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CAPÍTULO 2: FENOMENOLOGIA DA VIDA E CRISTIANISMO: A

2.2 A questão da Palavra viva de Deus

A Fenomenologia de Cristo se dá essencialmente em Jesus como palavra encarnada. Ele é a palavra da Vida que se manifesta para a salvação dos homens. Antes de prosseguir nosso discurso, pensamos por bem fazer duas considerações. A primeira se refere a uma opção que consideramos importante. Seguindo Konings, em seu livro

Evangelho segundo João, também queremos manifestar nossa preferência pela categoria

'Palavra' em vez de 'Verbo'. Parece-nos, não somente sensata, mas também fundamental a opção deste exímio teólogo. De fato, como ele mesmo lembra, o termo 'verbo' nos remete ao contexto das discussões e especulações da filosofia grega acerca do Verbo divino138. Enquanto a categoria "Palavra" nos aparece como possibilidade autêntica de nos aproximar da fonte religiosa e cultural do cristianismo, a saber: a tradição judaica. A segunda consideração, trata-se, na verdade, de um justificação. Sobre o tema da linguagem enquanto reflexão filosófica, abordá-lo-emos circunstancialmente e de forma muito limitada. Apesar de sua relevância fundamental para nossa investigação, ele não constitui o objetivo de nosso estudo.

No capítulo 12 do livro Eu sou a verdade, Henry aborda o tema da Palavra de Deus e as Escrituras, o qual retomará mais tarde em sua obra intitulada: Palavras de

Cristo. Ao discorrer sobre o assunto, uma constatação pertinente vem à tona. Ela diz

respeito ao Cristianismo. Uma vez que ele se nos apresenta sempre sob a forma de um texto, e mais ainda, como palavra performativa (a Palavra se fez carne), então, deveras, a questão da 'palavra' surgirá como fundamental desde nosso primeiro contato com ele. Segundo nosso autor, o texto do Novo Testamento se apresenta de maneira inédita porque é de proveniência Divina. Isso se nota ao perceber que os narradores param a narrativa para que o próprio Cristo, Filho de Deus, diga sua palavra139. Partindo da exegese do evangelho de João, principalmente do Prólogo, o autor encontrará, segundo Miguel García, "que os paradoxos da linguagem evangélica acerca da vida

representam a mais acabada expressão da verdade do Fundamento: fragmentos de uma autêntica ontologia fenomenológica"140. Daí procede o grande encanto de Henry pelo cristianismo e suas Escrituras, ao ponto de afirmar sem medo que "longe de se opor a

138

Cf. KONINGS, Evangelho segundo João, p. 76.

139

Cf. HENRY, C'est moi la vérité, p. 269.

140

HENRY, Michel. Palabras de Cristo. Salamanca: Ediciones Sígueme, 2004, p.11 Expressão dita por Miguel García na apresentação desta obra na tradução espanhola.

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uma reflexão verdadeiramente livre, o Cristianismo situaria a filosofia tradicional ante seus limites, por não dizer sua cegueira"141. No livro Palavras de Cristo, o propósito investigativo do autor está imbuído da convicção de que existe outra ordem de palavra diferente daquele modo ordinário de se comunicar dos homens.

A matriz hermenêutica para a compreensão das palavras de Cristo, como Palavra viva de Deus, dá-se a partir da oposição metodológica realizada pelo pensamento do autor, a saber: Fenomenologia do mundo - Fenomenologia da Vida. Esta abordagem nos reconduzirá à questão da Verdade segundo o Cristianismo. Aqui se estabelece uma afirmação decisiva, a de que a Palavra de Deus pertence à Verdade da Vida. Contudo, esta asserção faz surgir uma pergunta fundamental. Uma vez que as palavras de Cristo chegam a nós na comum linguagem dos homens, em termos fenomenológicos, na linguagem do mundo: como podem elam então dizer a mensagem da Vida que não se manifesta no mundo? Como esta palavra da Vida, expressa na linguagem do mundo, pode ser ouvida e compreendida como palavra da Vida e não do mundo? A possibilidade de compreensão deste paradoxo somente pode ser estabelecida partindo da tese que estabelece duas ordens de palavras : a dos homens e a de Deus142. Esta tese, como bem sabemos, refere-se aos dois modos de manifestação descrito pelo pensamento henryriano. Sobre os dois modos de manifestação e a categoria da verdade, segundo o

ethos cristão, é importante recordar o pensamento segundo o qual:

