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CAPÍTULO 1: A VIRADA FENOMENOLÓGICA: PRESSUPOSTOS

2.1 A questão do aparecer e sua indigência ontológica

Partindo da questão concreta do aparecer do mundo, avançaremos por meio da fenomenologia da carne na compreensão da proposta concreta de uma Fenomenologia da Vida, através da qual, nos propomos a desenvolver a reflexão teológica sobre a encarnação e a salvação em sentido Cristão. Desta forma, afirmamos que nosso discurso será de cunho antropológico-fundamental. A partir desta perspectiva antropológica basilar (questionamento sobre a verdade do mundo e a fenomenologia da carne - a questão da impressão), trataremos de pensar a verdade do cristianismo (cristologia-antropologia) desde a perspectiva da Fenomenologia da Vida. Portanto, nosso discurso gravitará em torno de conceitos centrais como: Verdade do mundo, Verdade do cristianismo, Autorevelação, Fenomenologia da Vida (carne impressiva).

2.1 A questão do aparecer e sua indigência ontológica

Antes de pensar concretamente a questão do aparecer, segundo a visão de nosso autor, convém relembrar ligeiramente a experiência fundamental da epistemologia platônica fundada a partir da teoria das ideias (Fédon). Na alegoria da caverna, Platão coloca em evidência a questão fenomenológica. A pergunta pela realidade do que aparece pode ser vislumbrada como o início de uma reflexão fenomenológica. Esta surge primeiramente do senso comum que se pergunta pela realidade do aparecer numa visão mais banal e, posteriormente, se estabelece enquanto disciplina que se pergunta pela origem do próprio aparecer ou pelas condições de possibilidade que fundam o aparecer. Seja como for, não se pode negar que a questão do aparecer se destaca como a reflexão básica da teoria do conhecimento de Platão. Há aí raízes de uma reflexão fenomenológica que haveria de florescer com maior vigor no nascimento da epistemologia moderna. A oposição platônica entre mundo inteligível e mundo sensível, o conflito latente entre verdade e aparência, tomando o último termo sempre em sentido negativo, coloca já em evidência a relação entre ser e aparecer, digo, entre ontologia e fenomenologia. No contexto da teoria das ideias de Platão, o fenômeno é relegado ao último plano, ao mundo das cópias, da irrealidade. A realidade não é o que aparece, verdade e realidade não se identificam com o fenômeno se este é pensado como sombra do mundo inteligível. Na epistemologia platônica, portanto, a ontologia funda a fenomenologia.

Fazendo um enxerto em nossa reflexão, parece-nos conveniente explicitar rapidamente a ideia de fenomenologia que aparece em Paul Ricoeur. Definindo a

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fenomenologia na sua obra Na escola da fenomenologia, este autor discute a questão da fenomenologia rigorosa. Afirma que, seguindo a etimologia da palavra, qualquer pessoa que trate do aparecer das coisas está fazendo fenomenologia. Assim, ele dirá que a fenomenologia nasce quando se coloca em suspenso o ser das coisas para tratar do seu aparecer. Contudo, Ricoeur faz uma observação, dizendo que uma fenomenologia profunda brota quando esta distinção (ser - aparecer) é refletida por si mesma. Ao contrário, uma fenomenologia se torna banal quando o ato de "nascimento", que faz surgir o aparecer, não é tematizado. No segundo caso, para o autor, a fenomenologia se torna simples apresentação de opiniões21.

Ao iniciar sua reflexão fenomenológica sobre a tese que provoca sua investigação, a saber, a encarnação, Michel Henry o faz a partir de uma perspectiva que supõe, ela mesma, a análise fenomenológica do método, que, em si, leva este nome. Poderíamos dizer que faz antes uma reflexão fenomenológica sobre a fenomenologia e suas raízes. Assim sendo, a partir de Heidegger (§7 Ser e tempo), retoma a questão do objeto e do método da fenomenologia, através da análise semântica do próprio termo. Não nos interessa aqui reproduzir em detalhes o caminho de nosso autor. Exporemos somente as questões de cunho mais fundamental, exauridas por ele nesta empreitada. A conclusão imediata, tirada por Henry, ao se questionar, a partir de Husserl e Heidegger, sobre o objeto e o método da fenomenologia, será decisiva e diz respeito às bases sobre as quais se fundamenta a fenomenologia mesma, tal como a conhecemos. Trata-se da afirmação segundo a qual a fenomenologia tem a tarefa de estudar não o conteúdo dos diversos fenômenos, mas sua essência, o aparecer enquanto tal. Assim, temos a retomada da ideia de Husserl ao afirmar que a distinção entre o conteúdo do fenômeno e o modo no qual ele se nos dá, nos permite captar o verdadeiro objeto da fenomenologia. Com a afirmação de que o objeto da fenomenologia não é o fenômeno em si, mas o seu aparecer, funda-se a distinção basilar da fenomenologia em relação às outras disciplinas22.

