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A interpretação do AN simples e em forma de roseta

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2. Inana e seu perfil em documentos pré-sargônicos

2.1.2.2 A interpretação do AN simples e em forma de roseta

Também o ideograma AN, a “estrela”, tem uma estreita relação com Inana, especialmente em sua forma mais elaborada, a roseta. A equação da estrela com a roseta foi documentada pela primeira

512 Cf. abaixo, o próximo Item, 2.1.2.2.

513 JAKOB-ROST, Museum, 55; MOORTGART-CORRENS, Ursula; BÖCK, Barbara. Die Rosette – Ein Schriftzeichen? Die

Geburt des Sterns aus dem Geiste der Rosette. In: Altorientalische Forschungen, 21. Berlim: Akademie-Verlag, 1994, 359- 371. Para detalhes, cf. abaixo, Item 2.1.2.2.

vez em 1922, por Deimel, em sua lista dos “sinais cuneiformes arcaicos” (LAK; entende-se por arcaico o período de PU)514:

No verbete acima reproduzido, LAK 8, Deimel afirma que o sinal “Stern” (estrela) ocorre passim em todos os textos por ele analisados, e registra as referências de alguns textos e o valor “R” do sinal. Também acrescenta, como variantes, o desenho de uma estrela de 12 pontas, como produzido com um estilete pontiagudo, e o desenho de um “R enfeitado:” (verziertes R:) na forma de uma “roseta”. Na última coluna consta o sinal em sua forma final, neo-assíria515. O exemplo concreto da “roseta”

reproduzido nesse verbete provém do tablete VAT 12606 e é descrito por Deimel como “sinal ‘an’ desenvolvido para uma estrela de oito pontas”.516

Enquanto Deimel focalizava o caráter de estrela também quando se trata da forma mais elaborada, surgiu em outras pesquisas a caracterização desse AN mais desenvolvido e enfeitado como “roseta” e sua interpretação como “flor estrelar” (Sternblume), o que põe o acento em “flor” e não em “estrela”. Uma das primeiras interpretações dessa forma do AN no sentido da combinação de estrela e flor estabelece também explicitamente sua identificação com Inana. É de Walter Andrae e está dedicada à discussão de uma bacia preservada parcialmente no Museu Britânico, parcialmente no Museu de Berlim. Gostaria de denominá-la de “Bacia da Cabana”, porque a cena principal gravada nela representa uma “cabana de nascimento” flanqueada por dois MUŠ, ou seja, uma cabana sob a proteção de Inana517. Trata-se de uma bacia de alabastro-calcário, com cumprimento de 96 cm, largura

de 35 cm e altura de 15 cm, encontrada em Uruk, proveniente provavelmente da segunda metade do 4º milênio, ou seja, do PUM ou do PUT.518 Em cada uma das duas faces laterais há uma imagem

simétrica semicircular, em baixo relevo: no centro estão dois MUŠ, com suas cabeças, voltadas para fora, pairando sobre duas ovelhas, uma de cada lado; e na frente de cada ovelha, uma roseta de oito pétalas preenche o restante da superfície.

514 DEIMEL, Liste, no.8. A abreviação oficial dessa obra é LAK (de “Liste archaischer Keilschriftzeichen”); a identificação dos

sinais nela registrados segue os números que o autor lhes atribuiu. Portanto, aqui se trata do sinal “LAK 8”.

515 Cf. a apresentação do desenvolvimento do sinal “dingir” acima, Item 1.3.4.2. 516 DEIMEL, Schultexte, 27, e 25* a descrição do no.14.

517 Cf. a discussão dessa cena abaixo, Item 2.1.4.1.

518 As duas partes conhecidas da bacia foram adquiridas no comércio local e provieram de escavações irregulares. A maior,

hoje no Museu Britânico, é registrada como WA 120000, a menor, no Museu de Berlim, como VAT 12654. Para as descrições gerais dessa bacia, cf. AMIET, Glyptique, 77-78 e t.42, fig.623; GOFF, 114 e fig.470 (reproduzida abaixo em adaptação minha); MOORTGAT-CORRENS, 363-364 (com foto); e a breve menção, sem figura, em SCHROER/KEEL, 288.

