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Capítulo 2: Sistema de gestão no Brasil

3 Princípios e Instrumentos da Política Nacional de Recursos Hídricos

3.2 Princípios normativos da Política Nacional de Recursos Hídricos

3.2.4 A bacia hidrográfica como unidade de gestão

Não há um conceito legal de bacia hidrográfica, mas do ponto de vista da hidrologia compreende a “área de drenagem de um curso d’água ou lago”.86

O reconhecimento da bacia hidrográfica como unidade de gestão, decorre de imperativo ecológico; não se pode pensar no gerenciamento de um corpo d’água, sem considerá-lo em sua totalidade. Qualquer ação antrópica executada na nascente de um rio pode repercutir até a sua foz, e a inadequada utilização de um curso d’água gera sempre externalidades87 que comprometem o uso múltiplo das águas pelos usuários localizados a jusante.

Por isso mesmo, não é possível uma gestão eficiente dos recursos hídricos feita de forma fragmentária. Contudo, a exigência de que a bacia

85 CAUBET, C. G. A nova legislação dos recursos hídricos no Brasil (...). Op. cit. p. 253.

86 DNAEE-Departamento de Águas e Energia Elétrica. Glossário de termos Hidrológicos. Brasília, 1996, nº 66. 87 Segundo Fisher e Dornbush, “uma externalidade surge sempre que a produção ou o consumo de um bem tem efeitos paralelos sobre os consumidores ou produtores envolvidos, efeitos estes que não são refletidos nos preços de mercado”. Apud. COMUNE, A. Meio Ambiente, Economia e Economistas: uma breve discussão. (in) MAY, P. H. e MOTTA, R. S. da (Org.) Valorando a Natureza: Análise econômica para o desenvolvimento sustentável. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1994, p.50.

hidrográfica seja considerada como unidade territorial na sua gestão esbarra em empecilhos de ordem política; na medida em que a definição dos limites dos municípios e Estados não observa, em regra, tais peculiaridades geográficas. Acresça-se o fato de que freqüentemente, os problemas de recursos hídricos estão associados a questões pertinentes ao desenvolvimento regional e deficiências institucionais, que demandam soluções políticas, mais do que técnicas.

Ou seja, embora a bacia hidrográfica deva ser uma referência indispensável na gestão dos recursos hídricos, não se pode ignorar que o gerenciamento integrado e eficaz pressupõe, também, uma articulação entre as diversas instâncias políticas e institucionais ligadas à bacia, ainda que de esferas diferentes, ou mesmo de unidades políticas distintas.

Por isso mesmo, compatibilizar uma gestão administrativa de bacias hidrográficas que atravessam inúmeros municípios e Estados, é um desafio que esbarra, quase sempre, em conflitos de competência e falta de entrosamento dos órgãos envolvidos, mesmo porque o gerenciamento dos recursos hídricos deve estar integrado à gestão do meio ambiente, o que pressupõe uma interação entre vários órgãos de diferentes instâncias governamentais.

Essa perspectiva de um gerenciamento intermunicipal e, em alguns casos interestadual, dos recursos hídricos pode também ser a base para o redimensionamento da gestão ambiental e também de outras políticas públicas. Com efeito, já se percebe em alguns Estados, um esforço para adequar a estrutura do Ministério Público e do Poder Judiciário com vistas à atuação por bacia hidrográfica, ou por ecossistema; nesse sentido, a experiência do Estado de Minas Gerais, que implantou pioneiramente a primeira Promotoria de Justiça por bacia hidrográfica (“Promotoria de Justiça da bacia Hidrográfica do Rio São Francisco”), motivou outros Estados (Bahia, Alagoas, Pernambuco, Sergipe, Goiás e Distrito Federal) que estão adotando o modelo utilizado com sucesso em Minas Gerais.88

88 De acordo com o Coordenador-Geral das Promotorias de Justiça de Meio Ambiente da Bacia do Rio São Francisco, Luciano L. B. Martins, a adoção do modelo utilizado em Minas Gerais permite a) a especialização técnica e jurídica dos Promotores de Justiça de Meio Ambiente; b) a uniformização da atuação das diversas Promotorias de Justiça envolvidas na questão ambiental da bacia hidrográfica; c) a atuação conjunta dos

Também na esfera administrativa, a articulação entre os diversos atores envolvidos no gerenciamento dos recursos hídricos, embora incipiente, tende a amadurecer com o fortalecimento dos Comitês de Bacia Hidrográfica.

