou da verdade como o fenômeno mais originário. Em resumo, podemos dizer o mais originário é seu fenômeno. O que equivale a dizer que, segundo Henry, para Heidegger o aparecer não se limita somente a fazer "aparecer" o que aparece nele. Esta verdade originária, tem como o mais originário o fato de que ela mesma apareça. Assim, ele mesmo deve aparecer em qualidade de "aparecer puro". Daqui temos a proposição segundo a qual já não seria mais possível aparecer algo se, antes, seu "aparecer" não viesse ele mesmo, ou seja, não

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aparecesse, primordialmente, ele mesmo. A partir desta reflexão acerca do pensamento de Heidegger é que Michel Henry situa o problema da indigência ontológica do aparecer do mundo a partir da problemática da indeterminação inicial dos pressupostos fenomenológicos da fenomenologia. Assim temos a afirmação abaixo:

Assim, o "aparecer" que brilha em todo fenômeno é o fato de 'aparecer' e somente ele. Este "aparecer puro" que aparece, um 'aparecer do aparecer mesmo', seu 'auto-aparecer'. Contudo, se nos perguntamos por aquilo que, nesse aparecer puro, constitui sua aparição, sua substância fenomenológica pura, damo-nos conta que estamos frente a dois momentos nos textos analisados: no primeiro momento nos encontramos com uma não resposta. A aparição, a verdade, a fenomenicidade, se afirmam sem que se diga em que consistem. Os supostos ou as

bases da fenomenologia permanecem indeterminados.25

A não resposta frente à pergunta sobre o fundamento do "aparecer puro" constitui, como vimos a indeterminação inicial dos pressupostos fenomenológicos do "aparecer do mundo" que, por sua vez, refere-se diretamente à lacuna ontológica deste aparecer. Este é o primeiro dos momentos descritos por Henry ao analisar os textos heideggerianos. Fala-se contudo, na citação, de dois momentos relativos à esta constatação fundamental da indigência ontológica do mundo. Este segundo momento, não descrito na citação acima, refere-se, segundo nosso entendimento, àquilo que mais adiante nosso autor designará como a redução ruinosa de todo aparecer ao aparecer do mundo. Isto será tratado quando o autor se referir aos preconceitos ocultos dos princípios da

fenomenologia.26 Por sinal, este é nosso próximo tema.

Retomando o caminho, vamos recapitular os passos dados até agora por nossa reflexão. Lembramos que o propósito investigativo desta pesquisa tem como centro a explicitação do fundamento teológico presente na Fenomenologia da Vida de Michel Henry, que se encontra, ao nosso ver, resumida de forma magistral em suas últimas obras, que tratam de temas concretos do cristianismo. Para afrontar tal empreitada, pensamos ser indispensável a elucidação dos princípios filosóficos que levam o autor a propor aquilo que chamamos de guinada fenomenológica em seu pensamento. Dentro

25

Ibid, p.39.

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desta perspectiva, iniciamos centrando nossa atenção na tese que provoca a investigação, a saber: a questão da encarnação. Neste sentido, entendemos que o primeiro princípio filosófico acerca do qual devemos discorrer gira em torno do binômio fundamental no qual Henry sustenta toda sua tese da Fenomenologia da Vida. Este binômio se enuncia como a relação entre as duas verdades ou as duas formas de aparecer: Fenomenologia do mundo e Fenomenologia da Vida. Eis então, que a questão da verdade surge como o primeiro princípio filosófico objeto de nossa discussão nesta dissertação. Neste discurso, situamos a empreitada de nosso filósofo como uma constante busca pela verdade enquanto uma Inteligibilidade primordial, tema que trataremos mais tarde. Ao abordarmos o tema da verdade, não podemos deixar de fazer, como já sabemos, referência direta ao tema do como esta verdade se nos dá, como ela aparece. Eis aqui nossa posição discursiva atual. Analisando a questão do aparecer, desde a perspectiva henryriana, descobrimos uma falha ontológica nesta fenomenologia. Esta chamada indigência ontológica, como acima explicitamos, está naquilo que já denominamos, com nosso autor, de indeterminação das bases da fenomenologia. Esta significa a incapacidade de fundar a substância fenomenológica do "aparecer puro". Trata-se, por isso, da indeterminação dita "inicial" dos pressupostos fenomenológicos da própria fenomenologia. Dito de forma mais clara, poderíamos formular na seguinte questão: o que faz com que o aparecer apareça? Qual é o fundamento do "aparecer puro" já que ele, ao fundar as bases de um aparecer segundo, não se funda a si mesmo? Obviamente, se não se dá a si mesmo carece de algo, é um indigente. Passamos em seguida à análise mais detalhada da indeterminação das bases fenomenológicas da fenomenologia.

