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Capítulo 1: A Propriedade da água

1.7 Considerações Adicionais

A discussão sobre a dominialidade das águas é relevante, sobretudo quando o reconhecimento de seu caráter público se contrapõe à possibilidade de apropriação privada de um recurso que é, por natureza, de uso comum; todavia, os questionamentos quanto à propriedade federal ou estadual de um ou outro curso d´água, demonstram que a transposição, para a esfera pública, de uma visão privatista, cria limitações ao gerenciamento das águas, obstaculizando a necessária gestão integrada dos recursos hídricos.

A questão da dominialidade pública, ou seja, a definição da titularidade dos bens em exame, se deve ser confiada à União, ou mantida com os Estados, só adquire sentido, quando pensada em termos de gerenciamento fragmentado. Essa polêmica jurídica mostra-se estéril no contexto de uma administração integrada e participativa, como proposto pela Lei nº 9.433/97. Nesse ponto, é possível questionar inclusive o domínio federal sobre os rios compartilhados entre Estados.

Nosso país padece as agruras de uma burocracia autoritária e centralizadora, mesmo porque não temos uma tradição federativa. O fortalecimento do princípio federativo impõe a minimização das ingerências do Poder Público Federal na administração de bens que possam ser geridos pelos Estados30. Ainda

30 Consoante o princípio da subsidiaridade tudo o que puder ser resolvido satisfatoriamente no nível local não deve ser objeto de deliberação nas instâncias mais altas. “As competências devem ser atribuídas ao nível que permita sua administração mais eficaz e próxima do cidadão”. Conforme PEREIRA, Paulo A. S. Rios, redes e regiões: a sustentabilidade a partir de um enfoque integrado dos recursos terrestres. Porto Alegre: AGE,

que tais bens sejam compartilhados, a descentralização abre novas perspectivas para gestão integrada e participativa; sem contar que a administração pública pode contribuir com os Estados e Municípios, exercendo uma coordenação intergovernamental e apoiando iniciativas que ofereçam respostas consistentes aos desafios do gerenciamento de bens compartilhados.

Nesse sentido, a proposta de emenda Constitucional transferindo para a União a propriedade dos aqüíferos, representa um retrocesso institucional, e encerra enorme contradição, em termos conceituais, com os próprios princípios da Política Nacional de Recursos Hídricos, na medida em que amplia a ingerência da União em uma política que tem como princípio basilar a gestão descentralizada e participativa. Oportuno salientar que embora os argumentos favoráveis à alteração proposta estejam centrados na natureza interestadual desses aqüíferos, não se pode ignorar que a tecnoburocracia tem interesse na administração dos recursos que advirão da cobrança pelo uso desses mananciais.

Por derradeiro e embora já assinalado, é mister relevar o sentido da dominialidade pública relativamente aos recursos hídricos. Ao estabelecer que as águas constituem bens da União e dos Estados, o Constituinte não outorgou aos cursos d’água a natureza de bens dominicais, que possam ser livremente alienados. Ao contrário, o domínio público das águas longe de aproximar-se das características da propriedade privada, coloca o Estado na condição de gestor ou árbitro, de um bem de uso comum, a quem incumbe regular a utilização eqüitativa dos recursos hídricos, prevenindo litígios e assegurando as prioridades de uso. Frente aos recursos hídricos, o papel do Estado é complexo: a um só tempo proprietário, gestor e usuário, tem como desafio permanente, a tarefa de conciliar os usos múltiplos tendo como balizamento o interesse geral.

