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Uma interpretação feminista do mito “Inana e a Eana”

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3 Inana e seus conflitos em narrativas míticas

3.2 Inana e a Eana

3.2.3 Uma interpretação feminista do mito “Inana e a Eana”

Esboçando agora uma análise feminista do mito “Inana e a Eana”, baseio-me na seguinte hipótese: o texto atual do mito reúne várias tradições e várias camadas de releituras que vão desde uma simples e não polêmica etiologia da Eana em Uruk como templo de Inana até uma releitura que propaga a legitimação (polêmica) do fato de o culto de An ter sido introduzido e sucessivamente ter dominado na Eana de Uruk. Miticamente falando, isso quer dizer: o fato de An ter roubado a Eana de Inana foi mascarado e legitimado com a alegação de ela ter roubado a Eana dele. Naturalmente, esta análise inclui também uma proposta de traduzir isso em linguagem não mítica, ou seja, uma proposta acerca das pessoas portadoras das tradições que criaram tais imagens de Inana e de An, segundo seus interesses e suas necessidades.

3.2.2.1 A Eana em outros textos sumérios

Para melhor situar o mito IeE é útil apresentar um panorama de outros textos que tratam da relação entre Inana e a Eana e ocasionalmente da “descida” da Eana do céu. A crença de templos (edifícios históricos, “terrestres”) poderem descer do céu ou, no mínimo, serem uma “cópia fiel” de um “original” existente no céu721 é um elemento fundamental de cosmovisões do Antigo Oriente. Assim, o

mito IeE pode ser entendido como uma simples etiologia acerca da existência e do nome desse templo e de sua “dona”, lembrando, porém, que tais etiologias propagam ideologias que legitimam não somente o caráter específico de um templo e da divindade cultuada, mas principalmente toda a ordem estabelecida em torno disso, inclusive hierarquias sacerdotais, oferendas, sacrifícios e outros elementos de culto, com seus aspectos de ganhos materiais e ideológicos, de riquezas e de poder.

721 O exemplo mais conhecido em círculos cristãos seja talvez do Novo Testamento: o Apocalipse de João esboça a utopia

da “Nova Jerusalém” que desce do céu (Ap 21,2), mas, devido à sua ideologia particular, sem templo, porque seu templo são Deus e o Cordeiro (21,22).

No âmbito de composições narrativas destaca-se a epopéia “Enmerkar e o Senhor de Arata”722. Essa epopéia, que descreve a rivalidade entre Uruk e Arata sob o rei semi-mítico de Uruk,

Enmerkar, identifica em sua introdução Uruk como a cidade de Inana e afirma em 6-14 a construção da Eana em Uruk-Kulaba e sua pertença a Inana como uma decisão dos “Grandes Príncipes” (nun.galene) “quando foram fixados os destinos”, ou seja, como uma decisão divina unânime no momento da criação e ordenação do universo (cf. também 32-33.339-343.382-385). Uma variante disso admite que foi um rei humano, Enmerkar, que instalou o culto da “Grande Senhora do Céu” na Eana: “...meu Senhor e rei, que é o servo dela, a instalou como a Senhora das Divindades na Eana” (229.232-233), e em 484 e 625, Inana é explicitamente chamada de “Senhora da Eana” (dinana nin é.anna). Quando Enmerkar

pede a Inana apoio para aumentar as riquezas da cidade e as belezas da Eana (ou melhor, para uma reforma ou nova construção da Eana), ele diz que deve ser construído “um templo trazido do céu para a terra: teu lugar de culto, o santuário Eana... o interior do santo Gipar, tua morada” (43-46). O verbo usado em relação ao templo é ed3, “descer” (ou “subir”).

Também a epopéia “Gilgameš e Aga” (ETCSL 1.8.1.1) afirma em 30-31, novamente usando o verbo ed3: “As grandes divindades criaram a estrutura de Uruk, a obra das mãos das divindades, e da

Eana, a casa descida do céu.” No mito “Inana e o Touro do Céu” (título no ETCSL 1.8.1.2: “Gilgameš e o Touro do Céu”), a Eana é amada por An, mas é Inana que manda nela e que decide quem pode ou não administrar nela a justiça (B7-12). Algo semelhante acontece nos mitos “Inana e Gudam” (ETCSL 1.3.4) e “Inana a o Capim Šumunda” (ETCSL 1.7.7): é exclusivamente ela que defende sua casa contra ataques e perigos.