Chamamos verdadeiro ao fenômeno, ao que se mostra, ao ente no 'afora' do mundo e do tempo; mas também chamamos verdadeiro ao fato de que todos os entes se mostram. E este fato não é ele mesmo um ente entre os entes. Não é uma verdade particular, mas a verdade original. A qual não se mostra aparecendo no mundo, mas no fato mesmo de fazer com que o mundo apareça. [...] A vida é uma 'substância cuja essência toda é aparecer, revelar-se. E o 'cristianismo', outra coisa não é que a teoria, rigorosa, de que se dá aos homens, como sua porção, esta autorrevelação do Absoluto. Pois o amor pelo qual são João define a natureza de Deus não é outra coisa que o gozo de si

mesmo da Vida absoluta143.

141

HENRY, Paroles du Christ, p.87.

142

Cf. HENRY, C'est moi la vérité, pp. 270-271.

143

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Partindo desta elucidação dos dois modos de manifestação, Henry prosseguirá em sua nota sobre a palavra do mundo e a palavra da Vida144. Afirma a necessidade da distinção de duas ordens de palavras: as dos evangelistas, que narram a vida de Cristo, e as do próprio Cristo, que irrompem surpreendentemente nos textos. Contudo, estas palavras de Cristo estão formuladas na linguagem dos homens, que chamamos, também, de linguagem do mundo, por duas razões: primeiro porque designam as coisas deste mundo (coisas inertes, animais, objetos culturais); segundo, trata-se de palavras do mundo porque só podemos falar das coisas que se nos mostram. Sobre isso, afirma o autor:

Se unicamente podemos falar do que se nos mostra, e se tudo o que se nos mostra nos é mostrado no mundo, então toda palavra está vinculada ao mundo por uma relação inegociável. Unicamente podemos falar do que se nos mostra no mundo [...] Palavra do mundo quer dizer uma palavra que fala do que se nos mostra nessa exterioridade que o mundo é. Assim o aparecer se propõe como a condição de possibilidade de toda palavra145.

Notaremos a seguir, que esta constatação henryriana traz uma série de implicações para a palavra do mundo. Segundo o autor, se a fenomenologia do mundo se coloca como condição de possibilidade para que haja uma linguagem humana, então esta, se fundamenta necessariamente nas características fundamentais deste aparecer do mundo. Sendo o horizonte de visibilidade deste mundo exterioridade pura, indiferente àquilo que ilumina, constituído de uma carência ontológica, como descrevemos no primeiro capítulo, então, a palavra do mundo, também se compreende situada a partir destas três notas. De fato, ela fala de uma realidade outra que não é a de si mesma, e por isso mesmo, lhe é indiferente. Tudo isto haverá de culminar numa indigência ontológica da linguagem, expressa, segundo Henry, no caráter referencial da linguagem. Trata-se, neste último caso, de que a palavra do mundo sempre se refere a um conteúdo exterior que foge ao seu domínio porque se situa em um nível radicalmente diferente dela mesma. Em outros termos, a palavra do mundo não funda a realidade à qual se refere. O autor denuncia ainda a carência das teorias da linguagem que radicam na

144

Cf. HENRY, Paroles du Christ, pp.87-99.

145

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"crença ingênua" de que somente o aparecer do mundo constitui o objeto unívoco da linguagem. Assim, esquece-se e se oculta a possibilidade mesma de outra palavra mais originária, mais essencial que a do mundo146. Ao tratar deste tema, nosso fenomenólogo nos lança novamente em direção à sua reflexão fundamental, a saber: sobre a Inteligibilidade primordial ou a questão da Verdade. Sobre a vinculação entre linguagem e Fenomenologia do mundo, afirma que o caráter referencial da linguagem traz em si a possibilidade sempre patente da falsidade ou da mentira. Sobre este tema delicado diz o próprio autor:

Mesmo impotente para estabelecer a realidade da qual fala, conserva (a palavra do mundo) um poder: o de afirmar esta realidade quando não existe, o poder de mentir. Esta é a razão pela qual afirma São João que o testemunho que traz em si esta

palavra é potencialmente um falso testemunho147.