Outra limitação à adoção da bacia hidrográfica como unidade de gestão está relacionada à dimensão dessas bacias em nosso país, que envolvem países circunvizinhos89 e abrangem territórios com acentuadas diferenciações sócio- culturais, sem contar que permanece em vigor a anacrônica classificação de rios em federais e estaduais. Por outro lado, os problemas que repercutem negativamente nos recursos hídricos, muitas vezes, têm sua origem em decisões políticas tomadas fora dos limites da bacia hidrográfica; ou seja, a falta de uma tradição federativa impôs-nos uma sistemática de administração, de difícil compatibilização com o gerenciamento por bacia hidrográfica; por isso mesmo em determinadas regiões, a adoção da bacia hidrográfica como unidade de gestão, pode mesmo não ser a solução mais apropriada.

Após analisar a experiência cearense no Vale do Curu, que considera como uma “bacia social”,90 Karin Kemper observa que “a experiência recente no

Ceará sugere que a bacia hidrográfica, enquanto unidade de gestão ou de análise,

diversos Promotores de Justiça em um mesmo inquérito ou ação civil, sem ferir o princípio do promotor natural; d) a instauração de inquéritos civis ‘guarda-chuva’ para apurar fatos ambientais de interesse de várias Comarcas, em que as informações coligidas e provas técnicas podem ser utilizadas por todos os órgãos de execução; e) a celebração de termos de ajustamento de conduta tendo como referência toda a extensão da bacia hidrográfica e f) a criação de uma estrutura própria para cada região ou sub-bacia, descentralizando a organização do Ministério Público”. In: SOARES JUNIOR, Jarbas. A atuação do Ministério Público por bacia hidrográfica e a experiência mineira. In: BENJAMIN, Antonio H. (Org.) Direito, água e vida. Vol. 1. São Paulo: Imprensa

Oficial, 2003. p. 583.

89 Os problemas associados à gestão de bacias hidrográficos como a Bacia do Prata e a Bacia Amazônica, que envolvem interesses de vários países, exigem respostas específicas que devem ser buscadas no Direito Internacional Público. Sobre essa temática, ver CAUBET, C. G. As grandes manobras de Itaipu. Energia, Diplomacia e Direito na Bacia do Prata. São Paulo: Editora Acadêmica, 1989. 385 p.

90 De acordo com a autora, a bacia social é menor que a bacia hidrográfica e, por isso mesmo, melhor percebida, como unidade, pelos atores que partilham preocupações econômicas e sociais comuns. In: KEMPER, Karin E.

O custo da água gratuita: Alocação e uso dos recursos hídricos no vale do Curu, Ceará, Nordeste brasileiro. Porto Alegre: Associação Brasileira de Recursos Hídricos, 1997, p. 27.

pode ser uma escolha equivocada”.91 Como alternativa Kemper, apoiando-se em Hjort-af-Ornäs e Strömquist, pondera:

“O uso do conceito de bacia social como ponto de partida permite que sejam levados em consideração os interesses dos atores locais e que os seus interesse e incentivos sejam relacionados ao ambiente natural. Essa abordagem facilita a análise das relações entre os sistemas sócio-econômicos e naturais e aumenta as chances para que sejam criados arranjos institucionais que visem a gestão do meio ambiente”.92

Qualquer que seja a dimensão da bacia a ser gerida é fundamental que compreenda a área de drenagem de um corpo hídrico e que os atores envolvidos nessa atividade tenham interesses sociais comuns.