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Aspectos religioso-ideológicos no Período da Dinastia Sargônica (PDS, 2350-2200)

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1.3 Aspectos da Vida na Suméria

1.3.4 Aspectos religioso-ideológicos

1.3.4.4 Aspectos religioso-ideológicos no Período da Dinastia Sargônica (PDS, 2350-2200)

A profunda mudança no sistema político que adveio com as sucessivas invasões e conquistas de Sargão nas terras da Suméria e com sua inclusão no Império Sargônico por 150 anos recomenda tratar, nesse item, a ideologia desse império em primeiro lugar e mostrar como as modificações de aspectos relig iosos serviam a essa ideologia. Esse procedimento não pretende insinuar que os períodos anteriores tivessem estado isentos desse mecanismo; apenas aproveita da vantagem de as fontes desse período mostrarem esse aspecto com mais clareza.

Não há notícias confiáveis de que as atividades políticas de Sargão e seus sucessores, bélicas ou não, tivessem implicado na destruição de templos, e também não há notícias de que ele ou algum de seus sucessores tivesse “destituído” divindades locais. Ao contrário, há indícios de que, basicamente, persistiam as características religiosas do PDI.339 Mas temos uma abundância de notícias

sobre uma destituição que deve ter tido o efeito mais impactoso possível: a destituição da sumo sacerdotisa do templo mais importante da Suméria, em sua cidade mais poderosa: do templo de Nana em Ur. O fato de a nova sumo sacerdotisa (sacerdotisa en340) ter sido Enheduana, a própria filha do

imperador, aguça mais ainda o impacto dessa medida que tinha o alcance mais amplo que se possa imaginar. Numa situação em que Sargão, pessoalmente, vivia viajando em campanhas (principalmente militares) ou estava em sua nova capital Acad, Enheduana era sua “vigária” ou “lugar-tenente” que vivia permanentemente (pelo menos enquanto o poder local lhe permitia) no coração dessa parte mais importante do império de sua família. Certamente não se pode atribuir somente a Enheduana o grande avanço da mesclagem entre a Inana suméria e a Ištar acádica, e a divulgação dessa figura como protetora ciumenta e belicosa do Império Sargônico, para a qual a guerra é uma “dança”341, como

certas linhas feministas pouco críticas costumam fazer. Mas a influência de seus escritos (e certamente

339 A notícia de que Naramsin teria destruído o templo de Enlil em Nipur é forjada devido a interesses ideológicos: a

narração “Maldição de Acad” (ETCSL 2.1.5) alega esse motivo para justificar a destruição de Acad atribuída a Enlil. Os dados arqueológicos comprovam que o contrário é correto: Naramsin mandou executar trabalhos de restauração no complexo desse templo, cf. LLOYD, 139-140; NISSEN, History, 174-175; ROAF, Mesopotâmia 1, 94; SELZ, Sumerer, 69.

340 Com Enheduana aparece pela primeira vez comprovadamente a palavra en para o cargo de sumo sacerdotisas. Mas,,

como mostrou Irene Winter, as evidências iconográficas permitem identificar sacerdotisas anteriores como portadoras desse cargo. Cf. WINTER, Irene J. Women in Public: The Disk of Enheduanna. The Beginning of the Office of En-Priestess, the Weight of the Visual Evidence. In: DURAND, Jean-Marie (org). La femme dans le Proche-Orient Antique. Paris: Recherches sur les Civilisations, 1987, 195-196. Não consegui verificar a veracidade da afirmação em HALL, Mark Glenn. A Study of the

Moon-God, Nanna/Suen. Philadelphia: University of Philadelphia, 56, de que tabletes não publicados do Nível III da Eana de

Uruk (PGN) contivessem o termo en.LAK32.na = en de Nana. Cf. também WESTENHOLZ, Joan Goodnick. Enheduanna, En-priestress, hen of Nanna, spouse of Nanna. In: BEHRENS, Hermann; LODING, Darlene; ROTH, Martha Tobi (org.).

DUMU-E2-DUB-BA-A: Studies in Honor of Ake W. Sjöberg. Philadelphia: University Museum, 1989, 539-556.

