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Aspectos sócio-econômicos no Período Dinástico Inicial (PDI, 2900-2350)

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1.3 Aspectos da Vida na Suméria

1.3.3 Aspectos sócio-econômicos

1.3.3.3 Aspectos sócio-econômicos no Período Dinástico Inicial (PDI, 2900-2350)

O PDI, o primeiro período literário, oferece uma abundância de informações sobre o setor da economia que podem ser apuradas tanto de textos quanto da cultura material. Sua principal característica é a gradual transformação da economia tributária em economia oikos.

Já comentei acima brevemente o termo household (inglês, em alemão: Haushalt, em sumério e acádico: é e bitum). Em inglês e alemão, esse termo indica duas esferas cuja tradução portuguesa exige dois termos diferentes: o governo ou gerenciamento de uma casa no sentido do espaço doméstico com seus afazeres e sua produção e administração, e a administração econômica de um “empreendimento” econômico, geralmente organizado por uma entidade jurídica, principalmente pública. Na sumeriologia, o termo palace household ou temple household (alemão: Palastwirtschaft ou

Tempelwirtschaft, economia do palácio ou do templo) foi (e ocasionalmente é) usado para se referir a

um modelo econômico da Antigüidade, descrito por economistas do século 19 e 20 EC.236 Essas

descrições usam geralmente o termo “oikos-Wirtschaft”, “oikos-Haushalt” ou “oikos economy” (economia oikos), na intenção de o emprego do termo grego oikos servir para se referir claramente ao uso no sentido do segundo aspecto mencionado. O uso do termo oikos (plural: oikoi) em vez de

household, para esse tipo de economia, está proliferando na assiriologia desde a sua retomada por

Ignace Jay Gelb237, e seu conceito foi adaptado mais concretamente para a situação suméria por Jean-

Pierre Grégoire e Joachim Renger. Em sua publicação mais atual, Renger define o termo como segue: O termo economia oikos – compreendido como tipo ideal – abrange dois aspectos: primeiro, que o Haushalt (oikos) do soberano seja idêntico, em termos de instituição e espaço, com o Estado respectivamente o território do Estado. E o termo indica, além disso, que quase tudo que é produzido no Haushalt oikos é também consumido no Haushalt. O sustento dos membros do Haushalt é garantido na forma de um sistema redistributivo, por meio de rações em espécie. Somente bens estratégicos, isto é, bens que são indispensáveis para o funcionamento e para a reprodução do Haushalt, como, por

234 Cf. abaixo, a nota acerca do novo terraço de Uruk.

235 Cf., entre os achados posteriores, por exemplo, os do reinado de Entemena, em Selz, Sumerer, 54.

236 Karl Rodbertus, Karl Bücher, Max Weber e Moses I. Finley. Bücher e Weber elaboraram o tipo ideal do oikos no exemplo

de Príamo, o lendário rei de Tróia.

237 GELB, Ignace Jay. Household and family in Ancient Mesopotamia. In: LIPINSKI, Edward. State and Temple economy in

the Ancient Near East. Proceedings of the International Conference organized by the Katholieke Universiteit Leuven from the 10th to the 14th of April 1978. Lovânia: Department Orientalistiek, 1979, 1-99.

exemplo, metais e bens de luxo e de prestígio para a elite, são trazidos para dentro de um Haushalt através do comércio de longas distâncias.238

Ele concretiza a situação da economia oikos no PDI com a seguinte observação, comentando o palácio e o templo:

Praticamente toda a população está integrada nessas duas instituições. Como forças de trabalho dependentes, é obrigada a prestar serviços com toda a sua força de trabalho. Fornece o potencial da mão de obra necessário para a reprodução da sociedade e é sustentada através da redistribuição do produto produzido, em forma de rações em espécie – na maioria dos casos diariamente, mas também mensalmente. Essas rações garantem o mínimo necessário para a existência.239

Como observaram tanto Joachim Marzahn como Hans Neumann, em sua reação à descrição de Renger, o modelo da economia oikos é útil para descrever os grandes empreendimentos da elite, ou seja, households institucionais, especialmente de seus latifúndios e ergasterias, em sua mistura de aspectos “públicos” (em benefício do Estado) e “privados” (em benefício da riqueza de pessoas particulares, da elite do Estado)240, mas não deve ser aplicado com rigidez extremada e principalmente

não deve ser entendido como sistema completamente fechado.241

Deve ser retificada também a antiga idéia de que as oikoi do PDI tivessem sido exclusivamente dos templos, ou seja, de que as cidades não eram cidades-estado, mas cidades-templo, tendo suas economias controladas pelo respectivo templo principal. Na década de 20 e 30 do século 20, Anna Schneider e Anton Deimel242 elaboraram essa hipótese conforme os textos disponíveis naquele

momento: os textos de Lagaš, do PDI III, especialmente aqueles que evidenciam a chamada “reforma” de Urukagina que fez com que todas as posses institucionalizadas aparecessem como posses das divindades. Na esteira da revisão de textos descobertos nas décadas seguintes, Igor Diakonoff e Gelb243 começaram a questionar essa visão, o que finalmente levou a uma compreensão mais ampla