Importante reiterar que a doutrina tradicionalmente inseriu entre os bens públicos, aqueles de uso comum do povo.31 Vale destacar que essa classificação não é aceita, pacificamente, na atualidade e alguns autores consideram o

31 O atual Código Civil (Lei nº 10.406, de 10/01/02), manteve a classificação prevista na lei revogada, arrolando entre os bens públicos, aqueles de uso comum do povo, tais como rios, mares, estradas, ruas e praças (art. 99, I).

patrimônio ambiental não um bem público, mas sim um bem de interesse público.32 Ao analisar a função ambiental da propriedade, Roxana C. Brasileiro Borges partilha desse mesmo entendimento, considerando que os bens de uso comum do povo como os mares, rios, já não podem mais ser considerados bens públicos, “pois

constituem elementos fundamentais ao equilíbrio ambiental, integrando um bem maior, o bem ambiental, que não é público, mas de interesse público, produto de um conjunto de elementos inter-relacionados e interdependentes”.33 José Afonso da Silva, ainda de forma mais incisiva, sustenta que:

“Veremos, no entanto, que há elementos físicos do meio ambiente que também não são suscetíveis de apropriação privada, como o ar, a água, que são, já por si, bens de uso comum do povo. Por isso, como a qualidade ambiental, não são bens públicos nem particulares. São bens de interesse público, dotados de um regime jurídico especial, enquanto essenciais à sadia qualidade de vida e vinculados, assim, a um fim de interesse coletivo”.34

O debate é oportuno, mesmo porque uma nova configuração patrimonial para os bens comuns deve ser elaborada, visando tornar mais efetiva a proteção a esses bens difusos, superando a dicomotomia “público X privado”. Não se pode olvidar contudo, que o meio ambiente, enquanto macrobem, de natureza imaterial, considerado bem de uso comum do povo, distingue-se dos recursos ambientais, que o integram. Não há, como se assinalou, nenhum inconveniente em atribuir a dominialidade pública a parcela desses recursos, como por exemplo, a água, observando que nesse caso, essa dominialidade não exclui a natureza de “bem de uso comum”, conferindo apenas ao Estado a tarefa de gerir tais bens, tendo em vista o interesse público.

32 Esse o entendimento de MACHADO, P. A. L. Direito Ambiental Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989, p. 667 e FIORILLO, Celso A. Pacheco e RODRIGUES, Marcelo Abelha. Manual de Direito Ambiental e Legislação Aplicável. São Paulo: Max Limonad, 1996p. 95.

33 In: BORGES, R. C. B. Função ambiental da propriedade. Revista de Direito Ambiental, 9. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 74.

Ao analisar as múltiplas alternativas para a gestão dos bens de uso comum, François Ost conclui, a propósito, que a patrimonialização desses bens ressai como uma alternativa que traduz uma aspiração difusa à salvaguarda de valores sociais e um “empenho compartilhado” na preservação dos mesmos. Após exaustivo exame do conceito de “patrimônio”, o citado autor aposta na fecundidade do regime que dele se deduz, argumentando:

“A prospectividade - o movimento dialético, se se preferir – é, com efeito, o caráter dominante do conceito. Do local (a ‘minha’ propriedade, a ‘minha’ herança) conduz ao global (o patrimônio comum do grupo, da nação, da humanidade); do simples (tal espaço, tal indivíduo, tal fato físico), conduz ao complexo (o ecossistema, a espécie, o ciclo); de um regime jurídico ligado em direitos e obrigações individuais (direitos subjetivos de apropriação e obrigações correspondentes), conduz a um regime que toma em consideração os interesses difusos (os interesses de todos, incluindo os das gerações futuras) e as responsabilidades coletivas; de um estatuto centrado, principalmente, numa repartição-atribuição estática do espaço (regime monofuncional da propriedade), conduz ao reconhecimento da multiplicidade das utilizações de que os espaços e recursos são suscetíveis, o que relativiza, necessariamente, as partilhas de apropriação”.35

Observa José Manuel Pureza que uma nova racionalidade jurídica impõe a superação da lógica proprietarista de regulação ambiental, deslocando o núcleo de abordagem jurídica da apropriação para o modo de gestão, substituindo-a por uma matriz fideicomissária com a subtração do patrimônio ambiental de livre disposição característica da autonomia jurídica individual.36 Citando um caso julgado pelo Supremo Tribunal do Estado do Illinois (Illinois Central Railroad Co. vs. Illinois), Pureza ressalta a figura do public trust37 destacando que a corte estadual defendeu

35 OST, F. Op. cit., p. 355.

36 PUREZA, J. M. O estatuto do ambiente na encruzilhada de três rupturas. Oficina do Centro de Estudos sociais nº 2. Coimbra: Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, dez/1997.

