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A Bacia de Entemena

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2. Inana e seu perfil em documentos pré-sargônicos

2.4 Inana em inscrições reais

2.4.1 A Bacia de Entemena

A inscrição mencionada foi gravada num artefato que eu gostaria de chamar de “Bacia de Entemena”. Trata-se do fragmento de uma bacia de basalto cujo diâmetro original era de mais de 40 cm (altura de 25,1 cm e largura 18,6 cm). Este fragmento foi adquirido em 1913 no comércio de antiguidades em Bagdá, e ao que tudo indica veio de escavações não autorizadas em Tello (a antiga cidade de Girsu). Atualmente encontra-se no Museu de Berlim, sob o número de inventário de VA 7248.608 Acima da imagem609 (cf. abaixo) encontra-se uma inscrição fragmentária que foi reconstruída

por Horst Steible como segue:610

608 MARZAHN, Joachim. Fragment eines reliefierten Steingefä ßes. In: JAKOB-ROST, Museum, 80. 609 Ibidem, 81.

610 STEIBLE, Horst. Die altsumerischen Bau- und Weihinschriften, Teil I: Inschriften aus Lagasch. Wiesbaden: Steiner, 1982,

249: Entemena 33. 1 1’ Para [Nanše] (1) 2’ a E’engurra de Zulum 3’ construiu; 4’ para Enki, 5’ o Senhor de Eridu, 6’ o Abzu de Pasirra 7’ construiu; 8’ [(para)] Ninhur[sag] (2) (quebrado) 2

1’ ([Quando ele/ela (= ND)]) tinha conferido[....], 2’ ele instalou para ele/ela (esta bacia) (no) bursag. (3) 3’ ...[....].

Em 2,1’, ND significa “nome divino”, e Steible observa que lhe parece obrigatória a completação com o nome da deusa Nanše: “dnanše]-<ra>”, cf. nota (1), embora a forma gramatical não

ocorra em outras inscrições de Entemena. Observa também que a proposta de completação das linhas seguintes – cf. nota (2) – apóia-se em outras inscrições deste rei. O termo bursag – cf. nota (3) – é comentado por ele como segue:

(3) Segundo Ukg. 4,2.1-3 = 5,2.3-5, bur-sag é atribuído à Baba; segundo Ukg. 10,3.7-4.1, ao Enlil; Ukg. 11.26-33 indica um

bursag de dhé-gír que é designada como a “[(sacerdotisa) lukur] [a]mada de Ningirsu”, enquanto em Ukg. 8,2’.4-5 a

atribuição fica incerta (Šulšagana(?)). Para bur-sag como parte de um templo que possivelmente pode ser relacionada com a “cozinha (do templo)”, cf. (...). Nesse lugar, bus-sag poderia designar também o próprio portador da inscrição, de modo que essa linha talvez deva ser traduzida “(esse recipiente) bur (da) primeira, ele lhe ergueu”; cf. para isso Ent. 32,2.2’-4’. 611

Portanto, os comentários de Steible se limitam a observações filológicas. Ele também inclui o texto sem maiores comentários entre as inscrições de Entemena (rei de Lagaš/Girsu em torno de 2450), embora o nome do doador fosse perdido, seguindo com isso a opinião comum estabelecida entre os sumeriólogos na base de outras inscrições desse rei (das quais foram preservadas 96).612

Reflexões sobre a possível identidade da deusa representada, certamente a divindade homenageada com a confecção e instalação desta bacia, encontram-se primeiramente com Marzahn. Ele descreve a imagem e destaca a coroa chifrada que é insígnia de divindades, sua farta cabeleira e os seis objetos que “crescem” de seus ombros, interpretando estes objetos como possíveis símbolos de espigas de papoula e interpretando o cacho como um grande cacho de tâmaras. Marzahn afirma que estes atributos identificam a deusa claramente como uma deusa da vegetação, mas que não permitem uma afirmação sobre seu nome. Desse modo, ele considera a interpretação freqüente dessa imagem como representação da deusa Nisaba, a deusa dos cereais, apenas como “não improvável”. De resto, ele lembra a construção de uma cervejaria (Brauhaus, “fábrica de cerveja”) para o deus da cidade, Ningirsu, atestada em outras inscrições de Entemena, e afirma que

