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Capítulo 2: Sistema de gestão no Brasil

2.3 A estrutura de gestão dos recursos hídricos no Brasil

2.3.2 Comitês de Bacia

2.3.2.1 Estrutura institucional

Partindo do pressuposto de que a política de recursos hídricos, sobretudo em um país com dimensões continentais como o Brasil, não pode ser implementada sem ampla participação da sociedade civil, pode-se afirmar que os Comitês de Bacia foram concebidos para atuar como núcleo central dessa política.

Identificados no sistema europeu como “parlamentos da água”, esses órgãos colegiados, além do caráter técnico, possuem uma natureza política, constituindo o fórum onde devem ser debatidas as principais questões relacionadas à política de recursos hídricos e suas repercussões locais.

Nos termos da Lei 9433/97, os Comitês de Bacia Hidrográfica terão uma composição tripartite, com: 1) representantes da Administração Pública (federal, estadual e municipal), 2) representantes dos usuários das águas de sua área de

atuação, e 3) representantes das entidades civis de recursos hídricos com atuação comprovada na bacia; ressalvando, a Lei, que os representantes do Poder Público não poderão exceder a metade do total de membros. O Conselho Nacional de Recursos Hídricos, através da Resolução nº 05, de 10 abril de 2000, estabeleceu diretrizes para formação e funcionamento dos Comitês de Bacia Hidrográfica, ampliando o espaço reservado à sociedade civil. Nos termos da mencionada Resolução, a representação do Poder Público (federal, estadual e municipal) não poderá ultrapassar 40% dos membros do Comitês, o mesmo limite foi estabelecido à representação dos usuários; enquanto a sociedade civil organizada passou a contar com uma representação de, no mínimo, 20% nos Comitês de Bacia.

Certamente que, com essa composição, dificilmente a sociedade civil terá um poder de decisão real, na medida em que, no contexto atual, é difícil dissociar o interesse do “Estado”, daqueles defendidos pelos usuários que são responsáveis pelos usos efetivamente dominantes.53

A Lei estabelece, ainda, que estes serão constituídos por ato do Poder Executivo e poderão ter, como área de atuação, a totalidade de uma bacia hidrográfica, uma sub-bacia, ou ainda um grupo de bacias ou sub-bacias hidrográficas contíguas (art. 37). A possibilidade de se constituírem Comitês de sub-bacia, atende a uma peculiaridade nacional, contornando as dificuldades do gerenciamento das extensas bacias hidrográficas existentes.

São atribuídas aos Comitês de Bacia, no âmbito de sua área de atuação, as seguintes competências (art. 38):

I - promover o debate das questões relacionadas a recursos hídricos e articular a atuação das entidades intervenientes;

II - arbitrar, em primeira instância administrativa, os conflitos relacionados aos recursos hídricos;

III - aprovar o Plano de Recursos Hídricos da bacia;

IV - acompanhar a execução do Plano de Recursos Hídricos da bacia e sugerir as providências necessárias ao cumprimento de suas metas;

V - propor ao Conselho Nacional e aos Conselhos Estaduais de Recursos Hídricos as acumulações, derivações, captações e lançamentos de pouca expressão, para efeito de isenção da obrigatoriedade de outorga de direitos de uso de recursos hídricos, de acordo com os domínios destes;

VI - estabelecer os mecanismos de cobrança pelo uso de recursos hídricos e sugerir os valores a serem cobrados;

VII - estabelecer critérios e promover o rateio de custo das obras de uso múltiplo, de interesse comum ou coletivo.

O exame das atribuições confiadas aos Comitês demonstra sua importância no contexto da gestão descentralizada e participativa proposta pela Lei 9.433/97. Com efeito, nos Comitês devem ser discutidos os principais problemas relacionados à gestão da bacia ou sub-bacia localizadas em sua área de atuação, o que inclui a definição das providências contempladas nos planos de recursos hídricos e das ferramentas previstas para sua implementação, incluindo os instrumentos econômicos, tais como os mecanismos de cobrança e o rateio de custo de obras de interesse comum.

2.3.2.2 Limites à atuação dos Comitês

Na medida em que visam conferir maior legitimidade para as deliberações administrativas relacionadas ao gerenciamento das águas permitindo o engajamento da sociedade civil nesse processo, os Comitês de Bacia deveriam merecer, do Poder Público, uma especial atenção, seja através do fomento à sua constituição, seja no apoio ao seu pleno funcionamento e, principalmente, de sua reestruturação, visando torná-lo, mais permeável à participação da sociedade civil.

É cediço que o longo período de autoritarismo vivido pelo nosso país, desmobilizou a sociedade e enfraqueceu a cidadania. Resgatar o interesse pela ação política local e pela participação nos órgãos colegiados constituídos para a

defesa de interesses difusos, requer uma ação concreta do Poder Público e das instituições políticas. A constituição de associações de moradores, usuários, ambientalistas, e o engajamento de instituições científicas e associações de profissionais, devem ser estimuladas, sobretudo através de ações educativas que promovam o despertar de uma consciência ecológica, a sensibilização da sociedade e o interesse pela participação pública. Sensibilizar usuários e a sociedade civil, esclarecendo a real situação da água no mundo, é o primeiro passo para a criação de comitês de bacia operantes. Idêntico trabalho deve ser feito junto às autoridades municipais, prefeitos e vereadores que, via de regra, desconhecem a realidade dos problemas hídricos locais e a importância das ações preventivas. A informação é a chave que abre a porta à participação pública.

Não raramente, há uma nítida diferenciação entre o ideal da gestão dos recursos hídricos, na perspectiva de cada um dos membros do Comitê, que nem sempre consideram a necessidade de se assegurar os usos múltiplos das águas. Atuar em organismos de gestão, onde há permanente necessidade de se conciliar interesses conflitantes, pressupõe uma prática democrática, na qual somos ainda, aprendizes; o que explica, em parte, a lentidão com que estão sendo implantados tais comitês.

Um panorama geral, da participação da sociedade civil na gestão dos recursos hídricos, em nosso país, demonstra que ainda é pequeno o número de comitês de bacia em funcionamento, e que, em alguns desses, ocorre um engessamento do órgão colegiado, com a administração do comitê confiada a representante do Poder Público. Em São Paulo, por exemplo, inúmeros comitês são presididos por Prefeitos Municipais. