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A remissão da Fenomenologia da Carne (impressiva) à Fenomenologia da Vida

CAPÍTULO 1: A VIRADA FENOMENOLÓGICA: PRESSUPOSTOS

3.2 A remissão da Fenomenologia da Carne (impressiva) à Fenomenologia da Vida

3.2 A remissão da Fenomenologia da Carne (impressiva) à Fenomenologia da Vida

Pensar a remissão da Fenomenologia da Carne impressiva à Fenomenologia da Vida é, no fundo, voltar à tese henryriana que provoca nossa investigação: encarnação. A análise fenomenológica da carne impressiva não é um capricho filosófico de Henry, mas condição de possibilidade para o desenvolvimento posterior do discurso sobre a salvação no sentido cristão, inserido no tema da encarnação. Assim sendo, a Fenomenologia da carne impressiva, metodologicamente, encontra-se, estrategicamente, situada antes da Fenomenologia da encarnação.

A inversão fenomenológica proposta por M. Henry é ela mesma uma denúncia do esquecimento da Vida e de tudo aquilo que ela engendra. Esta inversão consiste precisamente em reconhecer a primazia da autorrevelação da Vida absoluta, situando o pensamento mesmo dentro do processo de auto-doação da Vida absoluta, fora do qual

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Cf. FURTADO, José Luiz. Do ser à vida: fundamentos fenomenológicos da filosofia da vida e da práxis em Michel Henry. Belo Horizonte: UFMG, 1996, 711p. De acordo com o título deste tópico, falamos da nossa carne impressiva, da origem mesma da impressão, a partir do esquecimento da subjetividade, entendendo subjetividade em relação estreita com o 'Poder de sentir' ou 'Poder da impressão'. Falta, contudo, a explicitação da parte final, que se refere à recordação desta subjetividade no patos da vida. Este tema não será desenvolvido em detalhes aqui. Contudo, ele permanece fazendo parte desta secção, apenas como sinal que aponta para o horizonte necessário da nossa reflexão. Sendo esta teológica, não pode deixar de ser antropológica e, por isso mesmo, ética. Faz-se necessário lembrar a intuição presente na Fenomenologia da Vida de Henry. Intuição esta que afirma que a recordação da vida, de sua imanência radical em nossa carne, a recordação da própria subjetividade como fundamento daquilo que pensamos e sentimos, não pode ocorrer longe daquilo que se denomina práxis. Práxis entendida não como estratégia de transformação da realidade, mas como atualização e percepção de cada 'Poder' que habita nossa carne. Trata-se, na verdade, quando falamos da percepção, da recordação fundamental da origem destes 'Poderes' que chamamos inapropriadamente de nossos. Sobre isto sugerimos a leitura da tese doutoral supra citada. Aprofundaremos no tópico seguinte a remissão desta fenomenologia da carne impressiva à Fenomenologia do Vida.

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nada pode existir. Quando se afirma que o pensamento não conhece a Vida ao pensá-la, ocorre então uma inversão fenomenológica que não é mais que o movimento do pensamento que compreende que a auto-doação da Vida absoluta o precede. Assim, se estabelece uma primazia da vida em relação ao pensamento (não se pensa primeiro para depois viver). De fato, não é o pensamento que, partindo de si mesmo, vai em direção à Vida para descobri-la e conhecê-la. Todo pensamento só é possível enquanto vida previamente dada72.

A Fenomenologia da Vida reconhece os dois caminhos ou modos do aparecer: o primeiro deles diz respeito à Fenomenologia do mundo, a partir da qual o ver não pode se referir a outra coisa que não seja aquilo que pode ser visto pela estrutura ek-stática. Trata-se do fenômeno tal como foi compreendido pela filosofia e as concepções epistemológicas que fundam a ciência moderna. Neste aparecer do mundo os corpos são objetivos. As categorias de espaço-tempo fundam a condição de possibilidade para este “ver” fenomenológico. Este aparecer do mundo desemboca na, já citada, indigência ontológica, que consiste em sua incapacidade de dar por si mesmo o conteúdo do mundo. Este aparecer só manifesta aquilo que previamente já foi dado, e dado por quem? Responderá M. Henry, pela Vida. Desta constatação nasce a proposta de uma fenomenologia da Vida, que anuncia uma realidade fundamental para além de toda realidade objetiva apreendida pela estrutura ek-stática. Se a Fenomenologia do mundo não é suficiente para a compreensão da realidade, uma nova inteligibilidade surge. A Fenomenologia da Vida, portanto, propõe uma nova epistemologia, fundada sobre a Inteligibilidade primordial.

Assim, mesmo a análise fenomenológica proposta a partir do corpo intencional transcendental de Husserl permanece relegada, segundo Henry, à esfera da Fenomenologia do mundo. Isto porque, apesar de colocar a pergunta sobre a relação entre o corpo sentido e o corpo transcendental, descortinando a questão da intencionalidade que nos abre ao mundo, esta análise ainda continua refém da noção tradicional de fenômeno. Este corpo transcendental intencional de Husserl participa também da indigência ontológica do aparecer do mundo, pois uma vez que nos abre a

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Cf. HENRY, Incarnation, pp.135-139. A inversão fenomenológica , segundo Henry, assim se expressa: não é o pensamento que nos dá acesso à vida, é a vida que permite ao pensamento ter acesso a si mesmo, experimentar-se a si mesmo e, ser em cada caso o que é: a auto-revelação de uma cogitatio. Porque é em cada caso e necessariamente uma cogitatio, o pensamento designou indistintamente, sob um mesmo conceito falaz, dois apareceres tão diferentes como o ver intencional e aquele que permite a este ver advir a si em ausência de todo ver: sua auto-doação patética na Vida absoluta.

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ele, tudo que permite sentir se situa no mundo, inevitavelmente, como objeto sentido. E ele mesmo enquanto corpo que nos abre ao mundo não pode fundar aquilo que ele é para nós, a saber: condição de possibilidade de abertura e do “ver” fenomenológico.

Para pensar o tema da Encarnação na Fenomenologia da Vida, Henry parte da análise fenomenológica da condição de possibilidade do corpo transcendental, esboçado pela fenomenologia de Husserl. Isto diz respeito à própria análise do corpo sensível, a partir da qual se dará a remissão do corpo sentido ao corpo "que sente", denominado também corpo transcendental. Em sua Fenomenologia da carne, Henry colocará em oposição ao 'corpo opaco' do 'aparecer puro' do mundo o próprio 'corpo sensível'. Afirma, com propriedade, que este não deve sua existência ao aparecer do mundo, isto porque no 'corpo opaco' do aparecer do mundo não é possível nenhuma impressão, e, portanto, nenhuma sensibilidade ou sentimento. Denuncia-se neste contexto, todo realismo ingênuo73 que tende a classificar a impressão e o 'sentimento' como uma qualidade dos corpos 'mundanos'. No fundo, esta foi a operação realizada, como já dissemos, pela fenomenologia de Husserl, quando desloca o 'aparecer' mesmo das impressões para a intencionalidade. Ao falar de uma consciência impressiva, Husserl esvazia a fenomenicidade mesma da impressão, tornando-a apenas qualidade interna dos corpos no mundo. Assim, por exemplo, o vermelho, a dor, o sorriso, tudo pode ser pensado como simples qualidades dos corpos. Fica, portanto, estabelecido que, segundo a Fenomenologia da Vida, a condição sensível e afetiva dos corpos não provém da estrutura ek-stática do mundo, nada tem a ver com seu horizonte de visibilidade74.

Nesta dinâmica de oposição entre 'corpo opaco' (horizonte fenomênico do mundo) ao 'corpo sensível' (alheio à estrutura do mundo), Henry procederá à sua análise da carne impressiva, explicitando o seguinte quiasma: 'todo 'corpo sentido' deve pressupor um 'corpo que o sente' e vice versa. Existe, pois então, um ´ Poder de sentir' . A atualização deste ' Poder' leva à passagem de um 'corpo mundano', considerado como objeto, para um 'corpo transcendental', condição de possibilidade do próprio 'corpo sentido'. Henry dirá: "Este corpo transcendental é dotado dos 'poderes' fundamentais do sentir, o que faz dele um corpo sujeito, subjetivo e a priori, um corpo originário e

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Cf. LONERGAN. Bernard J. F. The way to Nicea: the dialectical development of trinitarian Theology. Philadelphia: The Westminster, 1964, 143p. Nesta obra, ao discutir a formação do dogma, o autor denuncia e esclarece, simultaneamente, o perigo do realismo ingênuo no discurso filosófico e teológico. Para a compreensão do pensamento henryriano também necessitamos nos situar a partir desta dinâmica da diferenciação da consciência, proposta por Lonergan. Somente a partir desta dinâmica poderemos compreender sua empreitada intelectual que propõe uma passagem radical da fenomenologia do mundo à fenomenologia da Vida.

