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Introdução ao mito “Inana e a Eana”

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3 Inana e seus conflitos em narrativas míticas

3.2 Inana e a Eana

3.2.1 Introdução ao mito “Inana e a Eana”

O mito “Inana e a Eana” é tradicionalmente chamado “Inana e An”702 ou, segundo Johannes

Jacobus Adrianus van Dijk, que o reconstruiu primeiro, “Inana rouba o ‘grande céu’”703. No ETCSL foi

reconstruído a partir de dois tabletes encontrados em Nipur, da 1ª DB, e de um pequeno fragmento encontrado em Uruk, do PBA.704 Na base de vários indícios (ortografia, linguagem e também uma

suposta referência a este mito num texto de Enheduana), van Dijk concluiu que sua composição e

702 Cf. ETCSL, 1.3.5 (antigas edições do ETCSL registraram esse mito sob o título genérico “Narrativa mítica de Inana”). 703 Título usado na primeira reconstrução: DIJK, Johannes Jacobus Adrianus van (†). Inanna raubt den "großen Himme l": ein

Mythos. In: MAUL, Stefan M. (org.). tikip santakki mala basmu: Festschrift für Rykle Borger zu seinem 65. Geburtstag am 24.

Mai 1994. Groningen: Styx, 1998, 9-38.

704 Cf. ETCSL 1.3.5, Transliteration, Sources: CBS 1531 = Segmento B; YBC 4665 = Segmento C e D; W 16743ac / AUWE

23 no. 101 = Segmento A. A reconstrução de van Dijk (falecido antes de sua publicação) compreende um tablete bilíngüe posterior (CBS 3832, do PHC), paralelo com YBC 4665 e desconsiderado na edição do ETCSL. Incluído na edição do ETCSL fo i o fragmento de Uruk, apresentado, mas não traduzido e integrado por van Dijk. Cf. para esse fragmento: DIJK,

Inanna, 12.38 (com cópia do tablete); CAVIGNEAUX, Antoine. 1996. Uruk, Altbabylonische Text aus dem Planquadrat Pe XVI-4/5, nach Kopien von Adam Falkenstein. Mainz: Philipp von Zabern, no.101 (com cópia do tablete); ZÓLYOMI, Gábor.

primeira fixação por escrito devem ser datadas no PDI.705 Lembremos que essa mesma conclusão

vale, com argumentos variados, para muitos mitos sumérios, embora não conheçamos de ne nhum deles cópias confeccionadas no PDI.

A compreensão abrangente de IeE é prejudicada por lacunas no texto, principalmente na sua primeira metade. Contudo, é claro que o tema principal é a pertença da Eana a Inana que viajou até o céu para “conquistar” a Eana para Uruk, e é possível reconstruir uma visão geral do seu conteúdo:

Introdução A ???.1-7 + B1-6

1. Início: Apresentação A???.1-7 2. Decisão de Inana de “conquistar” a Eana B1-6

1. Inana procura Utu B 7-23 (...)

1.1 Início do diálogo entre Inana e Utu 7-15 1.2 Inana explica a decisão de “conquistar” a Eana 16-23 (lacuna de cerca de 23 linhas) ...

2. Inana viaja para “conquistar” a Eana C1-18 (...) / D1-38

2.1 Início da viagem, descrição de perigos C1-18 (lacuna de 17 + 6 linhas: fim de C, início de D)

2.2 Adagbir alerta contra outros perigos D1-12

2.3 Descrição de perigos 13-15

2.4 Inana indica a solução 16-19 2.5 Adagbir realiza a solução indicada, aparece a Eana 20-25 2.6 Šulazida ajuda a levar a Eana 26-28 2.7 Inana toma posse da Eana 29-38

3. Confirmação da posse da Eana D39-60

3.1 Lamento de An: Inana tornou-se maior que ele 39-45 3.2 Lamento de An: Inana possui a Eana 46-55 3.3 Confirmação da “conquista” 56-60

Conclusão: superioridade de Inana, fórmula conclusiva 61-62

Minha caracterização inicial muito genérica do tema central do mito, “pertença da Eana a Inana”, tem seu motivo nas interpretações contrastantes da narrativa. Uma leitura que segue o texto tal como ele se apresenta hoje pode levar a entender o que é afirmado várias vezes e reforçado pelo título criado por van Dijk: que Inana “roubou” a Eana de An, ou seja, que a Eana de Uruk era originalmente um templo de An e que apenas posteriormente passou a ser um templo de Inana. Uma leitura feminista crítica pode entender o exato contrário: que a versão original do mito, sobre a origem celeste deste templo de Inana, foi modificada no sentido de abrir uma brecha para o domínio de An sobre ele.