Analisando os três princípios fundamentais da fenomenologia, Michel Henry demonstrará, em seu discurso, como neles mesmos se encontram a indeterminação das bases ou pressupostos fenomenológicos da própria fenomenologia. O primeiro destes princípios assim se enuncia: "tanta aparência, tanto ser". Na reformulação de Henry: "

Tanto aparecer, tanto ser"27. Neste princípio, encontra-se destacada a relação fundamental entre ser-aparecer, entre ontologia e fenomenologia. Relação esta que não somente é cara à filosofia, mas que se encontra presente nos discursos mais basilares do senso comum. De fato, para o senso comum, o ser funda o aparecer, a coisa aparece

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porque ela é; a ontologia funda a fenomenologia. A partir da pergunta estrategicamente situada sobre a possibilidade de existência desse mundo prévio. Pergunta que colocará em xeque sua capacidade de auto-sustentação. Dito de melhor forma, que indagará sua independência de uma verdade mais originária, em palavras heideggerianas, do parecer puro que, "aparecendo ele mesmo", funda todo aparecer possível deste mundo. Constatamos que a fenomenologia faz, de fato, o caminho oposto do senso comum. Afirma, portanto, que para que a "coisa seja" ela deve primeiro aparecer. Temos então, certa identidade entre aparecer e ser. Vejamos literalmente o texto:

A fenomenologia está atenta, em primeiro lugar, ao poder desta correlação, e esta é a razão pela qual lerá a mesma no sentido oposto. Basta que alguma coisa me apareça para que, então, seja. Aparecer é o mesmo que ser [...] A aparição de uma imagem é certa, mas consegue esta certeza não do seu conteúdo particular, mas do fato que apareça. Assim, do aparecer depende

toda existência, todo ser possível.28

Ao fazer o caminho inverso do senso comum, afirmando a existência ou o ser das coisas a partir de sua fenomenicidade, de sua aparição, a fenomenologia funda a ontologia: tanto aparecer-tanto ser. Contudo, a respeito desta pretensa identidade entre ontologia e fenomenologia o autor mesmo afirmará de maneira categórica:

Apesar desta suposta identidade de sua essência, aparecer e ser de modo algum se situam num mesmo plano; sua dignidade não é a mesma: o aparecer é tudo, o ser é nada. Ou melhor: o ser somente é porque o aparecer aparece enquanto tal. A identidade entre aparecer e ser se resume assim: o segundo se funda no primeiro.29

Temos então que o ser está fundado sobre o aparecer. Para Henry, está claro que existe somente um 'Poder'. Este, outra coisa não é que o 'Poder' do aparecer. Por isso, diz: "O ser só consegue sua essência no aparecer que previamente efetuou sua essência

nele; a essência do aparecer que reside em sua aparição efetiva, em sua

28

Ibid, p. 42.

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aparição"30. Sobre a importância e o limite deste primeiro princípio, diremos o que se segue. Sua relevância está na subordinação da ontologia à fenomenologia. Contudo, vale a pena ressaltar que para Henry esta subordinação não significa em absoluto o menoscabo da ontologia. Pelo contrário, o que se quer é possibilitar-lhe um fundamento seguro. Por outro lado, o limite radica justamente na sua indeterminação fenomenológica fundamental. Esta ocorre quando tal princípio nomeia o aparecer sem dizer em que este consiste, no como aparece o aparecer. Ao não reconhecer a matéria fenomenológica pura da qual deve estar feito todo aparecer na medida que diz que é ele quem aparece, a pretensão de substituir uma ontologia especulativa por uma ontologia fenomenológica cai por terra. Assim, limita-se a designar o aparecer desde o exterior, ao invés de escrutar sua substância. Segundo Henry, dispomos, portanto, somente de um conceito formal do mesmo31.