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fundador"75. Ao pensar a corporeidade, via fenomenologia do mundo, a filosofia se depara com as duas grandes questões já antes delineadas: a primeira se refere justamente ao caráter sensível dos corpos, que não pode ser explicado pela estrutura de objetivação do aparecer do mundo. Por outro lado, ao pensar o 'corpo que sente', corpo transcendental como princípio de toda experiência do 'sentir', constata-se que este 'corpo' está dotado de ' Poderes' fundamentais imediatamente conectados aos sentidos tradicionais. O problema que se descortina neste horizonte se refere ao fato de que a estrutura de cada um dos nossos sentidos somente é compreendida a partir da estrutura ek-stática. Os sentidos são intencionalidades que se dirigem sempre para um 'afora de si', pressupõem, portanto, sempre um distanciar-se. Segundo Henry, todos os sentidos nos lançam para fora, tudo que sentimos se encontra fora de nós. Este corpo transcendental, portanto, enquanto subjetividade, não pode ser definido como outra coisa que não seja o conjunto das nossas intencionalidades, na linguagem henryriana: 'o fora de si que permite ver na luz desse fora de si que é o mundo'. O problema é que se entendemos o corpo transcendental a partir dos sentidos tradicionais, e estes, outra coisa não podem ser que intencionalidades, então, não podemos explicá-lo a partir da Fenomenologia do mundo fundamentada no próprio ver intencional. Segundo Henry, constitui um absurdo "explicar uma condição de possibilidade (corpo transcendental) a

partir daquilo que ela mesma torna possível (intencionalidades)76".

A questão precedente nos leva a perguntar com o autor: onde então estará a essência da corporeidade originária imanente? Vimos que, segundo Henry, nosso corpo é transcendental porque se coloca como condição de possibilidade de tudo aquilo que 'podemos sentir'. Por isso, este corpo transcendental é definido como o conjunto de nossos sentidos, sendo cada um deles uma intencionalidade. Contudo, a intencionalidade deste corpo transcendental não pode ser explicada, tampouco, pela estrutura do mundo, à qual ela mesma torna possível. Como bem diz Henry, é um contrassenso que uma condição de possibilidade seja justificada a partir daquilo que ela mesma torna possível, cairíamos no cúmulo da tautologia. Então, a intencionalidade constitutiva do corpo transcendental não pode fundar por si mesma sua própria condição de possibilidade ou existência. Ela, de fato, nos abre ao mundo, aos fenômenos, mas não se funda enquanto fenômeno, não coloca por si mesma o seu 'aparecer'. É aqui, nesta esfera, que teremos, como designa nosso autor, a passagem de uma possibilidade

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Idem.

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transcendental a outra: somos lançados da possibilidade transcendental do mundo sensível (que reside no corpo transcendental intencional que permite senti-lo) à possibilidade transcendental do 'corpo intencional mesmo' (que é a auto-revelação da intencionalidade na Vida)77.

Declara Henry que o 'corpo transcendental', considerado pela fenomenologia do mundo como o mais originário, repousa, todavia, sobre uma corporeidade ainda mais originária. Esta é transcendental, no sentido radical da palavra, no seu sentido último, segundo nosso autor. Nela não há intencionalidade, nenhum movimento para o 'afora'. A essência desta corporeidade originária imanente é a própria Vida na sua Auto-revelação. Passamos, portanto, de uma Fenomenologia do mundo, via análise da Fenomenologia da carne impressiva, na sua 'possibilidade' de sentir, para uma Fenomenologia da Vida. Para Michel Henry, as análises do corpo e da realidade, realizadas pela fenomenologia contemporânea, podem ser classificadas a partir da fenomenologia do mundo. Para o autor, o Corpo Transcendental da fenomenologia contemporânea, definido como intencionalidade, que se coloca como condição de possibilidade do 'corpo sentido', pertence claramente à estrutura de visibilidade do mundo. Afirmará Henry: "Este novo corpo transcendental possui a mesma condição do