Nos “Hinos de Templos” (ETCSL 4.80.1), uma coletânea de 42 pequenos hinos dedicados a templos da Suméria (e o temp lo de Aba em Acad), atribuída à autoria de Enheduana, as linhas 198-209 cantam o louvor da Eana, chamando Inana de sua “Senhora” e sua “Princesa que está no horizonte” (alusão a Inana como Vênus). Não há qualquer menção de An, e o mesmo acontece no caso dos outros templos de Inana em Zabalam (315-327) e em Ulmaš (507-519). Em comparação, An é mencionado nos contextos dos seguintes outros templos: de Nana em Ur (chamando o templo Ekišnugal, o templo principal de Nana, de “terra de An”, 101-118); de Ningirsu em Lagaš (libações de vinho em “tigelas de An”, 240-262), de Baba em Irikug (chamando-a de “filha de An”, 263-271); de alguma divindade em alguma cidade (nomes perdidos, o templo é caracterizado como “trava fundada por An”, 352-262); de Ninhursag em Isin (An “colocou sua plataforma”, 363-378) e de Nininsina em Isin (cidade “fundada por An”; Nininsina é chamada de “sua filha”, 379-395).

Lembremos que também no mito IeI, a Eana é destacada de modo especial entre os outros templos de Inana (6-13, cf. 101).

Também textos tardios (Ur III e PBA) sempre identificam Inana, e jamais An, como divindade, ocasionalmente “Senhora”, da Eana. O poema “Balbale (?) a Inana” (ETCSL 4.07.6, Inana F) afirma que seu pai Enlil (!) deu a Inana o céu e a terra, que ela é sem par entre as divindades e que onze templos são dela: um em Acad e dez na Suméria, em primeiro lugar a Eana de Uruk.723 Na lamentação

“Morte de Urnammu” (MU, ETCSL 2.4.1.1), Inana fica irada com o destino dele, sai da Eana em Uruk e vai para Nipur queixar-se com Enlil e An (198-216). Ainda no séc. 19, Anam, rei de Uruk, dedica um poema a Inana (ETCSL 2.7.1.1, chamando-a também de Nanaya) em que a identifica como a divindade que “manda” na Eana, embora ele confesse sua devoção a Inana e a An (1-11.30-37).

A “Lamentação sobre a Destruição da Suméria e de Ur” (ETCSL 2.3.3 – após 2004, ano da “destruição” lamentada), reza em 150-162:

Inana abandonou Uruk e foi embora para um território inimigo. Na Eana, o inimigo pôs seus olhos no santo santuário do Gipar. O santo Gipar do sacerdócio en foi violado. Seu sacerdote en foi agarrado no Gipar e levado embora para um território inimigo. “Ai, a cidade destruída, minha casa destruída!”, ela chora amargamente.

É sintomático que An esteja “presente” nesta Lamentação (o destino da Suméria é atribuído a uma decisão de An, Enlil e Enki, cf. 3), mas que ele seja a única divindade mencionada que não tinha um templo a perder (o que é o caso, além de Inana, de Baba, Numušda, Namrat, Ninzuana, Ninisina, Ninlil, Nintur, Ningirsu, Nanše, Nana-Suem, Ninigara, Ninglubaga, Ningiszida, Ninehama, Ninsumun, Enki, Damgalnuna, Dumuzi, Enlil e Ningal, 115-410). O mesmo acontece na “Lamentação sobre Eridu” (ETCSL 2.2.6, passim): Inana, a “Senhora do Céu e da Terra”, foge da Eana, como fogem de seus templos também Enki, Damgalnuna, Nana e Aruru, enquanto An é mencionado, mas ausente do texto.

Voltemos agora a atenção para um caso especial, o poema “Ninmešara”, “Senhora de todos os

Me”, também chamado de “Exaltação de Inana” (ETCSL 4.07.2), uma das obras da autoria de

Enheduana. Van Dijk menciona brevemente uma passagem do poema, dizendo que, à luz de IeE, ela “obrigatoriamente precisa ser traduzida” (“zwingend übersetzt werden muß”) como segue:

Tu roubaras a Eana do deus do céu, tu não temeras o deus do céu, essa casa cujos prazeres são irresistíveis, cuja alegria não tem fim, para dentro dessa casa, dessa casa destruída, ele me levou... (85-88).724

723 Cf. também RÖMER, Willem Hendrik Philibert. Eine sumerische Hymne mit Selbstlob Inannas. In: Orientalia, 38. Roma:

Editrice Pontificio Istituto Biblico, 1969, 97-114. Römer sugere a proveniência do texto do PDS e menciona quatro outros textos ou fragmentos, posteriores, que contêm listas semelhantes de templos de Inana, todos mencionando a Eana de Uruk.