O segundo princípio da fenomenologia se enuncia da seguinte maneira: "ir às

coisas mesmas". Ir à coisa mesma significa eliminar interpretações prévias, abordar os

dados de forma imediata, ou, como diz Henry, em sua "imediatez". A partir deste enunciado se volta a discutir o objeto e o método da fenomenologia. Segundo nossa definição anterior, ao pensarmos o objeto da fenomenologia, nos daremos conta que "ir à coisa mesma" da fenomenologia significa ir ao aparecer puro, ir, não ao conteúdo do que aparece, mas à fenomenicidade pura. E, segundo Henry, ao pensarmos o percurso que devemos fazer para chegar a esta fenomenicidade pura, descobriremos que o caminho é esta mesma fenomenicidade, o caminho é o "aparecer mesmo", dito de outra forma, o auto-aparecer. Temos então uma identificação entre objeto e método na fenomenologia, já que, para ir ao 'aparecer puro', não temos outro caminho que este mesmo aparecer. O objeto constitui o método fenomenológico. Assim, podemos afirmar, neste contexto específico, que todo conhecimento ou toda forma de experiência remetem necessariamente ao a priori de um poder de conhecimento. Toda experiência traz em si mesma o método de acesso a ela. E Henry se pergunta se acaso não é esta condição a priori de toda experiência possível que Kant converteu no tema da sua filosofia. A partir desta concepção, ficaria excluída qualquer possibilidade de conceber então um inteligível que escapa a toda condição prévia, uma inteligibilidade situada ao princípio e condição de toda inteligibilidade, na linguagem henryriana, uma

30

Cf. Idem.

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inteligibilidade, talvez análoga à de João32. Desde esta perspectiva, entende-se melhor o porquê de Kant pensar sua filosofia a partir de duas críticas. Na fenomenologia, pensada neste horizonte de redução, não há lugar para pensar uma Inteligibilidade Primordial que escape à fenomenicidade tal qual é concebida aqui. Parece-nos importante ressaltar que esta arqui-inteligibilidade (Inteligibilidade primordial) pensada por Henry, busca, no fundo, dar uma resposta à questão da indeterminação dos pressupostos fenomenológicos da fenomenologia. Por isso, pensamos que a inversão fenomenológica é também epistemológica.

Por fim, chegamos ao terceiro princípio, dito o princípio dos princípios, assim ele é enunciado no §24 de Ideen I: "toda intuição em que se dá algo originalmente é um

fundamento de direito do conhecimento"33. A partir daqui, Henry se pronuncia sobre o preconceito oculto que subjaz a estes três princípios da fenomenologia. Para ele, este preconceito oculto se refere à redução catastrófica de todo aparecer ao aparecer do mundo. Temos, pois, então, que, segundo Henry, a redução de todo aparecer ao aparecer do mundo traz duas conseqüências imediatas: a primeira delas se refere ao impedimento do acesso ao cristianismo. Isto porque, neste padrão de inteligibilidade, não é possível pensar nenhuma Inteligibilidade primordial tal como é proposta pelos cristãos. A segunda consequência é o obscurecimento da própria filosofia, diz ele: "antes mesmo de chegar à fenomenologia"34. Em Husserl esta redução se encontra esboçada neste terceiro princípio, chamado, como vimos, o princípio dos princípios. Nele, afirma-se a tese segundo a qual 'toda intuição em que se dá algo originariamente é um fundamento de direito do conhecimento'. Acontece que a intuição deve à intencionalidade seu 'poder' fenomenológico de instituir a condição de fenômeno. E esta intencionalidade, como estrutura da consciência, funda todo “ver” concebível pelo seu movimento em direção ao objeto transcendente (correlato intencional). Contudo, ela não se funda a si mesma, não se dá a si mesmo porque se dirige sempre para um "fora de si " . E é este “dirigir-se para um fora” o que constitui sua essência. Por não fundar-se a si mesma, a intencionalidade, ou esta Fenomenologia do mundo, cai numa indigência ontológica, o que prova então sua perspectiva reducionista ao conceber todo “ver-aparecer” como ver intencional, sendo somente o “ver-“ver-aparecer” do mundo. Isto é o que Henry denominará o preconceito oculto dos pressupostos da fenomenologia, esboçado

32

Cf. Ibid, p. 46. 33

No fundo, este terceiro princípio explicita ainda mais a reflexão anterior que afirma que toda experiência traz em si mesma o método de acesso a ela.

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