CAPÍTULO 2: FENOMENOLOGIA DA VIDA E CRISTIANISMO: A
2.3 O Deus relação: perspectiva trinitária
Nosso discurso cairia num vazio de sentido teológico se a Fenomenologia de Cristo não nos conduzisse a pensar, necessariamente, uma perspectiva trinitária. Contudo, este panorama fundamental, que não deve ser negligenciado, tampouco pode ser compreendido apenas como um tópico importante. A doutrina trinitária emerge da profundidade da contemplação do mistério da encarnação168. Trata-se, portanto, da mesma Fenomenologia de Cristo, que ao se manifestar, revela-nos um Deus que se dá como Pai-Filho-Espírito. Neste sentido, Jesus se nos faz presente ou se manifesta como
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Mais adiante trabalharemos a polêmica questão da distinção fenomenológica entre geração-criação e nascimento em Michel Henry.
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Ibid, p.80.
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Cf. DEI VERBUM, n.4, p.123.
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sendo, por excelência, a relação. Pela conjuntura e objetivo da mesma pesquisa, não temos possibilidades de tratar com profundidade nesta dissertação este tema. Assim sendo, justificamos que apenas visamos ressaltar que, do nosso ponto de vista, o discurso henryriano sobre a perspectiva trinitária, embora não seja explícito, efetivamente se faz patente. Observemos a citação abaixo:
Alheio à verdade do mundo, o conteúdo do cristianismo consiste numa rede de relações transcendentes que podemos formular assim: relação da Vida absoluta com o Primeiro vivente (do Pai com o Filho-de-Deus, com Cristo), relação da Vida absoluta com todos os viventes (Deus com todos os homens), relação do Filho com os filhos (Cristo com os homens), relação dos filhos (homens entre si) que chamamos
em filosofia de intersubjetividade169.
Esta "rede de relações transcendentes", da qual nos fala o autor, que é elemento fundamental em nossa fé, acaso não constitui apenas outra forma de discurso sobre a Fenomenologia de Cristo que nos conduz necessariamente à revelação de um Deus relação? Em linguagem mais dogmática, tudo isto não pode ser compreendido como outra forma de anunciar o mistério da Trindade?
Como em outra ocasião dissemos, Michel Henry não desenvolve explicitamente uma reflexão sobre a Trindade. Não obstante, as palavras de Miguel García-Baró, em sua apresentação do livro "Palavras de Cristo", manifestam-se cheias de sentido ao anunciar: "A teologia de Henry está tão cheia do Espírito que apenas se refere ao Pai e
ao Filho"170. De fato, mesmo não desenvolvendo uma reflexão sistemática sobre o tema, ousamos dizer que se existe uma teologia em Henry (o que efetivamente para nós aparece de forma indubitável), esta se encontra irremediavelmente imbuída da fé trinitária. Todo seu discurso sobre a geração da Vida em si mesma, enquanto Primeiro vivente, remete-nos ao pensamento teológico sobre a pericorese. De forma magistral, através de categorias próprias, como por exemplo, a da interioridade recíproca ou aquela que se refere à ilusão transcendental do ego, o autor apalpa temas clássicos da discussão teológica como a questão da noção de tempo-eternidade ou mesmo o tema da Graça. Alias, o pensamento henryriano é realmente gracioso, é ele mesmo uma dádiva.
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HENRY, C'est moi la vérité, pp. 80-81.
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A partir da Fenomenologia da Vida, como reflexão que se apoia definitivamente no anúncio cristão, faz-se possível repensar categorias clássicas tais como: a de natureza,
pessoa, communicatio idiomatum (comunicação de idiomas) etc. Todavia, este não é o
foco de nossa empreitada.