238 RENGER, Johannes. Wirtschaftsgeschichte des Alten Mesopotamiens: Versuch einer Standortbestimmung. In:

HAUSLEITER, Arnulf; KERNER, Susanne; MÜLLER-NEUHOF, Bernd (org.). Material Culture and Mental Spheres.

Rezeption archäologischer Denkrichtungen in der Vorderasiatischen Altertumskunde; Internationales Symposium für Hans J. Nissen, Berlin, 23-24. Juni 2000. Münster: Ugarit-Verlag, 2002, 239-265. Cf. também GRÉGOIRE, Jean-Pierre; RENGER,

Joachim. Die Interdependenz der wirtschaftlichen und gesellschaftlichen Strukturen von Ebla: Erwägungen zum System der Oikos-Wirtschaft in Ebla. In: HAUPTMANN, Harald; WAETZOLD, Hartmut (org.). Wirtschaft und Gesellschaft in Ebla. Heidelberg: Heidelberger Orientverlag, 1988, 211-224.

239 RENGER, Wirtschaftsgeschichte, 241.

240 Que estas esferas estavam freqüentemente misturadas, mostram os documentos econômicos da rainha Baranamtara, cf.

ASHER-GREVE, Frauen, 150-151.

241 NEUMANN, Hans. Die sogenannte Oikos-Ökonomie und das Problem der Privatwir tschaft im ausgehenden 3.

Jahrtausend v. Chr. in Mesopotamien; Bemerkungen zu J. Renger: Wirtschaftsgeschichte des Alten Mesopotamiens; Versuch einer Standortbestimmung, 273-289; e MARZAHN, “Oikos”, passim.

242 SCHNEIDER, Anna. Die Anfänge der Kulturwirtschaft: die sumerische Tempelstadt. Essen: Baedeker, 1920, 120p;

DEIMEL, Anton. Sumerische Tempelwirtschaft zur Zeit Urukaginas und seiner Vorgänger. Roma: Pontificio Istituto Biblico, 1931, 113p.

243 DIAKONOFF, Igor M. The rise of the despotic state in Ancient Mesopotamia. In: DIAKONOFF, Igor M. Ancient

Mesopotamia: socio-economic history; a collection o studies by soviet scholars. Moskou: Nauka, 1969, 173-203; GELB,

Ignace Jay. On the alleged temple and state economies in ancient Mesopotamia. In: Estratto da Studi in Onore di Edoardo

dos vários tipos de economia oikos que conviviam na Suméria. Nesse sentido podemos compreender o templo (a “casa” da divindade x = é.dx) e o palácio (a “casa grande” = é.gal) como uma “empresa” entre

outras, apenas mais poderosa, em todos os seus aspectos.

Além do mais sabe-se hoje que a economia oikos, com seu planejamento e sua administração centralizados, nunca suplantou inteiramente a economia de tributação com sua produção em

households familiares (kin-based), mas que o crescente aperfeiçoamento de unidades de economia oikos reduziu, ao longo do PDI, a importância e o valor da tributação. As pessoas “empregadas” nas oikoi institucionalizadas exerciam seus trabalhos em regime de escravidão e em outras formas de

trabalho dependente, de modo que sua produção afluía diretamente para os donos ou donas da oikos, em troca de rações. Ainda assim, para todo o PDI é atestada (em documentos de compra e venda etc.) a posse privada de terras, oficinas etc. e a venda privada de seus produtos, mas também um grande endividamento, gerado principalmente por dívidas na tributação. Esse modelo mais complexo e menos ideal e fechado244, que é a base para minhas respectivas interpretações ao longo dessa tese, é

visualizado por Pollock no gráfico reproduzido abaixo: das households familiares vão para o centro força de trabalho e produtos como alimentos e vestimenta, e do centro para as households familiares vão terras ou rações, eventualmente alimentos cozidos.245

244 Um exemplo concreto para a mistura da produção em households institucionalizados e households familiares é

esboçado, com ricos detalhes, por MIEROOP, City, 145-158, para a produção de pão e de cerveja (cf. também LIVERANI,

Uruk, 32-36 para o “ciclo da cevada”, e 36-40 para o “ciclo da lã”).