Contudo, esta proposta de van Dijk, além de criar um duto confuso que mistura a segunda pessoa e a terceira, tira as linhas do seu contexto que aborda atos de Lugalane (74ss) e cuja tradução deve ser:

Acerca dos ritos de purificação de Santo An, ele [Lugalane] alterou tudo que é dele [de An] e tirou a Eana de An. Ele não se levantou em temor à maior das divindades. Ele tornou aquele templo, cujas atrações eram inesgotáveis, cuja beleza era infinita, um templo destruído. Enquanto entrou na minha frente como que se fosse um parceiro, na verdade aproximou-se por inveja.725

Trata-se do “processo” que Enheduana, instalada por seu pai Sargão como sumo sacerdotisa de Ur, apresenta a An, através de Suen e de Inana. Ela acusa Lugalane726, um rei não identificado, de

ter interferido indevidamente no culto chefiado por ela e tê-la destituído de seu cargo. A tradução que atribui a Lugalane a interferência na Eana é pertinente, em termos filológicos e também em termos de conteúdo. Annette Zgoll, em sua grande monografia dedicada a essa obra de Enheduana, entende que entre os “crimes” de Lugalane está a “perturbação da boa relação entre An e Inana (linha 86-89) ou, literalmente, uma intervenção não autorizada no templo dele (linha 88s) e, com isso, uma falta de temor diante de An”727. Ela destaca como Enheduana astutamente torna An um partidário de Inana, alegando

que intervenções no culto de Inana (e ainda por um homem) ofendem An: foi ele que estabeleceu Inana e a investiu de poder, e qualquer crime contra Inana é, automaticamente, um crime contra An.728

Nesse emaranhado de intrigas políticas e de lutas entre o poder local e o poder imperial, revestido de oração e invocação a Inana, a divindade protetora dos usurpadores do poder político e religioso (Sargão e Enheduana), é difícil determinar o que se referiu somente ao templo de Ur (onde Enheduana estava instalada) e o que possa se ter referido ao templo de Uruk. Portanto, nessa situação não se recomenda querer identificar uma única linha, isolada de seu contexto e em tradução duvidosa, como indício de um “crime” de Inana contra An e assim enfraquecer toda a argumentação de Enheduana acerca do “crime” de seus inimigos (históricos, humanos). Prefiro entender, juntamente com os editores do ETCSL, com Zgoll, com o próprio van Dijk em sua edição do poema (em co-autoria com Hallo)729 e com todos os autores de resenhas críticas dessa obra730, a alusão como uma das

725 Cf. ETCSL 4.07.2, 74-90; ZGOLL, Annette. Der Rechtsfall der Enheduanna im Lied Nin-me-sara. Münster: Ugarit-Verlag,

1997, 11.

726 Não dispomos de outras notícias sobre algum soberano sumério deste nome, no tempo de Sargão. Pode-se tratar de um

“governador” de Ur ou de Uruk, ou da abreviatura ou variante do nome parecido de um governador de Umma ou de Adab, cf. HALLO/DIJK, 9.56. A suposição de Wilcke, de que ele seja o “governador” de Uruk, é baseada na própria menção da Eana, cf. WILCKE, Claus. Nin-me-šar-ra: Probleme der Interpretation. In: Wiener Zeitschrift für die Kunde des

Morgenlandes, 68. Viena: Institut für Orientalistik, 1976, 80.

