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CAPÍTULO 1: A VIRADA FENOMENOLÓGICA: PRESSUPOSTOS

2.3 O esvaziamento do poder da impressão em sua auto-afecção

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A partir da redução galileana da realidade do mundo às puras formas geométricas, retomando a intuição cartesiana sobre o papel da sensação, que determina o conteúdo do mundo, chegamos a constatar a lacuna do aparecer do mundo ou sua indigência ontológica. Kant a reconhece, segundo Henry, quando afirma o fracasso da estrutura fenomenológica do mundo em relação ao conteúdo do que nele aparece. Assim, segundo Kant, o horizonte fenomenológico do mundo (os a priori da intuição pura do espaço e do tempo, tais como as categorias do entendimento) manifesta-se incapaz de colocar por si mesmo a realidade que forma o conteúdo do mundo. Deixa-se esta realidade à sensação. Para Henry, o mesmo acontece com Husserl. A consciência é de fato sempre 'consciência de algo', mas nunca é capaz de colocar este algo. Isto quer dizer que a intencionalidade não pode produzir o conteúdo que manifesta. Ela sempre e somente é o 'poder' de manifestação. Assim, Husserl, em sua análise fenomenológica de um objeto (por exemplo a cor de algo) falará de dois pólos de análise: de um lado a “cor” noemática apreendida sobre o objeto (noematische Farbe-forma) e do outro, a cor impressiva, vivenciada, invisível (Empfindungsfarbe-impressão). Contudo, a realidade da “cor” está unicamente ali onde é sentida por nós, na cor impressiva ou sensual, na

empfindungsfarbe. Assim, o conteúdo real do mundo sensível não depende de sua

estrutura fenomenológica (representação para Kant, intencionalidade para Husserl), mas da impressão59.

A questão da Impressão fornece, pois, a condição de possibilidade para pensar uma Fenomenologia da carne e uma consequente Fenomenologia da Vida. A impressão deve ser pensada aqui como fundadora da realidade. Ao pensar o estatuto fenomenológico da impressão, ou sua relação com a consciência intencional, Husserl perceberá a realidade da consciência em dois momentos. De um lado, coloca o conteúdo noemático (visível-forma) como sendo externo à consciência, do outro, pensa o conteúdo impressivo hylético (invisível) como algo que pertence à consciência, assim como a intencionalidade. Pensa também o elemento sensual puro, a impressão original, como estranho à intencionalidade e, considerando que esta é a responsável última por mostrar tudo aquilo que se mostra, emerge a pergunta pelo como 'aparece' a impressão mesma. Se esta é desprovida de intencionalidade, então como pode se mostrar? Estaria ela perdida para sempre? Ao colocar esta questão, podemos também nos perguntar pelo 'aparecer' da própria intencionalidade; ela, que revela todas as coisas, 'como se revela a

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si mesma?'. Eis a solução husserliana. Evitando cair numa regressão ao infinito, na busca da intencionalidade que funda a intencionalidade, declara-se que toda consciência intencional é, por si mesma, impressiva. Impressionando-se a si mesma, nesta auto-impressão originária, a consciência intencional se revelaria a si mesma.

Contudo, ao afirmar a tese de uma consciência intencional impressiva em si mesma, ocorre um deslocamento prejudicial à impressão mesma. Neste deslocamento, a

hyle, matéria da consciência (impressão) perde seu ônus fenomenológico. Isto significa

afirmar que deixa de ser pensada a partir de seu 'poder' de manifestação. Assim este poder de manifestação é bruscamente transferido para a intencionalidade, a forma que informa a matéria. Melhor dito, volta-se à antiga concepção onde a matéria somente existe para ser informada por uma forma. Para Henry, percebe-se aqui o círculo fechado da fenomenologia de Husserl:

A este conceito não questionado de uma matéria em si fenomenológica, se superpõe o esquema vindo de longe, que quer que uma matéria não seja nunca mais que uma matéria para uma forma (...). Para Husserl, a intencionalidade é precisamente esta forma que faz ver uma matéria em si indeterminada e cega. Esta se torna um dado sensível, por meio de um olhar intencional, que atravessa esta matéria composta de

impressões e sensações escuras e que ao fazê-lo a ilumina.60

Transferir o poder de manifestação à intencionalidade significa jogar na escuridão toda impressão, que somente existe agora como matéria cega a ser informada pelo olhar intencional que a define e ilumina. Ao esvaziar o poder de manifestação da impressão, transferindo-o para a intencionalidade que a deve manifestar na estrutura de ek-stasis do mundo, ocorre outro deslocamento absurdo. A impressão, ao perder seu ônus fenomenológico, é atirada aos objetos, como um de seus atributos, apenas uma qualidade. Voltamos a uma espécie de redução como em Galileu. Quando isso ocorre, manifesta-se a dupla ilusão do mundo sensível, respectivamente: a crença em que a verdade impressiva (sensível) encontra-se no mundo como qualidade dos objetos e a atribuição à intencionalidade da revelação originária da impressão. Então, para Henry