corpo antigo que é 'sentido', a tal ponto que pode se deslocar para a antiga posição"78. Esta afirmação se refere à possibilidade inerente ao nosso corpo de ser ao mesmo tempo o que sente e o que pode ser sentido. Assim, pode-se voltar uma e outra vez à antiga posição de ser sentido (como objeto apreendido pela intencionalidade). Aproveitamos este tema para assinalar rapidamente a breve crítica dirigida por Henry, em seu livro Encarnação, a Merleau-Ponty. Pensando na dualidade insuperável dos dois corpos, como propriedade própria dos corpos vivos, neste caso o corpo humano (o que sente e o que é sentido), Henry defenderá a estrutura opositiva entre o que constitui e o que é constituído. Para ele, ao desqualificar esta estrutura opositiva, Merleau-Ponty "estende

de maneira não legítima, ao mundo inteiro aquilo que é próprio do nosso corpo e que não pode ocorrer em outro lugar que nele, a saber: a relação tocante tocado"79. Somente nosso corpo pode tocar e ser tocado. A postura de Merleau-Ponty é, portanto, uma postura de absolutização do sensível. Com tal atitude, diz o autor :

77 Ibid, p.159. 78 Idem 79 Cf.Ibid, p.163-166.

59 esmaga-se o 'poder' transcendental de constituição contra o constituído, que é reduzido e confundido com ele. Isto ocorre por não pensar o estatuto fenomenológico do poder de constituição. Absorvido pelo constituído, a teoria da constituição cede seu lugar a uma descrição literária dos

fenômenos que beira ao realismo ingênuo.80

Portanto, para Henry, a extensão ao universo do quiasma tocante-tocado, não pode ser, de forma alguma possível dentro da perspectiva da Fenomenologia da Vida.

Assim, quando o corpo é pensado a partir da Fenomenologia da Vida e não mais do mundo, ocorre uma inversão da própria concepção de corpo. Ele deixa seu estatuto de objeto para ser encarado como princípio de toda experiência, possuindo, então, um poder de doação. Pensando a Vida como aquela que revela o corpo, obrigatoriamente ocorre uma mudança radical, pois a ek-stasis não se aplica a ela, na Vida não há intencionalidade. Assim, o corpo pensado na Fenomenologia da Vida se refere a uma corporeidade originária, despojada do caráter mundano. Portanto, se é desprovida do caráter fenomenológico do mundo, é , como se deve prever, dotada de todas as propriedades fenomenológicas da Vida. Estas propriedades, que o corpo originário toma da Vida, provêm daquilo que ela revela. Em que consiste esta revelação da Vida? A revelação da Vida nada mais é que sua autorevelação. Esta é, por sua vez, o originário e o puro experimentar-se a si mesmo, sendo que o que experimenta e o experimentado são um só. Isto ocorre porque o modo fenomenológico da revelação da Vida consiste em um

Phatos cuja matéria fenomenológica é a afetividade e a impressividade pura. Em outras

palavras, o modo fenomenológico pelo qual a Vida se revela é a autoafecção radicalmente imanente que é nossa carne81.

A indigência ontológica não existe na Fenomenologia da Vida, porque ao revelar a carne ela não se limita a revelá-la como na estrutura do mundo na qual o que revela não é o revelado. Assim, a Vida revela a carne ao engendrá-la, como aquilo que nasce com ela, da mesma substância dela. Esta carne revelada é uma carne afetiva e impressiva cujas características não provêm de outra coisa que não seja a impressividade e a afetividade da Vida mesma que a revela. Desta forma temos a seguinte constatação: o que revela e o revelado são um só. Portanto, na Fenomenologia

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Idem.

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da Vida a carne é mais que mera realidade revelada pela Vida. Surpreendentemente, estabelece-se que a carne é a forma que tem a Vida de se fazer Vida. Então, a interioridade reciprocamente originária entre carne e Vida nos atinge porque, na Vida absoluta, esta carne constitui o modo fenomenológico segundo o qual a Vida vem eternamente a si no Arqui-patos da sua Arqui-carne.

A partir de tudo que dissemos, insistimos em explicitar um pouco mais em que consiste a guinada epistemológica e como ela se relaciona com o que chamamos Inteligibilidade primordial. Para isso, deve-se reconhecer que a virada fenomenológica, a qual consiste na passagem de uma Fenomenologia do mundo a uma Fenomenologia da Vida, propor-nos-á um novo paradigma. Este é concebido por Henry como Arqui-inteligibilidade, ou, como sugerimos, uma Inteligibilidade primordial. De fato, como se nota, a Fenomenologia da Vida, mais que ruptura, é uma descoberta fascinante de outra forma de “ver” radicalmente diferente do “aparecer” do mundo. Se a autorevelação da Vida é o que há de mais originário, a análise fenomenológica que parte dela deve fazer surgir uma nova concepção de mundo, de corpo e do próprio pensamento, diríamos, ousadamente, uma epistemologia primordial.