727 ZGOLL, Rechtsfall, 126-127. 728 Ibidem, 127.

acusações contra Lugalane. Isso anula o argumento de Dijk, de que Enheduana teria conhecido o mito IeE e o “fato do roubo”, mas frente aos outros dados observados não prejudica sua avaliação da idade pré-sargônica do mito ou de partes dele.731

Outro texto aduzido por van Dijk é o “poema pedagógico” babilônico tardio “Exaltação de Inana”732 que, segundo ele, “sintetizou sistematicamente esse complexo mitológico”733. A meu ver, o

texto e suas interpretações mais pertinentes não permitem essa afirmação, ao contrário: ele afirma explicitamente que Inana possuía a Eana de acordo com a ordem cósmica e a vontade declarada de An. Além disso, é considerado um dos exemplos mais claros que mostram que o culto de An era tardio e que a alegada exaltação (“elevação”, pela graça de An) de Inana-Ištar para a posição de deusa suprema e “Rainha do Céu” é um construto ideológico, destinado a legitimar a “elevação” de An em detrimento de Inana. Como mostrou Brigitte Groneberg, o poema é o “único hino dedicado a An” conhecido até hoje.734 Ainda assim, é na verdade um poema de louvor a Inana-Ištar, como deusa

suprema legítima ao lado de An, que não apresenta nenhuma atribuição específica desse deus, como acontece no caso de todas as outras divindades. De aproximadamente 90 linhas, apenas as primeiras seis são dedicadas a An, louvando capacidades genéricas e vinculadas à sua transcendência:735

A grande fala de Santo An não tem limites; as grandes divindades se inclinaram diante de mim como um báculo curvado, em aplauso, em oração: “O que tu dizes é definitivo, Príncipe, Senhor que abre sua boca; o que dizes é agradável. An, tua nobre palavra vai em frente; quem diria ‘não’ a ela? Pai das divindades, tua palavra é o fundamento para o céu e a terra; qual a divindade que não te obedeceria? Ó Senhor, tu és soberano e és teu próprio conselheiro; o que poderia ser um conselho nosso?”

730 HEIMPEL, Wolfgang. Review of Hallo and van Dijk 1968. In: Journal of Near Eastern Studies, 30. Chicago: University of

Chicago Press, 1971, 232-236; RÖMER, Willem Hendrik Philibert. Review of Hallo and van Dijk 1968. In: Ugarit-

Forschungen, 4. Kevelaer; Butzon & Bercker, 1972, 173-206; SAUREN, Herbert. Review of Hallo and van Dijk 1968. In: Bibliotheca orientalis, 27. Leiden: Universiteit Leiden, 1970, 38-41. Todos eles discutem dificuldades na interpretação da

forma verbal do verbo kar na linha 86, mas ninguém duvida de que o sujeito dessa ação seja Lugalane.

731 Cf. acima, Item 3.2.1.

732 Composição bilíngüe (em sumério e assírio); não deve ser confundida com o a “Exaltação de Inana” de Enheduana, o

poema “Ninmešara”; cf. HRUŠKA, 473-522; LAMBERT, Wilfried G. Critical notes on recent publications. Orientalia, 40. Roma: Pontificio Instituto Biblico 1971, 90-98. A maioria dos tabletes provém do séc. 3 e foi encontrada em Uruk, nas escavações da Bit Reš (cf. acima, nota 713). Os fragmentos mais antigos são da época de Assurbanipal (Império Assírio, séc.9). Ainda assim, a boa qualidade do sumério mostra que este foi o texto original que depois foi traduzido para o acádico, e o arranjo de linhas intercaladas é documentado desde o PBA, cf. LAMBERT, Criti cal notes, 92. Seja como for, o texto é, em todo o caso, pós-sumério.

733 DIJK, Inanna, 11; suas referências a Hruška e Lambert (cf. nota anterior) devem ser entendidas no sentido de estes dois

autores terem editado e discutido esse texto, não no sentido de terem defendido a mesma opinião como van Dijk.

734 GRONEBERG, Götter, 52-53. O fato reflete-se também na estrutura do Catálogo Completo do ETCSL. Na categoria 4,

“Hinos e cânticos cúlticos”, ordenada conforme os nomes das divindades em ordem alfabética, a posição 4.01 é de Asarluhi, 4.02 de Baú, 4.03 de Damgalnuna, 4.04 ficou aberto para poder encaixar alguma divindade entre Damgalnuna e Enlil (possivelmente Dumuzi em cujo nome também ainda não há hino conhecido) etc. Isso significa não só que não é conhecido nenhum hino ou cântico sumério dedicado a An, mas principalmente que ninguém dos sumeriólogos envolvidos na elaboração dessa obra clássica conta com a probabilidade de algum dia chegar a conhecer algum.

735 Cf. HRUŠKA, 490-491, as linhas III,1-11. Sendo bilíngüe (alternando o texto sumério com o texto assírio), são sempre

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