Retomando a reflexão cristológica sobre a natureza de Cristo, Henry dirá que se esta é dupla, podemos pensar que sua palavra também está constituída de uma autêntica duplicidade. Esta não se encontra marcada pelo caráter da mentira. Ela não é dupla no sentido de verdadeiro ou falso, mas no sentido de que algumas vezes se trata da palavra humana e em outras da palavra de Deus. Neste contexto, o autor introduzirá a distinção entre o ato de falar (a maneira que alguém tem de falar) do conteúdo da fala. Esta observação marca a diferença entre a forma de Deus e a forma dos homens falarem. A palavra de Deus, neste sentido, não poderia ser abordada positivamente por uma análise do discurso, ou por uma filosofia da linguagem que possua como objeto a linguagem humana148.

Sem entrar diretamente no tema, apontamos somente o fantástico horizonte aberto por Henry ao propor a discussão sobre a questão da possibilidade da mentira e o discurso sobre a incapacidade das palavras da lei humana para produzir seu efeito. Reflexão abordada por Henry no capítulo 12 de seu livro Eu sou a verdade149. Passamos direto à questão da Palavra de Deus na Fenomenologia da Vida. Assim como a palavra do mundo assume as características do aparecer do mundo, as palavras da

146

Cf. Ibid, pp.91-92.

147

Ibid, p.95. O conteúdo entre parênteses é uma elucidação nossa.

148

Cf. Ibid, p.10

149

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Vida assumem também as características da Fenomenologia da Vida. Retomando brevemente as notas essenciais da fenomenologia henryriana, é possível pensar agora a relação Palavra-Vida, como condição de possibilidade da escuta da palavra que é Cristo.Temos, pois então, que se a palavra do mundo traz em si a possibilidade da mentira, a palavra da Vida (palavra de Deus) exclui definitivamente a mentira, sendo, portanto, uma palavra de Verdade. Isto só é possível porque existe uma identificação entre Verdade e Vida. Segundo a fenomenologia henryriana, "a Vida é verdade porque

se revela a si mesma e esta autorrevelação constitui o fundamento de toda verdade concebível"150. Juntamente a esta primeira nota, vislumbramos uma segunda perspectiva. Esta se refere ao fato de que a palavra da Vida é uma palavra afetiva, pois não pode ser indiferente ao que diz. Isto acontece porque está extremamente implicada naquilo que diz, uma vez que ao dizer, também se diz. A palavra da Vida, segundo Henry, "fala em um sentimento". Aqui se vislumbra a imanência radical da Vida que não pode escapar de si mesma. Assim sendo, não pode revelar ou anunciar outra coisa que não seja ela mesma neste abraço patético consigo mesma. Concluirá o autor: "A

Vida é uma palavra e uma palavra que fala de si mesma unicamente porque se experimenta a si mesma e se revela a si de forma patética, na imanência desta Afetividade primitiva"151.

Compreendendo Deus a partir da noção de auto-afecção da Vida, ou a Vida como experiência de si, Henry abordará o tema da Palavra de Deus como radicalmente diferente, uma vez que nela não há distância entre o que é dito e aquele que diz. Deus, ao dizer, se diz em sua Palavra. Sobre a possibilidade do conhecimento de Deus por parte do homem Henry dirá:

Se Deus é Vida, disso resultam duas consequências: primeira, algo sabemos sobre Deus. Segunda, não o sabemos por causa de nosso pensamento. Sabemo-lo porque somos viventes e porque nenhum vivente está vivo se não porta consigo a Vida, não como um segredo desconhecido por ele, mas como isso mesmo que experimenta sem cessar, como aquilo no qual ele se experimenta sem cessar, como sua própria essência e realidade

150

HENRY, Paroles du Christ, 98.