No percurso feito por Henry, deparamo-nos uma vez mais com a questão fundamental acerca da verdade. Isto porque afirma de forma categórica em seu texto que entre os vários termos que concerne ao campo da fenomenologia (doação, manifestação, revelação, termos utilizados também pela teologia), a palavra "verdade",

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RICOEUR. Paul. Na escola da fenomenologia. Petrópolis: vozes, 2009, p. 149.

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não somente remete ao verdadeiro objeto da fenomenologia, mas forma também seu núcleo principal. É a propósito disso que se falará de Verdade originária. Ao analisar fenomenologicamente a própria fenomenologia, o autor encontrará em seu caminho uma objeção quanto à forma da fenomenicidade daquilo que chamamos mundo. Trata-se, em linguagem henryriana, do tema complexo do que aqui chamaremos, segundo o próprio autor, de indigência ontológica do aparecer do mundo. Para chegar a abordar esta temática, de caráter extremamente delicado, o autor jogará sempre com o binômio fundamental de seu pensamento, a saber: Verdade do mundo e Verdade da Vida.

Constata-se simplesmente que existem, na linguagem fenomenológica, duas formas de se entender o que é verdadeiro. A primeira delas é filosófica ou pré-fenomenológica e a segunda, diz respeito à questão da compreensão do "aparecer" daquilo que aparece, a fenomenização do fenômeno. Observemos a citação abaixo:

Há duas formas de entender a verdade: uma pré-filosófica ou pré-fenomenológica na qual verdade designa aquilo que é verdadeiro ( ex.: o cachorro caminhando ou 2+5=7). Contudo, o que é verdadeiro desta forma deve primeiro aparecer. Assim sendo, não é verdadeiro mais que num sentido secundário e pressupõe uma verdade originária, uma manifestação primeira, um poder que funda o aparecer do cachorro ou da proposição aritmética23.

Fica deste modo estabelecido que a primeira concepção de verdade, fundada na acepção mais popular da compreensão de fenômeno ou fenomenologia, depende de uma verdade mais originária sobre a qual se fundam todos esses fenômenos ou verdades pré-filosóficas.

Henry, obviamente, reconhece, como todo fenomenólogo, o impressionante esforço daqueles que o precederam na reflexão fenomenológica (de forma especial Husserl e Heidegger). Contudo, afirma que, apesar de seus esforços para buscar a fundamentação de tudo aquilo que aparece, a questão fundamental do modo como aparece, permanece ainda indeterminada nas suas reflexões. A isso Henry chamará dos pressupostos indeterminados da fenomenologia. Discorrendo sobre esta questão, nosso autor proporá a seguinte análise:

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29 Um problema permanece, apesar do caminho feito por Husserl e Heidegger para chegar à verdade como o fenômeno mais originário (ou ao fenômeno mais originário da verdade?). Este problema consiste em que o aparecer puro ou que a fenomenicidade pura seja a condição de todo fenômeno possível. Situa-se este aparecer no núcleo da reflexão fenomenológica como seu verdadeiro objeto, mas não diz em que consiste este aparecer puro. Isto se refere à uma indigência ontológica do aparecer puro ou originário na fenomenologia de

Husserl e Heidegger.24

Para Michel Henry, no caso de Heidegger, ao pensar o "aparecer puro", como o fenômeno mais originário da verdade, e, principalmente, ao classificá-lo a partir da mesma categoria de fenômeno, deixa-se uma lacuna ontológica no que se refere à fundamentação mesma deste "aparecer puro". Em uma formulação mais simples podemos perguntar: o que funda ou onde se funda o "aparecer puro", qual é, segundo Henry, sua substância fenomenológica?

