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Aspectos de gênero no Período da Terceira Dinastia de Ur (Ur III, 2112-2004)

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1.3 Aspectos da Vida na Suméria

1.3.5 Aspectos de gênero

1.3.5.6 Aspectos de gênero no Período da Terceira Dinastia de Ur (Ur III, 2112-2004)

1.3.5.6.1 Condições de vida de mulheres no Ur III

Também para a dinastia de Ur III dispomos de dados apurados principalmente acerca de mulheres da elite que estão abundantemente atestadas em textos contemporâneos e inscrições. As

le Proche-Orient Antique. Paris: Recherches sur les Civilisations, 1987, 189-201; WESTENHOLZ, Joan Goodnick.

Enheduanna, En-Priestress, Hen of Nanna, Spouse of Nanna. In: BEHRENS, Hermann; LODING, Darlene; ROTH, Martha Tobi. (org.). DUMU-E2-DUB-BA-A: Studies in Honor of Ake W. Sjöberg. Philadelphia: University Museum, 1989, 539-556.

470 HALLO, Women, 29.

esposas dos reis diferenciam-se agora em esposa principal (“rainha”) e esposas secundárias. Conforme a antiga importância da esposa do ensí, também as rainhas e as outras esposas (e em parte filhas) reais de Ur III tinham grande importância na economia. Elas continuavam possuindo suas próprias oikoi (como é.bau e é.é.mí, e estas continuavam sendo instituições públicas de mesmo direito como as oikoi administradas pelos reis e seus filhos) e possuíam fora delas terras e empresas “privadas” de produção e de comércio. Pela primeira vez é atestada a continuação desse tipo de atividades econômicas de uma rainha depois da morte do seu marido, embora a regra tenha sido que os direitos da esposa do soberano fossem extintos com o fim do reinado dele.472 Isso mostra que uma

grande parcela dos poderes e direitos de mulheres (pelo menos da elite e em posições de destaque nacional) não era de direito e mérito próprio, mas dependia dos seus esposos e dos cargos e poderes deles. Ainda assim, parece-me que esta parcela era muito maior do que em outras sociedades do Antigo Oriente ou em algumas sociedades modernas dessa região.

Esse tipo de dados é também aduzido por Bahrani, em sua análise de estátuas votivas. Ela descobriu que, de modo geral, foram preservadas muito mais estátuas masculinas do que femininas, mas que, para certos períodos, o número relativo de estátuas femininas podia variar muito. A explicação tradicional de que tais fenômenos indicassem o declínio do poder (inclusive aquisitivo) e da autonomia (econômica) de mulheres no decorrer da história da Suméria é rebatida por ela aduzindo detalhes das evidências do alto grau de poder e autonomia econômicas das mulheres da elite do Ur III. Mostrando que nesse período, do qual foram preservadas proporcionalmente mais estátuas femininas do que em tempos anteriores, o número de estátuas masculinas preservadas tinha diminuído, ela descarta a possibilidade de usar um detalhe dessa espécie para afirmações sobre o poder econômico de homens e de mulheres, e enfatiza que, também em geral, textos econômicos, administrativos, jurídicos etc. não atestam de modo algum o declínio da posição sócio-econômica de mulheres ao longo da história da Suméria.473 Parece-me que são argumentos pertinentes, mas eles não anulam minha

reflexão oferecida acima acerca da dependência desses poderes femininos de poderes masculinos.

Enquanto, no setor econômico, mulheres da elite tinham um poder e uma autonomia que provavelmente era ainda maior do que no PDI, observa-se um forte aumento de obrigações e grande falta de escolha política, do tipo que se tornou visível pela primeira vez sob Sargão. As princesas estão sendo instaladas como sumo sacerdotisas de Ur (além de assumirem outros cargos sacerdotais nas

472 Cf. BAHRANI, Women, 104-109; HALLO, Women, 31; HALLO/SIMPSON, 78-81; MIEROOP, Women, 57-58; SELZ,

Sumerer, 88-106; WINTER, Women, 190.

demais cidades, agora “províncias”), e é-lhes atribuída uma função nova, de suma importância: seu “emprego” em casamentos diplomáticos. Correspondentemente, muitos príncipes são instalados como governadores de províncias ou como generais militares, enquanto o sucessor ao trono é casado preferencialmente com uma princesa estrangeira. O quadro geral que se forma assim é que todos os membros da família real tinham como principal função e razão de vida: manter (e ampliar, na medida do possível) o reinado da dinastia. Sabe-se das seguintes “alianças” feitas através do emprego de filhas e filhos:

Enirgalana filha de Urnammu e Watartum sumo sacerdotisa de Ur ??? filho de Urnammu e Watartum sumo sacerdote de Uruk (Inana)

Šulgi filho de Urnammu e Watartum casado (também) com Taramuram, princesa de Mari Enirziana filha de Šulgi e ? sumo sacerdotisa de Ur

Liwirmitašu filha de Šulgi e ? rainha de Markaši (centro-irânico)

??? filha de Šulgi e ? (uma) esposa do rei de Anšan (irânico-oriental) Ursin filho de Šulgi e ? governador de Ur e Der

Šuešdar filho de Šulgi e ? governador de Gudua

Amarsin filho de Šulgi e Taramuram casado (também?) com Abisimti (princesa da região de Diyala) Ibbisin filho de Šusin e Mama casado com Gemeënlila (sua irmã?)

Tukinhatamigriša filha de Ibbisin e Gemeëenlila (uma) esposa do rei de Zabšali (litoral irânico).474

A crescente literatura de “hinos reais”, poemas de amor e de outros gêneros literários afins, pode atestar a mesma ideologia evidenciada no hieros gamos475, e não posso deixar de ao menos

perguntar pela possível relação entre estes dois elementos novos na cultura suméria e a política e ideologia dos casamentos diplomáticos.

Como último dado acerca de mulheres da elite deve ser lembrado que alguns textos da literatura real apresentam indícios de terem sido compostos por mulheres: Watartum é a provável autora da lamentação pela morte de seu marido Urnammu476, e Šulgisimti, a autora de uma canção de

ninar para seu filho Amarsin477.

Também a situação de mulheres das camadas mais baixas destaca-se principalmente pela sua importância econômica. Tais mulheres – e seus filhos e suas filhas – continuam sendo parte importante da mão de obra barata nos grandes esquemas de produção, especialmente em oficinas de tecelagem e

474 Ibidem, 108-109; HALLO, Women, 31-32; HALLO/SIMPSON, 78-84; MIEROOP, Women, 58-61; SELZ, Sumerer, 88-106. 475 Cf. abaixo, o Item Conclusões.

476 ETCSL 2.4.1.1, “Lamentação pela morte de Urnammu” (com descrição de sua vida no inframundo). O primeiro a propor,

na base de evidências textuais (por exemplo, a presença de uma voz que lamenta especialmente os sofrimentos da viúva), a autoria de Watartum foi Wilcke: WILCKE, Claus. Eine Schicksalsentscheidung für den toten Ur-Nammu. In: FINET, André (org.). Actes de la XVIIe Rencontre Assyriologique Internationale. Université Libre de Bruxelles 30 Juin-4 Juillet 1969. Ham- sur-Heure: Comité belge de recherches en Mésopotamie, 1970, 81-92. Cf. para esse texto, embora sem posicionamento acerca da autoria: KRAMER, Samuel Noah. The death of Ur-Nammu and his descent to the Netherworld. In: Journal of

Cuneiform Studie, 21. Baltimore: American Society of Oriental Research,1967, 109.

477 ETCSL 2.4.2.14. O argumento para a autoria feminina é que o texto descreve as noites da mãe que vigia ao lado do filho

em grandes moinhos. Seu pagamento, em rações de cevada e de azeite, costumava ser muito mais baixo do que o pagamento de homens: temos exemplos de que receberam entre 30 a 40 litros por mês, com o máximo de 60 para uma mulher altamente qualificada, enquanto rações para homens eram no mínimo 60 litros e podiam chegar até 300. Mieroop, que juntou estes dados, faz questão de comentar que, desta maneira, mulheres tinham um papel extremamente ativo e importante na vida econômica nos dois níveis da sociedade suméria, tanto no gerenciamento de “empresas” que estavam entre as maiores que existiam, como na produção barata e lucrativa nelas organizada.478

1.3.5.6.2 O “socioleto” eme.sal

A última pedrinha do mosaico das questões de gênero é um fenômeno que se evidencia somente em cópias pós-sumérias de textos, mas que deve ter estado presente já nos próprios períodos aqui discutidos: a possível e assim-chamada “linguagem de mulheres”.479

O dialeto principal da Suméria é chamado eme.gir15 (o que significa provavelmente “língua

principal”), mas existe uma variante, caracterizada por diferenças fonéticas e algumas palavras específicas, chamada eme.sal. O lexema sal significa “fino” (o que corresponderia à pronúncia mais fina de certas vogais), e em acádico, emesallu é “gosto fino, língua fina, fala gentil”. Porém há interpretações modernas que sugerem a tradução como “linguagem corrompida”. Essa variante da língua suméria parece ser uma espécie de “dialeto literário” porque é usada em determinados textos, como hinos e lamentações, mas pode ocorrer também em trechos de outras composições literárias, e aqui especialmente no discurso direto de mulheres.