341 A invenção desse “eufemismo” parece-me simbolizar bem a perversidade de ideologias imperialistas e belicosas, cf., por

de toda a sua atuação da qual não se tem outras notícias) deve ter sido crucial na propagação da ideologia do Império Sargônico que sempre incluía o elemento da eleição do imperador por Inana-Ištar que protegia a ele e a seu império.342 Nesse sentido, não havia uma “destituição” palpável de

divindades sumérias, mas uma manipulação e mescla muito sutil de uma delas, Inana, que talvez surtisse um efeito muito maior. Devido à falta de fontes não se pode dizer o que aconteceu nesse período com os templos de Inana em Uruk e em outras cidades sumérias. Pode-se supor que sua importância aumentou, mas pode-se supor também que o sacerdócio local não aceitou passivamente mudanças de perfil e culto da divindade, impostas a partir de cima, e, pior ainda, a partir de fora.

A ideologia de Sargão e seus dois filhos que lhe seguiram ao trono ainda não difere essencialmente da ideologia dos reis de cidades-estado que se propagavam como escolhidos e entronizados pelas divindades de suas cidades que, nesse aspecto, já assumem o caráter de “divindades pessoais”. Ela é apenas aplicada de forma mais conseqüente e mais ampliad a: os imperadores eram os “escolhidos” de Inana-Ištar, não somente em sua cidade de Acad (e inicialmente de Kiš) com seu hinterland, mas em todo o seu império. Nesse aspecto chama a atenção de que não há notícias de reis sumérios que tivessem escolhido sua divindade pessoal, no sentido de adotar uma divindade de sua escolha que fosse diferente da divindade tradicional da cidade onde reinavam. Com Sargão, porém, isso aconteceu de modo inédito: a divindade da cidade de Kiš era tradicionalmente não Inana, e sim Ninhursag, a “Mãe Terra”. Inana era apenas a deusa da cidade de Acad, ou seja, a “padroeira”, escolhida pelo imperador, da cidade que o imperador “construiu para si”. Sendo que a propaganda sargônica afirma que foi Inana que “escolheu por amor” a Sargão, a leitura crítica deve compreender que foi Sargão que “por ‘amor’ escolheu” a Inana. Foi Sargão que fez essa opção, apostando, por exemplo, na esperança de que a grande popularidade de Inana na Suméria facilitasse a sua própria aceitação e popularidade.343

O segundo aspecto ideológico-religioso novo é a divinização de Naramsin (2254-2218), neto de Sargão, que foi declarada depois de ele ter subjugado cruelmente a “Grande Revolta” contra seu império. Assim, Naramsin é o primeiro soberano mesopotâmico do qual temos notícias confiáveis de ter reclamado para si a condição divina, em vez de apenas declarar-se “escolhido” por uma divindade para

342 Cf. especialmente a versão acádica da Lenda de Sargão. Existem várias edições críticas dela, com comentários etc. A

mais recente, que tomei por base, é: ASHER-GREVE, Julia. Legends of the kings of Akkade: the texts. Winona Lake: Eisenbrauns, 1997, 36-50; COOPER, Jerrold S. e HEIMPEL, Wolfgang. The Sumerian Sargon Legend. In: Journal of the

American Oriental Society, 103,1. Baltimore: American Oriental Society, 1983, 67-82. Cf. também SELZ, Sumerer, 65-69,

WINTER, Women, 201.

343 À medida que aspectos aqui levantados atingirem a discussão dos conflitos entre Inana e outras divindades sumérias,

reinar em nome dela. A famosa Estela de Vitória de Naramsin caracteriza-o como deus, através do atributo da coroa chifrada e da inscrição “Deus de Acad”. Outras divindades estão representadas por estrelas acima dele, para indicar o apoio que recebeu delas, e sua figura é desproporcionalmente maior do que a figura do líder militar do inimigo vencido, de segmentos étnicos gutis.

Também em outros documentos volta a designação “Deus de Acad”, e seu nome é doravante escrito com anteposição do determinativo dingir (divindade). Outro texto afirma:

“Porque Naramsin fortaleceu nesse perigo os fundamentos de sua cidade, sua cidade o pediu junto a Ištar da Eana, Enlil de Nipur, Dagan de Tulul, Ninhursag de Kiš, Enki de Eridu, Sin de Ur, Šamak de Sipar e Nergal de Cuta como deus da cidade deles, e construíram para ele em meio a Acad o templo dele.”344

Essa equiparação de facto et de jure com as outras divindades sumérias e acádicas deu-lhe não apenas direito a todo tipo de homenagens particulares, mas especialmente sobre todas as posses (latifúndios, ergasterias etc.) do templo central da cidade, o templo de Ištar. Provavelmente foi o conflito com o sacerdócio desse templo que levou depois à composição da “Maldição de Acad” que chega ao ponto de mostrar Ištar rejubilando-se sobre a destruição de “sua” cidade.345

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