151

97 mesma. Se Deus é Vida então [...] o homem (como este vivente

que é e que se experimenta) conhece e ( experimenta) a Deus.152

Contudo, este conhecimento de Deus não se dá de outra forma a não ser pela escuta 'atenta' da sua Palavra. Assim, a ideia henryriana, que abre o discurso sobre a possibilidade humana de escutar a Palavra de Deus e que afirma a inteligibilidade da humanidade como possível somente na sua relação interior com esse absoluto de Verdade e Amor que é o próprio Deus153, encontra-se novamente respaldada no fim do seu discurso sobre a Palavra encarnada:

Já que só aquele que dispor em seu coração da Palavra original da Vida seria capaz de ouvi-la, escutá-la, ser-lhe fiel e, assim, ser salvo, não era pois plausível que esta palavra viesse entre nós para se dar ela mesma a nós? A Encarnação do Verbo, na carne de Cristo, é esta vinda da Palavra da Vida em uma carne semelhante à nossa. Então, para que essa Palavra de Deus seja efetivamente recebida por nós, não reside sua condição em que Cristo nos dê sua própria carne, que é a do Verbo, que se dê a nós em sua carne, unindo sua carne à nossa, de modo que esteja

em nós e nós nele, assim como ele está no Pai e o Pai nele?154

Temos então a encarnação da Palavra como condição de possibilidade para que o homem possa ouvir em plenitude a voz da Vida. Sobre os filhos da Vida, como potenciais ouvintes da Palavra, Henry dirá que é a geração do homem na Palavra de Deus, como Primeiro vivente, que permite a escuta daquilo que a Vida diz. Podemos escutar a Palavra da Vida, porque viemos dela155. Contudo, se as palavras de Cristo são palavras de um homem como nós, por que muitos não a compreendem , como dizem as Escrituras, possuem ouvidos e não ouvem (Jo 9, 27)? Isto ocorre "Porque eles somente

captam o sentido humano destas palavras reduzindo-as a preceitos morais"156. O centro de gravidade deste discurso se resume em pensar a seguinte questão: poderia o homem ouvir a partir da sua própria língua uma palavra que fosse dita em outra linguagem que

152

Ibid, pp.104-105. Os parênteses são nosso.

153 Cf. Ibid, p.15. 154 Ibid, pp154-155. 155 Cf. Ibid, pp.149-150. 156 Ibid, p.11.

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não a sua, que se tratasse da linguagem de Deus, ou da sua Palavra eterna? Henry não vê outra alternativa para pensar o tema a não ser a de tomar como ponto de partida as mesmas Palavras de Cristo. Ressaltando que a pretensão destas não é a de simplesmente transmitir uma revelação divina, mas a de ser em si mesma esta revelação, ou seja, a Palavra de Deus157. De fato, quando fala aos homens, como bem observa o autor, Jesus não se refere sempre a eles. Existe um discurso de Cristo sobre si no qual ele não fala de si mesmo como homem, mas como Filho de Deus. Esta forma de falar constituiu, inclusive, o motivo máximo de sua condenação: "Nós temos uma Lei, e conforme esta

Lei, ele deve morrer, porque se fez Filho de Deus" (Jo 19,7).

Sobre as condições de possibilidade de ser ou não um ouvinte da palavra existe uma aproximação entre a reflexão de Rahner e Henry. Para o teólogo alemão, o sujeito, entendido como evento da livre e gratuita autocomunicação de Deus, pode, a partir da Graça, ouvir esta palavra de vida. Isto porque possui em si mesmo a graça da vida, condição de possibilidade para a própria transcendência.

Ao se colocar analiticamente em questão e abrir-se para o horizonte ilimitado de semelhante questionamento, o homem já transcendeu a si mesmo, bem como todas as dimensões pensáveis dessa análise ou de auto-reconstrução empírica de si.158

No que diz respeito à peculiaridade da experiência da pessoa, o que caracteriza o homem como sujeito enquanto condição de possibilidade de ouvinte da palavra é justamente sua postura de abertura frente ao horizonte ilimitado do mistério da vida, colocando-se em questão. Este 'colocar-se em questão' exige do sujeito uma certa 'possessão de si', tal como nos indica a seguir o próprio autor:

Ser pessoa significa, então, a autoposse de um sujeito como tal em relação consciente e livre para com o todo. Essa relação é a condição de possibilidade e o horizonte prévio para que o homem [...] possa haver-se consigo mesmo em sua unidade e totalidade.159

157

Cf. Ibid, pp.13-14.

158

RAHNER, Curso fundamental da fé, p.43.