Andrae enfatiza explicitamente a identificação destas rosetas (“Sternblumen”) com o “sinal divino” AN e as relaciona com Inana (chamada por ele de Ištar), lembrando também da observação de Deimel.519 No âmbito de reflexões mais amplas, ele desenvolve essa interpretação como segue:

As flores estrelares nas duas faces laterais não são, de modo algum, meros ornamentos para encher a superfície, mas um elemento que, como símbolo legítimo, serve para tornar visível algo invisível. Entre todas as criaturas, a flor é a mais próxima ao cósmico, por causa de sua forma estrelar. (...) Mesmo se as flores da bacia de calcário não devessem ser interpretadas como estrela divina e em relação com os feixes com argola, teriam sentido somente num nível superior, não no terrestre.520

Adam Falkenstein, um dos escavadores de Uruk e ao lado de Deimel o maior especialista em ideogramas e sinais cuneiformes nessa primeira geração de sumeriólogos, confirma e amplia esta interpretação do AN, referindo-se a sua ocorrência nas camadas arqueológicas de Uruk:

Permanece obscuro se a imagem da estrela, o posterior determinativo divino (Zeichenliste no.192-193), que já ocorre na camada IV juntamente com o sinal da deusa Inana (no. 208), era usada nesse sentido já naquela época. Mas é bem possível, sendo que a relação do símbolo de Inana com a flor estrelar de oito pétalas na face lateral da bacia de calcário proveniente de Uruk, do Museu Britânico, dificilmente permite outra interpretação do que “deusa Inana”. Na camada III é indubitável que ocorra nessa função.521

As dúvidas de Falkenstein acerca do uso do AN na camada IV de Uruk foram resolvidas a partir dos anos 70, quando começaram as análises sistemáticas dos tabletes “arcaicos” de Uruk522, e

principalmente pelas monografias de Krystyna Szarzynska523. Todas elas comprovaram que o AN, a

estrela de seis ou oito ou dez ou doze pontas, é usado com o sentido “divindade” já nos primeiros textos escritos com ideogramas, ou seja, desde o PUT que corresponde à camada Uruk IVa, e que ele tem freqüentemente uma relação especial com Inana. Além disso, deve-se lembrar da presença do AN em forma de roseta nas paredes da Eana, através das plaquetas discutidas no Item anterior.

519 ANDRAE, Säule, 25.

520 Ibidem, 38. Ocasionalmente, Andrae lembra dessa interpretação quando interpreta outras obras de arte mesopotâmicas,

por exemplo, nas p.53.60.68.

521 FALKENSTEIN, Texte, 35.

522 Cf. para alguns dos resultados desse projeto de pesquisa: NISSEN, Frühe Schrift, e NISSEN/GREEN.

523 SZARZYNSKA, Krystyna. Offerings for the Goddess Inanna in Archaic Uruk. In: Revue d’Assyriologie, 87. Paris: Gabalda,

1993, 7-29; IDEM. The Cult of the Goddess Inana in Archaic Uruk. In: NIN: Journal of Gender Studies in Antiquity, 1. Leiden: Brill, 2000, 63-74; cf. abaixo, Item 2.3.1.

Ursula Moortgart-Correns, a única assirióloga que recentemente (1994) discutiu explicitamente a relação entre Inana e o AN em sua forma de roseta, e que oferece um elenco de outros cientistas que aplicaram com coerência a identificação da roseta com o “sinal divino”, documenta essa relação com ocorrências de várias épocas, desde o PGN até o PDI III, reunidas no quadro que segue: 524

A primeira linha indica a época (PGN, PDI I-II, PDI II-IIIa, Fara = PDI II), a segunda apresenta um exemplo concreto da forma da roseta, a terceira registra onde e quando o objeto foi achado, e a quarta indica a forma contemporânea simples do AN (dingir e acádico ilum).