37 O Trust trata-se de um instituto jurídico anglo-saxão, que permite nomeadamente, instaurar um guardião da natureza, encarregado de sua proteção e da sua gestão judiciosa em benefício do público presente e futuro.

a tese de que a titularidade do Estado sobre o lago Michigan seria essencialmente diferente da que o Estado detém sobre terrenos comercializáveis:

“É uma titularidade detida como trust em favor do povo do Estado para que este possa beneficiar da navegabilidade das águas, desenvolver nelas operações comerciais e ter liberdade de pesca sem a obstrução ou a interferência de privados. Desde então a doutrina norte-americana (...) vem apontando uma dupla utilidade do public trust: por um lado impor uma permanente sindicância democrática dos atos públicos de afetação dos recursos naturais; por outro, veicular pedagogicamente uma limitação ao proprietarismo tradicional, sobrepondo-lhe uma ética de salvaguarda e acompanhamento (stewardship

ethic)”.38

No caso brasileiro, a gestão dos recursos hídricos é ainda incipiente e a adoção dessa matriz fideicomissária esbarra em algumas limitações. De um lado podemos identificar uma ascendência do setor hidrelétrico nesse processo; por outro lado, há forte pressão para que os recursos hídricos sejam geridos economicamente, oriunda sobretudo de alguns grupos empresariais que estão se inserindo no “mercado de águas”, através de privatizações dos serviços de água e saneamento em alguns importantes centros urbanos do país.

De todo o modo, a Lei nº 9.433/97 estabelece os princípios e instrumentos necessários à gestão dos recursos hídricos, consignando entre seus fundamentos a consideração da água como um recurso natural limitado, dotado de valor econômico, reconhecida como bem de domínio público, cuja gestão deverá ser feita de forma descentralizada e participativa, a fim de que se assegure o seu uso múltiplo (art. 1º). Além desses fundamentos, que justificam a dominialidade pública dos recursos hídricos, em nosso país fica evidenciado que a água, mais que um bem de domínio público, é um recurso natural indispensável à sanidade do meio ambiente, enquanto bem de uso comum do povo, razão pela qual não se pode conceber a alienação de um curso d’água.

Como ponderam Gamir e Oliver:

"O uso comum, por sua própria essencia, supõe em si a compatibilização de todos os cidadãos. (...) Como complementar a esse princípio de compatibilização deve reger o de prioridade, para que o uso geral não se converta em abusivo, tendo sempre em conta a possibilidade da Administração regular a forma desse uso a fim de alcançar melhor a compatibilidade”.39

Assim, num momento em que se identifica um quadro de crescente escassez, provocado pelo uso irresponsável e perdulário da água, pelo aumento da população e pela acentuada deterioração dos corpos hídricos, torna-se imperativo a definição de um novo estatuto jurídico para a água, que reconheça sua dimensão de bem de uso comum essencial, cujo acesso e gestão deve ser compartilhado. Vale ressaltar que esse esforço pela construção de um estatuto jurídico para as águas tem mobilizado os governos e as sociedades, suscitando verdadeiras revoluções nos ordenamentos jurídicos internos e prenunciando mudanças também no trato internacional da matéria. De sorte, que a decisão política consignada na Constituição de 1988 e aprofundada com o advento da Lei de Política Nacional dos Recursos Hídricos, considerando as águas como bens de domínio público, reflete um momento histórico e nessa condição pode ser considerada transitória. Formas alternativas para tratamento legal dos bens de uso comum, entre os quais se inserem os recursos hídricos, podem ser definidas no futuro, alterando-se a sistemática atual. Nesse sentido, uma ponderação pertinente, que forçosamente deverá ser reconhecida nos ordenamento legais, é o fato de que a água, enquanto bem imprescindível à vida, constitui patrimônio comum da humanidade, exigindo tratamento internacional e local, diferenciados. De suas peculiaridades e importância, decorre a inadequação do mercado como mecanismo regulador do acesso e da gestão dos recursos hídricos, o que será abordado nos capítulos seguintes; importa assinalar que estamos longe de um consenso, quanto à extensão do direito de propriedade nessa área.