A questão crucial para Henry, ao tratar da indigência ontológica do aparecer se refere, pois, então à indeterminação inicial dos pressupostos fenomenológicos da mesma fenomenologia. Segundo Henry, esta indeterminação pode ser compreendida ao pensar a relação entre as duas verdades na filosofia de Heidegger. Assim temos, como descreve nosso autor, que na obra Ser e Tempo (§44), o filósofo alemão apresenta a verdade originária não somente como condição de possibilidade que funda a verdade segunda (o cachorro que vemos caminhar ou a proposição matemática), como também haverá de designar a verdade originária com o nome mesmo de fenômeno. Falar-nos-á, pois, então do fenômeno mais originário da verdade ou da verdade como o fenômeno mais originário. Em resumo, podemos dizer o mais originário é seu fenômeno. O que equivale a dizer que, segundo Henry, para Heidegger o aparecer não se limita somente a fazer "aparecer" o que aparece nele. Esta verdade originária, tem como o mais originário o fato de que ela mesma apareça. Assim, ele mesmo deve aparecer em qualidade de "aparecer puro". Daqui temos a proposição segundo a qual já não seria mais possível aparecer algo se, antes, seu "aparecer" não viesse ele mesmo, ou seja, não

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aparecesse, primordialmente, ele mesmo. A partir desta reflexão acerca do pensamento de Heidegger é que Michel Henry situa o problema da indigência ontológica do aparecer do mundo a partir da problemática da indeterminação inicial dos pressupostos fenomenológicos da fenomenologia. Assim temos a afirmação abaixo:

Assim, o "aparecer" que brilha em todo fenômeno é o fato de 'aparecer' e somente ele. Este "aparecer puro" que aparece, um 'aparecer do aparecer mesmo', seu 'auto-aparecer'. Contudo, se nos perguntamos por aquilo que, nesse aparecer puro, constitui sua aparição, sua substância fenomenológica pura, damo-nos conta que estamos frente a dois momentos nos textos analisados: no primeiro momento nos encontramos com uma não resposta. A aparição, a verdade, a fenomenicidade, se afirmam sem que se diga em que consistem. Os supostos ou as

bases da fenomenologia permanecem indeterminados.25

A não resposta frente à pergunta sobre o fundamento do "aparecer puro" constitui, como vimos a indeterminação inicial dos pressupostos fenomenológicos do "aparecer do mundo" que, por sua vez, refere-se diretamente à lacuna ontológica deste aparecer. Este é o primeiro dos momentos descritos por Henry ao analisar os textos heideggerianos. Fala-se contudo, na citação, de dois momentos relativos à esta constatação fundamental da indigência ontológica do mundo. Este segundo momento, não descrito na citação acima, refere-se, segundo nosso entendimento, àquilo que mais adiante nosso autor designará como a redução ruinosa de todo aparecer ao aparecer do mundo. Isto será tratado quando o autor se referir aos preconceitos ocultos dos princípios da

fenomenologia.26 Por sinal, este é nosso próximo tema.

Retomando o caminho, vamos recapitular os passos dados até agora por nossa reflexão. Lembramos que o propósito investigativo desta pesquisa tem como centro a explicitação do fundamento teológico presente na Fenomenologia da Vida de Michel Henry, que se encontra, ao nosso ver, resumida de forma magistral em suas últimas obras, que tratam de temas concretos do cristianismo. Para afrontar tal empreitada, pensamos ser indispensável a elucidação dos princípios filosóficos que levam o autor a propor aquilo que chamamos de guinada fenomenológica em seu pensamento. Dentro

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Ibid, p.39.

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desta perspectiva, iniciamos centrando nossa atenção na tese que provoca a investigação, a saber: a questão da encarnação. Neste sentido, entendemos que o primeiro princípio filosófico acerca do qual devemos discorrer gira em torno do binômio fundamental no qual Henry sustenta toda sua tese da Fenomenologia da Vida. Este binômio se enuncia como a relação entre as duas verdades ou as duas formas de aparecer: Fenomenologia do mundo e Fenomenologia da Vida. Eis então, que a questão da verdade surge como o primeiro princípio filosófico objeto de nossa discussão nesta dissertação. Neste discurso, situamos a empreitada de nosso filósofo como uma constante busca pela verdade enquanto uma Inteligibilidade primordial, tema que trataremos mais tarde. Ao abordarmos o tema da verdade, não podemos deixar de fazer, como já sabemos, referência direta ao tema do como esta verdade se nos dá, como ela aparece. Eis aqui nossa posição discursiva atual. Analisando a questão do aparecer, desde a perspectiva henryriana, descobrimos uma falha ontológica nesta fenomenologia. Esta chamada indigência ontológica, como acima explicitamos, está naquilo que já denominamos, com nosso autor, de indeterminação das bases da fenomenologia. Esta significa a incapacidade de fundar a substância fenomenológica do "aparecer puro". Trata-se, por isso, da indeterminação dita "inicial" dos pressupostos fenomenológicos da própria fenomenologia. Dito de forma mais clara, poderíamos formular na seguinte questão: o que faz com que o aparecer apareça? Qual é o fundamento do "aparecer puro" já que ele, ao fundar as bases de um aparecer segundo, não se funda a si mesmo? Obviamente, se não se dá a si mesmo carece de algo, é um indigente. Passamos em seguida à análise mais detalhada da indeterminação das bases fenomenológicas da fenomenologia.