Os textos conhecidos mais antigos que contêm trechos em eme.sal são do início do PBA, portanto, de uma época quando o sumé rio já tinha deixado de ser uma língua falada, e a grande maioria é posterior.480 Em cânticos cúlticos, principalmente hinos de louvor a divindades e lamentações

sobre a destruição de templos e cidades (Ur, Eridu, Nipur), esse dialeto é usado na fala de deusas, e muitos cantos pertencem ao contexto de Dumuzi. Também em cânticos de amor aparece eme.sal, aqui na fala de Inana. Em mitos acontece o mesmo, por exemplo, em “Inana e o Inframundo” (29-67) e em

478 MIEROOP, Women, 65-66.

479 Cf. para as descrições gerais que seguem: THOMSEN, Marie-Louise. The Sumerian language: an introduction to its

history and grammatical structure. Copenhague: Akademisk Forlag, 1984, 284-294.

480 Lembremos que as cópias mais antigas de textos literários sumérios conhecidas são dessa época, mas que há textos

“Inana e os Me” (A15-16.21-26). Contudo, eme.sal não é usado sempre que falam mulheres humanas ou divinas.

Não existe acordo sobre a caracterização mais acertada de eme.sal: é considerado ou como um dialeto local ou como linguagem de mulheres (ou seja, como “socioleto” em vez de dialeto). Quem prefere a teoria do dialeto argumenta com o alto grau de fatores desconhecidos em seu uso no material preservado que não permite outra interpretação. Quem considera a possibilidade de ser uma linguagem de mulheres, amplia e concretiza os argumentos, como, por exemplo, Diakonoff481. Ele

afirma o caráter de linguagem de mulheres na base de evidências internas e de paralelos antropológicos. Esses paralelos mostram a existência do tabu que existe em várias culturas, especialmente culturas de línguas arcaicas e ergativas, de mulheres usarem palavras e a pronúncia “de homens”. Isso gera geralmente alterações fonéticas e léxicas, mas não gramaticais, exatamente como ocorre no caso de eme.sal. Assim se explicaria a ocorrência de eme.sal em cânticos cúlticos, pois estes eram recitados por sacerdotes gala (kalu)482, e sendo que estes, como eunucos, não teriam sido

considerados homens, teriam precisado usar a linguagem de mulheres.

Essa tese já não pode ser mantida. Conhecemos linguagens de tabu com as mesmas características que não são usadas exclusivamente por mulheres, mas na comunicação entre parentes próximos, tanto por homens como por mulheres (por um homem que se dirige a sua sogra, ou uma mulher que se dirige ao seu genro). E não conhecemos nenhum texto em que eme.sal aparecesse como registro de uma fala real de uma mulher (por exemplo, em documentos jurídicos que citam depoimentos de mulheres). No que se refere aos sacerdotes kalu, vários estudos mostraram que a recitação de cânticos cúlticos não era o privilégio de uma única categoria de sacerdotes.483 Além disso,

sabemos que grande parte do sacerdócio era feminina, e não há nenhum sinal de que teriam existido versões “adaptadas” de cânticos para o uso por sacerdotisas. Também a interpretação de que “eunucos não eram considerados homens” não pode ser mantida, segundo os nossos conhecimentos atuais da complexidade de questões de gênero na Suméria. De modo geral, a identificação de eme.sal como “socioleto” é dificultada pela impossibilidade de comprovar um claro grupo sócio -linguístico que o tivesse usado. Tudo indica, portanto, que era um dialeto literário cujo caráter e extensão ignoramos, e uma eventual importância para questões concretas de gênero deve ser verificada de caso em caso.

481 DIAKONOFF, Igor M. Ancient Writing and Ancient Written Language: Pitfalls and Pecularities in the Study of Sumerian.

In: Assyriological Studies, 20. Chicago: University of Chicago, 1976, 113-115.

482 A observação de Rohrlich, de que eme.sal era uma língua particular usada por “deuses femininos e sacerdotes”

confunde os níveis de seu uso e é uma generalização incorreta que deve estar baseada nesse tipo de considerações; cf. ROHRLICH, 87, e acima, nota 125.

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