159

99

Este tema tocado pelo teólogo alemão, em seu Curso fundamental da fé, encontra-se magistralmente desenvolvido em uma de suas obras intitulada O ouvinte da

palavra160. A ideia de pessoa como autoposse, ou mesmo de "existencial sobrenatural"161 em Rahner nos remete à noção henryriana de "possessão" dos poderes oriundos da Vida. Neste sentido, estabelece-se uma conexão instigante entre as duas noções de sujeito. Por um lado, em Rahner, sujeito é aquele que, conscientemente, sabe-se possuidor de si mesmo enquanto evento gratuito e livre da autocomunicação de Deus. Por outro, em Henry, sujeito é aquele que se reconhece como filho no Filho e que exerce conscientemente os "poderes" da sua corporeidade, sabendo que estes mesmos significam a imanência da Vida absoluta na sua vida particular. Assim, em ambos os casos, o "poder" de ouvir a palavra se manifesta como possibilidade antropológica fundamental que não encontra sua raiz numa capacidade egocêntrica. De fato, este "poder" de ouvir advém da própria Graça que nos foi concedida pela Vida. No caso de Rahner, trata-se de um "poder" constitutivo da nossa humanidade enquanto somos evento livre e gratuito da autocomunicação de Deus. Não obstante, em Henry, refere-se a um "poder" transcendental, recuperando o sentido de transcendência como imanência da Vida em nossa carne.

Outro tema extremamente relevante emerge da reflexão henryriana na hora de pensar o homem como ouvinte desta Palavra da Vida. Trata-se da geração da humanidade na Palavra Primordial, que é Cristo. Esta concepção do homem no seio mesmo da Vida, através de sua Palavra, coloca-se, portanto, como a principal condição de possibilidade de ouvinte do mistério da Vida. Como os discípulos de Emaús, nosso coração se reaviva em um ardor de outro mundo e somos gerados enquanto ouvimos a Palavra da Vida. Diz Henry:

O princípio que permite compreender as Escrituras, é portanto, o mesmo que legitima as palavras de Cristo sobre si mesmo: a Palavra do Verbo em nós [...] A Palavra de Cristo em qualidade da do Verbo é a única fonte que nos dá acesso à intelecção dos textos sagrados, ela é o Espírito que, por vezes, produziu estes

160

Cf. RAHNER, Karl. Horer des wortes: zur grundlegung einer religionsphilosophie. Muchen: Kosel, 1963, 220p.

161

100 textos e que funda sua inteligibilidade. Somente o Espírito nos

permite conhecer o Espírito162.

Esta "Palavra do Verbo em nós" fundará o princípio de inteligibilidade de toda compreensão das palavras de Cristo, em suas três dimensões: sobre nós, sobre o mundo e sobre ele mesmo. No que se refere à proposta concreta de uma inteligibilidade primordial, a partir da exegese henryriana do prólogo de João, este será um dos temas do nosso próximo capítulo.

Convém terminar este tópico destacando algumas ideias valiosas encontradas na já referida obra de Konings, sobre o evangelho de João. A Primeira delas tem a ver com a interpretação de Jo 1,18. Destaca-se aqui o verbo "narrar - descrever". Neste sentido, tal versículo poderia ser entendido como segue: "ninguém conhece a Deus, mas o filho

unigênito que lhe é íntimo no-lo narrou". Assim, Jesus aparece como a Palavra de Deus

que narra o próprio Deus. A manifestação de Deus no cristianismo, que é autêntica fenomenologia da Vida, acontece, por excelência, por meio da Palavra encarnada, que nos conta sua vida, que é a vida de Deus. Ao nos narrar esta Vida através de sua existência encarnada, Jesus nos mostra, ao se revelar, o próprio Deus. Uma Fenomenologia da Vida não se faz possível sem esta narratividade da Palavra viva, ou da palavra que é, ela mesma, Vida. Destaca-se ainda a questão do nosso Deus que, ao se manifestar em seu Filho como Palavra encarnada, faz-nos intuir que podemos compreendê-lo, sobretudo, como comunicação. Deus é diálogo, e diálogo tem a ver com relação, e a base de toda relação deve ser o amor. Daí que a manifestação de Deus, em seu Filho unigênito, como Palavra que está voltada para o seio do Pai, e que se encarnando, narra a Vida de Deus, dando-nos a conhecê-lo, manifesta Deus mesmo como amor. E a essência do amor é a comunicação. O que fazem os enamorados? comunicam-se, declaram-se, cantam hinos, e ao cantar, também contam sua história de