Enquanto essa documentação, muito detalhada e coerente, não deixa dúvida acerca da equiparação entre a estrela e a roseta, parece-me difícil seguir a suposição de Moortgat-Correns de que o sinal simples AN deveria sua formação à roseta. Ela mesma descreve a composição da roseta apresentada no verbete LAK 8 (exemplo “d” de seu quadro) como muito mais complexa do que o AN simples: em vez de cruzar quatro impressões do estilete com ponta de cunha são desenhados um círculo e oito raios saindo dele, e as pontas desses raios estão conectadas pela impressão de pequenas cunhas, duas para cada raio. Além disso, ela deixa de levar em conta que a forma mais antiga do AN, antes do uso de estiletes com pontas de cunha, era o resultado de simples cruzamentos de linhas traçadas com um estilete pontiagudo.525

Desse modo parece-me que sua observação do parentesco entre dingir (AN) e roseta é pertinente, tanto quanto as observações formuladas nas décadas anteriores, mas que não é o AN que

524 Cf. MOORTGART-CORRENS; o artigo mostra a constância desse símbolo de Inana-Ištar até a época neo-babilônica. 525 Ibidem, 362-63.

deve sua existência à roseta, e sim a roseta que é uma representação mais elaborada e enfeitada do

AN, como já observou Deimel ao chamá-la de “R enfeitado”. Também se deve notar que pesquisadores

mesclam constantemente a caracterização como “roseta” e a caracterização como “estrela (de oito pontas)”, o que reflete as duas variantes do acabamento: ora maior caráter de estrela, ora maior caráter de roseta. A presença de um “cerne redondo” e de “pétalas, embora levemente estilizadas”, observada por Moortgat-Correns e usada como argumento para concentrar-se na roseta como flor526, verifica-se

somente em uma parte dos símbolos. Por outro lado, sua interpretação quase casual do termo

Sternblume, flor estrelar, capta belamente uma qualidade fundamental desse “símbolo real” que, onde

quer que apareça, torna real a presença da deusa Inana: ele é “uma combinação de céu e terra, ou dois aspectos da mesma idéia do divino”527.

Como resultado pode ser registrado que o AN, muito antes de ser o nome privativo de uma divindade masculina identificada com o “céu”, era um ideograma que designava “o divino” por excelência, tanto em sua qualidade celeste (estrela – distante, imponente, dominador e transcendente) como em sua qualidade terrestre (flor – próxima, vulnerável, doce e imanente). Essas duas vertentes do divino foram atribuídas de modo especial a Inana, ao simbolizar a presença dela com um AN, seja como estrela (que posteriorme nte indica sua presença especificamente como Inana Vênus528), seja

como flor (que nas evidências mais antigas indica principalmente sua presença em âmbitos de alimentação). Ao longo da apresentação de outros aspectos e caracterizações de Inana vai se verificar que, na esteira da patriarcalização da religião, sua imagem perdeu sucessivamente essa tensão bipolar vivificadora: a figura de Inana, e principalmente de Ištar, foi caracterizada sempre mais unilateralmente como divindade astral-celestial, a ponto de surgirem os conflitos com a figura de An, o deus do céu, quando essa foi introduzida e promovida na religião da Mesopotâmia com crescente pretensão monopolar. Mas vai se verificar também que, contrariando lógicas simplistas, algo da antiga qualidade “terrestre”, próxima e imanente, passou para a essa imagem celestial de Inana, em sua manifestação da Vênus que é o mais “doce” e “vulnerável” dos três grandes corpos astrais venerados na Suméria.

526 Ibidem, 363.

527 Ibidem, 365. A formulação original: “eine Kombination von Himmel und Erde oder zwei Aspekte ein- und derselben Idee

des Göttlichen” indica que a própria flor estrelar “é” esses dois aspectos.

528 A representação iconográfica de Inana Vênus é muito freqüente nas épocas suméria e babilônico-assíria, mas sua

caracterização lingüística como mul ud (Estrela da Manhã, Estrela d’Alva), mul.an.usan (Estrela do Entardecer / da Noite, Estrela Vespertina) ou muldili.bat (“Estrela Singular”, Vênus) é menos freqüentes em inscrições ou textos pré-sargônicos,

aumentando principalmente a partir do PBA; cf. a discussão de Inana (de) kur e Inana Vênus nos Itens 2.2.1; 3.4.3.8; 3.5 e nas Conclusões. Uma interpretação imediata da representação iconográfica de Inana como Estrela Vespertina em contextos do pastoreio é oferecida em BALZ-COCHOIS, 49-50, que considera a hora do crepúsculo como a hora propícia ao desastre (ataques de animais ou de inimigos) ou ao amor, ambos sob o “olhar” de Inana.

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