Uma indagação pertinente, e mesmo necessária, deve ser formulada neste instante. Esta deve se referir ao nexo existente entre Fenomenologia da Vida (Inteligibilidade primordial) e a própria tradição cristã. Trata-se do possível impacto que a Fenomenologia da Vida pode exercer sobre o terreno teológico. Neste sentido, é surpreendente notar que o mesmo Henry parece não só se referir ao cristianismo, mas o toma como referência necessária para pensar sua Fenomenologia da Vida. O autor não tem receio de identificar a Vida com o Deus anunciado pelos cristãos82. A própria ideia de Inteligibilidade primordial é lançada pelo autor em referência direta ao prólogo do Evangelho de João. A partir de sua análise fenomenológica da vida, ao encontrá-la como auto-afecção que se revela revelando-se sempre numa carne, o autor estreita ainda mais o laço entre seu pensamento e a própria tradição cristã. Propor-nos-á, portanto, uma fenomenologia não só da carne, mas da encarnação, visando explicitar a relação primordial entre a Vida absoluta e sua vinda a nós83. O tema é, pois, inegavelmente teológico.

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Idem

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Idem. O autor define que a fenomenologia da encarnação trata da relação da Archi-carne com a carne inscrita no prólogo joanino: “a vida se fez carne”.

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Parece-nos, portanto, conveniente afirmar que o pensamento henryriano, no que se refere à sua inversão fenomenológica e à sua guinada epistemológica, traz uma rica possibilidade de fecundação do terreno teológico em suas várias vertentes. A Fenomenologia da Vida pode trazer grandes contribuições para o pensamento teológico. Seu alcance pode tocar tanto o nível de uma reflexão mais sistemático-fundamental (Antropologia e Cristologia) quanto a elaboração de um pensar ético-pastoral, e por que não dizer, também pode lançar luzes ao caminho espiritual. Aliás, se a Vida precede o pensamento, e a Vida é Deus, e Deus é unidade, como bem nos lembra Henry, não pode haver cisão epistemológica na nossa forma de conhecer a vida. Por isso, é necessário reafirmar que a análise ontológica de Galileu não deve existir separada da análise fenomenológica de Descartes. A via metodológica e a constatação das duas formas de aparecer, ressaltadas pelo autor, não querem desembocar no divórcio entre vida e pensamento, a proposta de Henry não é um neo-dualismo84.

A Fenomenologia da Vida, autenticamente referida à tradição cristã, traz, portanto, consequências para o fazer teológico. Aqui arriscamos apontar somente alguns horizontes para uma futura reflexão. O primeiro deles parte daquilo que é o cerne da reflexão henryriana, a saber: a autorevelação da Vida. Se a forma de revelação da Vida é em si mesma uma autorrevelação cuja matéria fenomenológica é a autoafecção pura, então, nosso Deus, identificado com a Vida por Henry, é também autoafecção pura. Isto nos faz retomar toda a reflexão cristológica e antropológica, para repensar o nexo entre Teologia e Antropologia. Em outras palavras, coloca-se em evidência a relação estreita entre a Vida de Deus ou o Deus que é Vida e a vida do homem. A partir deste mesmo dado, a Vida que se autorrevela a si mesma em uma carne, podemos atualizar a própria teologia da revelação escrita na Dei Verbum. O campo se abre ainda mais se considerarmos a fantástica categoria de transcendência anunciada por Henry. Segundo ele, transcendência, no sentido radical, segundo o próprio cristianismo, só pode significar a imanência da Vida em cada vivente85. A partir deste fantástico condensado de significado, que nos abre a Fenomenologia da Vida, podemos, por último, propor uma nova reflexão sobre o corpo no seu sentido teológico. Esta abordagem nos aponta para uma nova Teologia do Corpo, pensado não mais a partir dos pressupostos do corpo transcendental intencional, mas a partir da corporeidade originária, que tem sua raiz na Vida mesma enquanto Deus. Certamente, isto implica um mergulho profundo na

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Cf. Ibid, p. 216. Henry fala de dois modos de aparecer, mas de um só processo.

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abordagem metodológica da Fenomenologia da Vida, coisa que ainda não nos sentimos capazes de realizar. Por enquanto, parece-nos suficiente apontar o vasto horizonte do pensamento henryriano nos seus possíveis ponto de contato com a tradição cristã, o que