245 POLLOCK, Mesopotamia, 117-120, gráfico na p.119. Cf. também os comentários mais genéricos sobre a economia oikos

É somente nesse período do PDI que foi construído o enorme sistema de canais de irrigação, tão bem conhecido que foi considerado, por muito tempo, a motivação principal, se não a única, para o surgimento de cidades-estado.246 Para informações sobre as construções monumentais empreendidas

na área central de Uruk dependemos exclusivamente das evidências diretas arqueológicas e de sua interpretação. Essa área, abrangendo o Complexo Ocidental (terraço com o Templo Branco) e o Complexo Oriental (Eana), sofreu uma total re-estruturação e reconstrução. Foi levantado um terraço que era tão gigantesco que compreendia os dois complexos: o antigo terraço ocidental (onde o Templo Branco tinha caído em ruínas) ficou enterrado nele, e foi incorporada também a Eana, tendo os seus edifícios antigos nivelados (“Conjunto 5”). Somente para o erguimento desse terraço, de 330.000 m3,

Nissen calcula uma mão de obra de 1.500 homens adultos trabalhando 10 horas por dia, por cinco anos.247 Os investimentos nas construções dos edifícios erguidos sobre ele, entre palácio, templo,

armazéns e outros prédios administrativos (todos eles não preservados), são literalmente incalculáveis. Também a construção da enorme muralha da cidade, de uma extensão de quase 10 km e equipada com 900 torres, lembrada em textos míticos, deve ter consumido “uma fortuna” em material e rações. Quanta riqueza corria, além de para essas “obras públicas”, para a vida pessoal de membros da elite, mostra o “Cemitério Real de Ur”. Apenas no caso de poucas sepulturas pode ser provado que eram efetivamente de membros da família real, mas os tesouros não deixam dúvida de que também as outras eram de membros das famílias da mais alta elite.

Entre as infinitas notícias sobre a administração geral e situações individuais das numerosas economias oikos nas diversas cidades-estado do PDI (que infelizmente não incluem Uruk), é instrutivo apresentar o exemplo de Lagaš/Girsu, do PDI III.248 Até o reinado de Lugalanda (ensí) + Baranamtara

(dam.ensí), o penúltimo casal de soberanos de Girsu (capital da cidade-estado de Lagaš), cada

dam.ensí tinha sua própria oikos, chamado de é.É.MÍ (Casa [economia, household] da Casa da

Mulher). A oikos de Baranamtara era um empreendimento extremamente amplo que abrangia principalmente partes da produção agro-pecuária (inclusive hortas e pomares) e do processamento de seus produtos (laticínios, cerveja) e da produção de madeira em latifúndios, artesanato e produção têxtil em oficinas ou ergasterias, pesca e comércio internacional. Também Lugalanda e duas filhas do casal, Gemenanše e Mišaga, tinham suas próprias oikoi. Sob o último casal de soberanos, Urukagina + Šagšag, a é.É.MÍ foi renomeada em “é.dba.ba6”, “Casa (= Templo) da (deusa) Baba” (ou Baú, esposa

246 NISSEN, History, 130; NISSEN/HEINE, 60-61. 247 NISSEN/HEINE, 57-58.

248 Cf. para o seguinte: ASHER-GREVE, Frauen, 150-155; BAUER, Geschichte, 433-434.445-493.532-; MIEROOP, Marc

van de. Wo men in the economy of Sumer. In: LESKO, Barbara. Women’s earliest records from ancient Egypt and Western Asia: Proceedings of the Conference on Women in the Ancient Near East, Brown University, Providence Rhode Island, November 5-7, 1987. Atlanta: Scholars Press, 1987, 53-66; POLLOCK, Mesopotamia, 120-121; SELZ, Sumerer, 55-57.

de Ningirsu, o deus da cidade de Lagaš), mas a administração permaneceu com a nin, neste caso, com Šagšag, que provavelmente continuou recebendo a maioria dos benefícios gerados por essa oikos.

Um texto que faz parte dos chamados “Textos de Reforma de Urukagina” o expressa assim: Na oikos do Soberano (é.ensí), nos campos do Soberano, Ningirsu é instalado como senhor (lugal).

Na oikos da Casa da Mulher (é.É.MÍ), nos campos da Casa da Mulher, Baba é instalada como sua senhora (nin).