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"ao aparecer do mundo é atribuído um 'poder' que não possui (o poder de revelar a

impressão originária) e se oculta a revelação própria da impressão"61.

Até agora, somente abordamos a supressão da impressão na sua realidade originária, ocorrida na fenomenologia de Husserl. Esta acontece quando se transfere seu 'poder de manifestação' à estrutura de manifestação do mundo, ou seja, à intencionalidade. Abandonando o esquema da Fenomenologia do mundo, a partir do qual toda matéria é informada por uma forma, na linguagem da fenomenologia, por um "ver" da consciência intencional, voltamos agora nosso olhar para a impressão em si mesma. Para Henry, a realidade mesma da impressão, sua essência, consiste numa espécie de auto-afecção, em sentir-se a si mesma. Por isso, ao ser pensada como simples qualidade de objeto, é destruída. A impressão só existe neste abraço consigo mesma, nesta auto-afecção impossível aos objetos, e a todo aparecer impassível deste mundo. Por isso, Henry afirma que no 'fora do mundo' nunca é possível nenhuma impressão. Se esta afirmação constitui uma verdade fundamental no pensamento do autor, então, resta-nos a pergunta pelo fundamento da impressão originária. Sua descoberta constitui a condição de possibilidade para pensar a virada fenomenológica, que nos conduz do aparecer do mundo à Fenomenologia da Vida.

3 A virada fenomenológica: do aparecer do mundo à Fenomenologia da Vida

A virada ou inversão fenomenológica existe em função da superação de uma aporia. Qual seria, contudo, tal aporia? Para nosso filósofo, ela vem à tona diante da postura filosófica do 'pensar a vida'. Dito fenomenologicamente, quando o pensamento, a partir do ver deste mundo visível, tenta captar a vida invisível. Seguindo nosso discurso perguntamos: como esta inversão fenomenológica busca superar esta aporia? Segundo Michel Henry, a superação deste problema pode ser vislumbrada quando, ao aparecer ek-stático do mundo, acima exposto, se coloca como foco a reflexão sobre a auto-revelação da Vida absoluta. Diz o autor que: "ao fazer esta oposição, a

Fenomenologia da Vida reconhece a auto-revelação da Vida absoluta como essência de toda revelação"62. Reconhecer algo como "essência" da revelação é colocá-lo como fundamento de tudo aquilo que se revela ou que pode ser revelado. Por isso,

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Cf. Ibid, p.73.

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consideramos o caráter revolucionário da Fenomenologia da Vida ao propor tal inversão. Contudo, resta-nos perguntar: o que de fato vem a ser tal inversão da fenomenologia no pensamento henryriano. Quais são seus matizes e exigências? O que de fato ela inverte?

O mesmo Henry nos diz, no início de sua Fenomenologia da carne, que esta inversão fenomenológica outra coisa não é que o mesmo reconhecimento da primazia da Auto-revelação da Vida absoluta. Isto, em outras palavras, consiste em lançar o pensamento mesmo ou remetê-lo sempre ao processo de auto-doação da Vida absoluta fora do qual nada pode existir. Esta inversão fenomenológica, portanto, pode ser definida como o próprio movimento do pensamento que se humaniza, tornando-se humilde, reconhecendo e compreendendo que a auto-doação da Vida absoluta o precede. Isto quer ser a afirmação mais banal, por vezes esquecida de tanto trivial: simplesmente a nota filosófica mais essencial que afirma a primazia da vida em relação ao pensamento. Não se pensa primeiro para depois viver. O mais originário é a vida. Não é, de fato, como diz Henry, o pensamento que, partindo de si mesmo, corre em direção à vida, com a avidez de uma criança devoradora de doces, com intuito de decifrá-la e conhecê-la. Uma nota importante de nosso autor consiste na observação, muito clara, de que a mesma possibilidade de "pensar" a precedência da vida, somente é possível porque na ordem da realidade a Vida mesma já se revelou. A partir desta mesma afirmação é que Henry prosseguirá com a discussão sobre o método fenomenológico, a partir do qual é possível enfrentar a empreitada de pensar a vida. Para ele, portanto, todo método fenomenológico, que pensa a vida está irremediavelmente fundado sobre a doação prévia da Vida absoluta que, por sua vez, não depende em sua doação, do aparecer deste mundo. Consequentemente, existe independentemente da fenomenologia enquanto pensamento. A vida mesma se coloca, obviamente, como condição absoluta do pensar. De fato, o pensamento é antes vivo, o pensamento de um vivente que 'pode', mas não por si mesmo, pensar.