Dizemos, pois então, que a Fenomenologia de Cristo é, por excelência, Fenomenologia da Vida. De fato, entre Cristo e Vida não existe nenhuma alteridade (Jo 1,4; 14,6). A identificação entre estas duas fenomenologias, Cristo-Vida, lançar-nos-á ao campo da revelação sobre nossa humanidade. Isto significa dizer que as duas fenomenologias revelam, concretamente, algo sobre nossa condição humana. Porém, o que exatamente dizem? Elas se referem à natureza da nossa relação com o mistério inefável de Deus, ou seja, da Vida e de Cristo. Rahner compreende isto quando aborda o tema da possibilidade da divinização. Daí brota a afirmação absurda, para a Fenomenologia do mundo, de que o doador, sendo ele mesmo o próprio dom, se coloca, também, como o fundamento da acolhida deste dom. Esta autocomunicação da Vida de Deus possui, para Rahner, "efeitos divinizantes". Diríamos, esta autocomunicação possui efeito soteriológico. Não é por acaso que o título dessa seção trata da Fenomenologia de Cristo enquanto função soteriológica. Pois, na percepção da Vida que se manifesta em nós, enquanto atualização dos poderes de nossa carne, encontra-se a possibilidade da nossa salvação em Cristo, a Arqui-carne, o Filho primordial, o salvador171.
Pensando um pouco mais a partir de Rahner, em diálogo com Henry, chamamos a atenção para a dupla observação que o teólogo alemão faz em sua introdução sobre a doutrina trinitária. A primeira diz respeito à linguagem. Neste sentido afirma:
O vocabulário que a Igreja utilizou nos inícios em uma teologia extraordinariamente vigorosa e no esforço de compreensão conceitual continuou tendo sua história [...] pode muito bem ocorrer de determinada palavra vir a assumir conteúdo que no mínimo acarreta o risco de que insira um sentido falso e
mitológico não mais aceitável.172
171
Cf. RAHNER. Curso fundamental da fé, pp. 147-157.
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Com tal afirmação Rahner aponta o limite da linguagem teológica que, situada sempre nas coordenadas culturais de um tempo-espaço, não pode dizer, definitivamente, aquilo que pretende dizer. Isto quer significar também que a reflexão sobre o dogma não realizou a atualização linguística necessária. Assim, somos lançados em direção à seguinte situação: ao tentarmos comunicar a mensagem cristã nos deparamos com o paradoxo de que nossa linguagem corre o risco de ser incapaz de apontar sequer a direção da mensagem que queremos comunicar.
A segunda observação diz respeito à teoria psicológica da explicação trinitária. Aqui se expressa a famosa asserção que afirma: a "Trindade econômica é a Trindade
imanente". A preocupação do autor é resgatar um fazer teológico que tenha seu ponto de
partida na revelação de Deus em Jesus Cristo. Neste sentido, advoga-se que a doutrina trinitária, entendida a partir de Cristo, é uma consequência da própria história da salvação. Portanto, partindo de um movimento ascendente, da nossa experiência do Cristo, percebemos que Deus se revela em seu Filho, pela ação do Espírito, como Pai173. Diríamos, como que em metáfora, através deste movimento ascendente, da fé em Cristo, percebemos o movimento condescendente de Deus que se nos dá como Pai, em seu Filho, mediante a ação do Espírito. Tudo isto que é afirmado por Rahner é dito também pela Fenomenologia da Vida de Henry, ainda que não possua efetivamente uma abordagem direta sobre a doutrina trinitária. Talvez não o tenha feito por falta de tempo, ou simplesmente para fugir ao tema da linguagem dogmática tradicional.
Para Henry, a Vida disse tudo ao se dizer no Filho. Ao se dizer em sua Palavra encarnada, a Vida disse mesmo uma Palavra cheia de Espírito. O "Eu sou a Verdade", dito pelo Cristo, não pode ser entendido sem a ação do Paráclito, aludido no v. 17 do mesmo capítulo 14 de João. O Espírito da Verdade, e ressaltamos aqui a identificação entre Verdade e Cristo, é enviado pelo Pai a pedido do Filho: "eu rogarei ao Pai e ele
vos dará outro Paráclito, para que convosco permaneça para sempre, o Espírito da Verdade, que o mundo não pode acolher, porque não o vê nem o conhece. Vós o conheceis, porque permanece convosco. (Jo 14,16-17). O que permanece conosco que o
mundo não pode conhecer? Aquilo que é alheio ao mundo, a própria Vida de Deus, imanente em nossa carne. Este texto de São João se apresenta, simultaneamente, como introdução e conclusão magistral da Fenomenologia da Vida. Trata-se de uma narração, efetivamente trinitária, tal como o pensamento sobre a manifestação da Vida de nosso
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fenomenólogo. Visto que toda autorrevelação de Deus descortina o horizonte para a própria revelação sobre o homem, passamos agora ao discurso sobre nossa condição humana primordial, na tentativa de vislumbrar uma antropologia fundamental.