“uma relação entre uma deusa dos cereais com cachos de tâmaras – elementos importantes da produção de cerveja – e a cervejaria do Ningirsu, atestada em inscrições, onde o recipiente poderia ter servido para atos cúlticos, permanece, em todo o caso, apenas uma suposição.”613

Uma tentativa de compreender melhor essa argumentação um tanto complicada, que parece se referir indiretamente a afirmações alheias e que junta num complexo emaranhado cereais e tâmaras, a deusa dos cereais Nisaba e Ningirsu, o deus da cidade de Lagaš, a produção de cerveja e cachos de tâmaras, deve levar em conta os elementos elencados em seguida.

611 STEIBLE, Horst. Die altsumerischen Bau- und Weihinschriften, Teil II:Kommentar zu den Inschriften aus Lagasch,

Inschriften ausserhalb von Lagasch. Wiesbaden: Steiner, 1982, 124.

612 Cf. sua introdução em STEIBLE, Altsumerische Inschriften, 249. 613 MARZAHN, Fragment, 80.

Os seis símbolos que aparecem por trás dos ombros da deusa são símbolos vegetais, como mostram outras representações que observam o mesmo padrão (número de seis, juntos a uma deusa, saindo três de cada ombro, detalhes vegetais como botões ou folhas etc.).614 O que chama a atenção é

Ištar Guerreira615

Esse fenômeno é interpretado como uma transformação dos antigos atributos vegetais de Inana em atributos belicosos que, especialmente no PDS, são fortemente acentuados (no caso da imagem aqui reproduzida: ênfase no poder através da coroa chifrada e através das asas; variedade de armas, dominação do leão e pose de vencedora na qual é reverenciada por outra divindade), sem abandonar a antiga caracterização através da estrela de oito pontas (e de seis objetos “crescendo de seus ombros”).616 Se esta interpretação for correta – e disso estou convicta –, é um forte argumento

para a identificação da deusa representada na Bacia de Entemena com Inana.

O objeto na mão da deusa da Bacia é claramente um cacho de tâmaras, não uma espiga de cevada ou de outra espécie de grãos. Como se conhecem representações de deusas que portam espigas (sempre representadas como uma haste reta e erguida)617, pode-se concluir que portadoras de

espigas são deusas relacionadas com grãos, e portadoras de cachos de tâmaras, deusas relacionadas com tamareiras e tâmaras. Este é mais um argumento para evitar a identificação da deusa com Nisaba.

614 Cf. as figuras (em parte também representadas com cacho de tâmaras) em DANTHINE, Album, no. 562, 864, 867 e 876,

e em SCHROER/KEEL, no.213, p.308-309.

615 SCHROER/KEEL, no.258 na p.353, e p.352 a descrição e identificação científicas: selo cilíndrico de pedra preta, altura

de 4,2 cm e diâmetro de 2,5 cm, do PDS, adquirido no comércio no Iraque, atualmente preservado no Museu do Instituto Oriental da Universidade de Chicago como A 27903.

616 Ibidem, 352. Cf. também fotos em WOLKSTEIN/KRAMER, capa e p.92, e a interpretação de WILLIAMS-FORTE, 193. Cf.

outras representações da Ištar bélica em SCHROER/KEEL, no.247, p.346-347, e em DANTHINE, Album, t.82, no.559. Para a discussão da Inana-Ištar bélica, cf. COLBOW, Gudrun. Die kriegerische Ištar: zu den Erscheinungsformen bewaffneter

Gottheiten zwischen der Mitte des 3. und der Mitte des 2. Jahrtausends. Munique: Profil-Verlag, 1991, 526p (nas p.148-151

consta o elenco de imagens do tipo aqui apresentado; sua interpretação está espalhada na obra inteira) e a discussão na Conclusão desta tese. Para a variante de raios saindo dos ombros de uma divindade (geralmente Utu), cf. GREEN, Anthony. Myths in Mesopotamian Art. In: FINKEL/GELLER, 151.