Na oikos das Crianças (é.nam.dumu), nos campos das Crianças, Šulšagana [filho de Ningirsu e Baba] é instalado como senhor (lugal).249

Esses textos “de reforma” alegam a intenção de pôr um fim aos abusos de altos funcionários do palácio e dos templos, mas Pollock sugere que essa parte de sua “reforma” visava, antes, “desviar a atenção dos benefícios econômicos que a família real tirava de suas propriedades, embrulhando-os no manto da piedade religiosa.” Especialmente interessante é sua próxima observação, remetendo a Marc van de Mieroop e Kazuya Maekawa: “Em sua nova encarnação piedosa, o número de trabalhadores/as dependentes foi expandido consideravelmente.”250

Além disso, Nissen observa que certas passagens nos “Textos de Reforma” foram tradicionalmente interpretadas no sentido de que as unidades econômicas em questão teriam originalmente pertencido às divindades, teriam sido usurpadas pela família real e seriam agora devolvidas aos seus donos originais pelo soberano piedoso, Urukagina, na tentativa de restaurar a ordem antiga. Hoje existem dados que levam a supor que o contrário seja certo. Nessa última fase do PDI, PDI III, houve tentativas de fortalecer o particularismo de certas cidades-estado fortes, e é nessa conjuntura que se enfatiza a idéia de que cada cidade era a propriedade de uma divindade específica. Nessa base, Nissen levanta a seguinte proposta:

Olhando desde esse ponto de vista, essa forma de estado seria a última tentativa de reunir todas as suas forças contra a centralização e dar-lhes uma estrutura. Essa interpretação significaria que poderíamos definir precisamente o lugar histórico no qual foi criada essa forma rígida, a “cidade-templo”, e que poderíamos interpretá-la como uma reação a tentativas crescentes de centralização e também fixar seu quadro cronológico para a última fase do Período Dinástico Inicial III. Quando os “textos de reforma” de Urukagina produzem a impressão de descreverem a restauração de uma ordem antiga, isso corresponde provavelmente exatamente à sua intenção original. Nesse caso, o texto pode ser encaixado na categoria de tentativas de legitimar conceituações pessoais ou novas idéias, remetendo a uma “tradição” fictícia. A forma rígida de cidades-templo foi freqüentemente considerada o protótipo da constituição política e econômi ca do país todo e de todo o período inicial, o que é uma generalização inadmissível. Mais corretamente, representa a contrapartida do conceito do estado centralizado que é muito claramente limitado no tempo e possivelmente também no espaço.251

249 Ukg. 4,9,7-21 (= 5,8,16-27), em STEIBLE, Altsumerische Inschriften, 301-303 (cf. Ukg. 1, 1’’-10’’, 285).

250 POLLOCK, Mesopotamia, 120. A “piedade” frisada por Pollock manifesta-se especialmente na conclusão do texto Ukg.

4,12,13-28 (= 5,11,20-12,4), em STEIBLE, Altsumerische Inschriften, 309-311: “Os habitantes de Lagaš que viveram sob usura, sob (...) pesado, falta de cevada, roubo, assassinato - desses [males?] ele os purificou; ele decretou a liberdade disso. Para que a viúva e o órfão não estivessem entregues aos poderosos, Urukagina concluiu uma aliança com Ningirsu.”

251 NISSEN, History, 147-148. Deve-se lembrar que, nas primeiras décadas das análises de textos cuneiformes, esses

textos de Lagaš/Girsu eram os únicos (ou ao menos os primeiros) textos econômicos conhecidos, o que levou à citada generalização da estrutura ali alegada com respeito de toda a região da Suméria, inclusive no PU.

Mesmo se esta proposta de Nissen não for pertinente em todos os seus pormenores, por exemplo, na fixação da cidade-templo para apenas a última fase do PDI III, ou seja, para as últimas décadas antes do Império Sargônico, é atualmente a interpretação que mais adequadamente condiz com as fontes disponíveis e especialmente com sua interpretação não ingênua ou fundamentalista.252 .

No PDI III, grande parte da agricultura em hortas e pomares estava também planejada e organizada pela administração central. Isso teve, para a elite, também a vantagem de poder combinar a produção de hortaliças e frutas com a produção de madeira (extremamente importante e cara por causa de sua escassez), no chamado sistema de “plantio em andares”. Nesse tempo aparecem os primeiros indícios de uma produção de tâmaras em regime oikos. Por exemplo, a maior produção dos cinco pomares pertencentes à oikos do templo de Baba de Lagaš era a de tâmaras (seguida por uvas, maças e figos).253 Ainda assim, as rações normais consistiam em cevada, azeite e lã; apenas em

ocasiões especiais acontecia a distribuição de farinha, pão, vestimenta, peixe, laticínios, frutas, carne ou cerveja. No entanto, pessoas de posição mais alta podiam regularmente receber produtos preparados (alimentos cozidos, pão, cerveja, tecidos). O fato de que as rações “cotidianas” de gente “comum” ofereciam pouca fartura, pode ser também um aspecto do dito sumério: “O que é graça? Cerveja! O que é desgraça? Guerra!”254

1.3.3.4 Aspectos sócio-econômicos no Período da Dinastia Sargônica

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