Analisando os três princípios fundamentais da fenomenologia, Michel Henry demonstrará, em seu discurso, como neles mesmos se encontram a indeterminação das bases ou pressupostos fenomenológicos da própria fenomenologia. O primeiro destes princípios assim se enuncia: "tanta aparência, tanto ser". Na reformulação de Henry: "

Tanto aparecer, tanto ser"27. Neste princípio, encontra-se destacada a relação fundamental entre ser-aparecer, entre ontologia e fenomenologia. Relação esta que não somente é cara à filosofia, mas que se encontra presente nos discursos mais basilares do senso comum. De fato, para o senso comum, o ser funda o aparecer, a coisa aparece

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Cf. Ibid, p.41. Princípio tomado por Husserl da escola de Marburgo. O autor faz uma observação ao preferir em seu texto a reformulação deste primeiro princípio. Esta se deve ao caráter ambíguo da palavra "aparência" que, segundo Henry, pode levar-nos a entender tanto o conteúdo daquilo que aparece quanto ao modo como tal ou qual coisa aparece.

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porque ela é; a ontologia funda a fenomenologia. A partir da pergunta estrategicamente situada sobre a possibilidade de existência desse mundo prévio. Pergunta que colocará em xeque sua capacidade de auto-sustentação. Dito de melhor forma, que indagará sua independência de uma verdade mais originária, em palavras heideggerianas, do parecer puro que, "aparecendo ele mesmo", funda todo aparecer possível deste mundo. Constatamos que a fenomenologia faz, de fato, o caminho oposto do senso comum. Afirma, portanto, que para que a "coisa seja" ela deve primeiro aparecer. Temos então, certa identidade entre aparecer e ser. Vejamos literalmente o texto:

A fenomenologia está atenta, em primeiro lugar, ao poder desta correlação, e esta é a razão pela qual lerá a mesma no sentido oposto. Basta que alguma coisa me apareça para que, então, seja. Aparecer é o mesmo que ser [...] A aparição de uma imagem é certa, mas consegue esta certeza não do seu conteúdo particular, mas do fato que apareça. Assim, do aparecer depende

toda existência, todo ser possível.28

Ao fazer o caminho inverso do senso comum, afirmando a existência ou o ser das coisas a partir de sua fenomenicidade, de sua aparição, a fenomenologia funda a ontologia: tanto aparecer-tanto ser. Contudo, a respeito desta pretensa identidade entre ontologia e fenomenologia o autor mesmo afirmará de maneira categórica:

Apesar desta suposta identidade de sua essência, aparecer e ser de modo algum se situam num mesmo plano; sua dignidade não é a mesma: o aparecer é tudo, o ser é nada. Ou melhor: o ser somente é porque o aparecer aparece enquanto tal. A identidade entre aparecer e ser se resume assim: o segundo se funda no primeiro.29

Temos então que o ser está fundado sobre o aparecer. Para Henry, está claro que existe somente um 'Poder'. Este, outra coisa não é que o 'Poder' do aparecer. Por isso, diz: "O ser só consegue sua essência no aparecer que previamente efetuou sua essência

nele; a essência do aparecer que reside em sua aparição efetiva, em sua

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Ibid, p. 42.