39 GAMIR, R. P. & OLIVER, J. M. R. Leciones de Domínio Público. Madrid: Libreria ICAI, 1976, p. 53 – Traduzido livremente pelo autor.

O tratamento da matéria, na Europa, onde a questão da dominialidade da água ainda não é regulamentada de maneira uniforme, é ilustrativo. Seguramente por influencia do Código Civil de Napoleão subsiste, ainda em alguns países, a dicotomia água públicas e privadas, embora esse quadro esteja em evolução. Mesmo nos países onde a água ainda é considerada res nullius, como nos Países Baixos, essa noção vem sendo substituída gradativamente, nos fatos, pela de res communis, e, em regra a captação de água depende de ato autorizatório. Observa Bernard Barraqué que a implicação dos Estados na gestão da água é plurissecular. Lembra, o autor, que ainda sob a égide de Luís XIV, foi criado na França o serviço de Navegação, Águas e Florestas; salientando que a rarefação, relativa aos recursos hídricos, estimula a competição entre os usos, motivando a criação de novos mecanismos de gestão.

A maior parte dos países da Europa foram então levados a criar instituições ou organismos de coordenação, de divisão, de aumento artificial das quantidades e de preservação da qualidade. A sua originalidade deve-se, em primeiro lugar, ao fato de, em todos os países, as águas correntes não serem apropriáveis. Só o seu uso pode ser repartido. Em regime democrático é difícil impor uma planificação centralizada que não tenha em conta a procura de um compromisso entre os interesses em presença. É a aposta da gestão integrada, comprehensive water

management, em inglês.40

Acresça-se que essa gestão integrada, feita sob coordenação de agências regulatórias, está sendo gradativamente privatizada. Sob os argumentos de que a privatização atrai investimentos, gera emprego e maior eficiência, estão sendo transferidos para a iniciativa privada a propriedade, o gerenciamento e os serviços de distribuição de água, em inúmeras metrópoles, em todo o mundo. Essa tendência deve ser revertida, já que a preponderância de interesses coorporativos numa área particularmente sensível, que envolve uma variada gama de usuários, inevitavelmente gera conflitos.

40 BARRAQUÉ, B. As Políticas da Água na Europa. Coleção: Perspectivas Ecológicas. Lisboa: Instituto Piaget, 1995. p. 336.

Também no Brasil, não temos, a esse respeito, nenhuma segurança quanto à imutabilidade do estatuto jurídico das águas e do modelo de gestão, em construção, mas uma certeza é inafastável: hoje as águas constituem bens de domínio público e integram o meio ambiente, enquanto macrobem, sendo a sanidade deste, direito de todos e incumbindo ao Poder Público e à coletividade protegê-lo em benefício das gerações presentes e futuras.

Observando-se o atual quadro existente, em nosso país, verifica-se que o gerenciamento dos recursos hídricos está sendo implementado com base em parâmetros estabelecidos por uma legislação moderna, de inspiração democrática, a partir de uma estrutura administrativa deficiente, na qual o Poder Público é, ao mesmo tempo, proprietário e usuário. Esse é o desafio que a Administração tem enfrentado na atualidade e que será abordado no próximo capítulo.

Capítulo 2