Esta segunda interpretação, a minha, baseia-se na análise feminista crítica dos dados científicos atualmente disponíveis. Hoje em dia, a sumeriologia considera como fato comprovado que a

Eana era originalmente, ou seja, em todo o PU e PDI, o templo exclusivo de Inana e, além disso, seu templo principal (ao lado de outros em outras cidades). Esta é a única conclusão cientificamente correta a que os dados arqueológicos e literários discutidos no Capítulo 1 permitem chegar: no PU não havia culto de An em Uruk, e em toda a Suméria, An era uma divindade cujas tradições e cujo culto começaram a emergir apenas no fim do PDI. Nos inícios da sumeriologia, esses dados ainda não eram conhecidos, e a denominação genérica do Templo Branco de Uruk como “Templo de An” ou “Zigurate de An” contribuiu para interpretações errôneas que ignoravam os dados corretos: o Templo Branco é do PGN (posterior ao PU), e o zigurate de Uruk, do reinado de Urnammu (Ur III). Até mesmo o templo construído nele estava dedicado unicamente ao culto de Inana, como mostram as inscrições em várias tábuas e pregos de bronze: “A Inana, a Senhora da Eana, à Senhora dele, Urnammu, o homem forte, o rei de Ur, o rei da Suméria-Acâdia, construiu seu templo, restaurando(-o) para ela.”706 A comparação

com outras inscrições de Urnammu (por exemplo, do zigurate e templo de Enki em Eridu707) mostra

duas particularidades destas inscrições que se somam a outros dados acerca do senhorio de Inana na Eana: o epíteto explícito “Senhora da Eana” (outras divindades são mencionadas sem epítetos) e o acréscimo “restaurando-o para ela” que evidencia a continuação entre a Eana anterior e a nova, mais majestosa. Apenas mais tarde, no PBA, o culto era dedicado a Inana e também a An.708

Além dessas dificuldades de obter e processar informações corretas, havia e ainda há a dificuldade de visões androcêntricas e, de certo modo, monoteístas. As gerações antigas de assiriólogos e sumeriólogos, compostas quase exclusivamente por homens e parcialmente por homens comprometidos com as religiões cristã e/ou judaica, preferiram construir para a figura de An a visão de uma divindade suprema única masculina, um “Deus do Céu” que, ao máximo, tinha uma paredros, inclusive para justificar e apoiar construções semelhantes no âmbito da religião de Israel. Deusas de menor influência milenar do que Inana-Ištar, por exemplo, Baba, foram mais generosamente aceitas como “donas” de templos principais de cidades (de Lagaš), uma aceitação facilitada pela tradição de ela ser a “esposa” de Ningirsu, outra divindade principal de Lagaš. Em contraste, o fato de Inana não estar submetida e controlada pelo “casamento patriarcal” com algum deus, de ela se aproximar perigosamente do perfil de uma Deusa suprema única do Céu, causou, desde os tempos sumérios tardios até os nossos, um extremo desconforto em determinados círculos. Esse desconforto resultou

706 Cf. STEIBLE, Neusumerische Inschriften II, 105-106: Urnammu 13. Os oito objetos que portam esta inscrição provêm de

Uruk, alguns foram encontrados na Eana e in situ, ou seja, na camada do zigurate que corresponde à época de Urnammu.

707 Cf. abaixo, Item 3.3, nota 764.

708 Cf., por exemplo, inscrições encontradas na Eana, dos reis Sinkašid e Anam (séc. 19, PBA) que dedicam edifícios e

objetos da Eana a Inana, mas mencionam também An: FRAYNE, Douglas. The royal inscriptions of Mesopotamia, Early

Periods Volume 4: Old Babylonian Period (2003-1595 BC). Toronto: University of Toronto Press, 1990, no.7, p.452; no.2,

em transformações antigas de seu perfil encontrado nas primeiras fontes, e em interpretações modernas que vão desde um androcentrismo filógino até especulações sexistas ou misóginas.

No caso concreto da bibliografia acerca do mito IeE, não existe nenhuma literatura secundária ou menção mais substanciosa do mito além das duas obras mencionadas de van Dijk e de Gábor Zólyomi, e uma terceira de autoria conjunta de Zólyomi e David Brown709, de modo que a discussão

com estes autores pode ser detalhada.

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