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aparição"30. Sobre a importância e o limite deste primeiro princípio, diremos o que se segue. Sua relevância está na subordinação da ontologia à fenomenologia. Contudo, vale a pena ressaltar que para Henry esta subordinação não significa em absoluto o menoscabo da ontologia. Pelo contrário, o que se quer é possibilitar-lhe um fundamento seguro. Por outro lado, o limite radica justamente na sua indeterminação fenomenológica fundamental. Esta ocorre quando tal princípio nomeia o aparecer sem dizer em que este consiste, no como aparece o aparecer. Ao não reconhecer a matéria fenomenológica pura da qual deve estar feito todo aparecer na medida que diz que é ele quem aparece, a pretensão de substituir uma ontologia especulativa por uma ontologia fenomenológica cai por terra. Assim, limita-se a designar o aparecer desde o exterior, ao invés de escrutar sua substância. Segundo Henry, dispomos, portanto, somente de um conceito formal do mesmo31.

O segundo princípio da fenomenologia se enuncia da seguinte maneira: "ir às

coisas mesmas". Ir à coisa mesma significa eliminar interpretações prévias, abordar os

dados de forma imediata, ou, como diz Henry, em sua "imediatez". A partir deste enunciado se volta a discutir o objeto e o método da fenomenologia. Segundo nossa definição anterior, ao pensarmos o objeto da fenomenologia, nos daremos conta que "ir à coisa mesma" da fenomenologia significa ir ao aparecer puro, ir, não ao conteúdo do que aparece, mas à fenomenicidade pura. E, segundo Henry, ao pensarmos o percurso que devemos fazer para chegar a esta fenomenicidade pura, descobriremos que o caminho é esta mesma fenomenicidade, o caminho é o "aparecer mesmo", dito de outra forma, o auto-aparecer. Temos então uma identificação entre objeto e método na fenomenologia, já que, para ir ao 'aparecer puro', não temos outro caminho que este mesmo aparecer. O objeto constitui o método fenomenológico. Assim, podemos afirmar, neste contexto específico, que todo conhecimento ou toda forma de experiência remetem necessariamente ao a priori de um poder de conhecimento. Toda experiência traz em si mesma o método de acesso a ela. E Henry se pergunta se acaso não é esta condição a priori de toda experiência possível que Kant converteu no tema da sua filosofia. A partir desta concepção, ficaria excluída qualquer possibilidade de conceber então um inteligível que escapa a toda condição prévia, uma inteligibilidade situada ao princípio e condição de toda inteligibilidade, na linguagem henryriana, uma

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Cf. Idem.

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inteligibilidade, talvez análoga à de João32. Desde esta perspectiva, entende-se melhor o porquê de Kant pensar sua filosofia a partir de duas críticas. Na fenomenologia, pensada neste horizonte de redução, não há lugar para pensar uma Inteligibilidade Primordial que escape à fenomenicidade tal qual é concebida aqui. Parece-nos importante ressaltar que esta arqui-inteligibilidade (Inteligibilidade primordial) pensada por Henry, busca, no fundo, dar uma resposta à questão da indeterminação dos pressupostos fenomenológicos da fenomenologia. Por isso, pensamos que a inversão fenomenológica é também epistemológica.

Por fim, chegamos ao terceiro princípio, dito o princípio dos princípios, assim ele é enunciado no §24 de Ideen I: "toda intuição em que se dá algo originalmente é um

fundamento de direito do conhecimento"33. A partir daqui, Henry se pronuncia sobre o preconceito oculto que subjaz a estes três princípios da fenomenologia. Para ele, este preconceito oculto se refere à redução catastrófica de todo aparecer ao aparecer do mundo. Temos, pois, então, que, segundo Henry, a redução de todo aparecer ao aparecer do mundo traz duas conseqüências imediatas: a primeira delas se refere ao impedimento do acesso ao cristianismo. Isto porque, neste padrão de inteligibilidade, não é possível pensar nenhuma Inteligibilidade primordial tal como é proposta pelos cristãos. A segunda consequência é o obscurecimento da própria filosofia, diz ele: "antes mesmo de chegar à fenomenologia"34. Em Husserl esta redução se encontra esboçada neste terceiro princípio, chamado, como vimos, o princípio dos princípios. Nele, afirma-se a tese segundo a qual 'toda intuição em que se dá algo originariamente é um fundamento de direito do conhecimento'. Acontece que a intuição deve à intencionalidade seu 'poder' fenomenológico de instituir a condição de fenômeno. E esta intencionalidade, como estrutura da consciência, funda todo “ver” concebível pelo seu movimento em direção ao objeto transcendente (correlato intencional). Contudo, ela não se funda a si mesma, não se dá a si mesmo porque se dirige sempre para um "fora de si "