Ao operar sua inversão fenomenológica, Henry se encontra com o problema de um esquecimento fundamental na ordem do próprio pensar. A Fenomenologia da Vida denuncia a usurpação, por parte da Fenomenologia do mundo, de um lugar que não lhe pertence. Ao colocar-se como fundamento último de todo conhecimento possível, de tudo aquilo que existe para nós enquanto fenômeno que pode ser vislumbrado e estudado, o pensamento opera uma falha decisiva. Esta se refere ao esquecimento desta precedência fenomenológica da vida em relação ao próprio ato de pensar. A recordação

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desta precedência fenomenológica da vida é condição de possibilidade para o estudo de nossa tese central sobre a encarnação e os temas do seu entorno, tais como: auto-afecção, impressividade, corpo e carne. Uma Fenomenologia do mundo, que desconsidera esta doação originária da vida, pensará estes temas de forma catastrófica. Como é possível pensar uma carne que só existe como imanência da própria Vida, a partir de um saber que ignora a precedência fenomenológica da Vida mesma? Não resta dúvidas que a virada fenomenológica supõe para nós uma oportunidade única de pensar tais temas a partir de novos pressupostos, tomando como referência a precedência da doação originária na Vida.

Afirmar a virada fenomenológica supõe antever um giro epistemológico. Obviamente o modo de análise fenomenológica operado pelo ver do mundo, difere essencialmente daquele operado pela Fenomenologia da Vida. É importante recordar que o esquecimento pelo pensamento da precedência da Vida revela, no 'aparecer do mundo', aquilo que chamamos de carência ontológica radical. Recordemos, em forma de resumo, três características da Fenomenologia do mundo estritamente conectadas a este esquecimento da Vida. A primeira delas se refere à redução de tudo que aparece ao aparecer do mundo. Nesta perspectiva, está excluída toda possibilidade de verdade que não apareça neste horizonte ek-stático (de objetivação). A segunda diz respeito à apatia deste aparecer. No mundo não é possível nenhuma alegria, nenhuma tristeza, nenhum sentimento, sua estrutura fenomenológica é vazia de impressões, seu ver é vazio. Lembramos anteriormente o conceito de mundo exposto por Henry, mundo enquanto horizonte de visibilidade. A terceira característica nos revela que por trás de tal indiferença se oculta uma indigência radical, para a qual o aparecer do mundo não só é indiferente àquilo que revela, mas também incapaz de lhe conferir o ser (existência). Esta incapacidade (indigência ontológica na qual o aparecer do mundo lança o próprio mundo) explica sua indiferença para com tudo aquilo que faz aparecer. Esta indiferença é, por sua vez, uma impotência63.

Uma observação simples, contudo, elucidativa nos é fornecida pelo mesmo Henry, quando afirma que por causa de suas propriedades sensíveis todos os corpos sensíveis que vislumbramos, definem-se sempre em relação à percepção sensível que temos deles. E aqui, encontramo-nos com o problema concreto da indigência ontológica e com a necessidade da virada fenomenológica que é, também, epistemológica. O

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problema está em que nenhuma das qualidades sensíveis que admiramos ou percebemos tem seu fundamento no aparecer do mundo (intuições a priori de Kant, ou a consciência intencional de Husserl). O mundo, considerado no seu conteúdo concreto (hyle), deve este 'conteúdo sensível' à sensação, à Vida mesma. Nenhum sentimento é possível sem a Vida. Temos, portanto, segundo Henry, que a consideração do caráter sensível do mundo nos lança de uma Fenomenologia do mundo à Fenomenologia da Vida64. A propósito do esquecimento do pensamento, no que se refere à precedência fenomenológica da Vida, abordaremos no tópico seguinte o tema da carne impressiva e o esquecimento da subjetividade pela Fenomenologia do mundo e sua recordação no