617 Cf. DANTHINE, Album, t.136, no.870; BLACK/GREEN, 96 (“barley stark”), 143. SCHROER/KEEL, 308, sem maiores

argumentos, tem: “possivelmente Nisaba, deusa dos cereais”.

que todas essas representações são relativamente antigas e que posteriormente desaparecem da iconografia, nesta forma concreta, mas que Ištar, em sua posterior representação bélica, a partir do PDS, aparece com o mesmo arranjo, mas na forma de armas: seis flechas ou lanças ou maças (variante: seis raios) destacando-se sobre seus ombros.

No comentário de Steible é correto que Entemena construiu uma cervejaria para Ningirsu618,

mas a afirmação de que “cachos de tâmaras” seriam “elementos importantes da produção de cerveja” é um tanto genérica e pouco exata. Ela deve ser especificada no sentido de que os sumérios produziam, em tempos antigos, mosto de tâmaras que, em textos modernos, é freqüentemente confundido com cerveja, e que a chamada “cerveja” de tempos posteriores (de Ur III adiante) era produzida na base não de cevada, mas somente de tâmaras. Infelizmente não foram preservados textos administrativos dessa cervejaria de Entemena, de modo que não podemos verificar as qualidades exatas dos ingredientes usados. No entanto, parece-me muito duvidoso que se tenha tratado de uma produção maior de mosto de tâmaras e não de cerveja na base de cevada.

Por outro lado sabemos de muitas outras atividades de construção de Entemena, elogiadas em outras inscrições (templos etc. para Enki, Ninhursag, Ningirsu, Gatumdu, Enlil, Ama.ušum.gal.ana, Nanše)619, e dispomos de 36 inscrições em “pregos” de argila e em “tijolos” (objetos simbólico-cúlticos

que acompanhavam construções públicas) que rezam basicamente assim:

Para Inana (e) para Lugalemuš, Entemena, o ensí de Lagaš, construiu a Emuš, o templo amado deles, (e) declarou diante deles: “Estes pregos de argila pertencem à Emuš!” Entemena, o homem que construiu a Emuš, seu deus protetor é Šulutul. Naquele tempo, Entemena, o en.sí de Lagaš, e Lugalkinešdudu, o en.sí de Uruk, concluíram uma aliança.620

Essa aliança, literalmente nam.šeš, “fraternidade” ou “confraternização” (de šeš, irmão), pôs fim a um tempo de guerras e outros conflitos violentos entre Lagaš e Uruk, aparentemente provocados por Lagaš621, e podemos imaginar que Entemena tenha investido generosamente em sinais palpáveis

dessa “confraternização”. Que esse investimento não deixou de surtir efeito, mostra uma outra inscrição, preservada também em várias cópias:

Para Inana (e) para Lugalemuš, Entemena, o ensí de Lagaš, o filho de Eanatum, do en.sí de Lagaš, construiu a Emuš, o templo amado deles. Entemena, cujo nome foi nomeado por Inana, o homem que construiu a Emuš – seu deus protetor é Šulutul.622

Reconheço que é complicado relacionar entre si documentos preservados aleatoriamente. Contudo, o auto-elogio de ter tido seu nome “nomeado” por Inana combina extremamente bem com a afirmação de oferecer a bacia àquela deusa que lhe conferiu “algo”. Este “algo” pode ser um bom nome (afirmação padrão de outros reis de Lagaš em relação com Inana)623, um tempo de bem-estar, ou uma

aliança proveitosa com a cidade “desta deusa”, que antes era inimiga. Se semelhantes tentativas de

618 Cf. as inscrições Entemena 2 em STEIBLE, Altsumerische Inschriften, 215 (é-bap.pìr). 619 Cf., por exemplo, Entemena 1, 8, 23 e 26, em STEIBLE, Altsumerische Inschriften, 212-227. 620 Entemena 45-73 com duplicados 87-95, ibidem, 260-264.271.

621 Cf. as inscrições dos reis anteriores Eanatum e Enanatum I, ibidem, 120-210. 622 Entemena 74 e 75 (com duplicados), ibidem, 264-265.

construir nexos e vínculos entre documentos materiais e filológicos preservados tiverem lógica, esta lógica privilegia Inana como a deusa representada na “Bacia de Entemena” e a caracteriza mais uma vez como doadora de vida boa e de abundância, em especial relação com tâmaras.

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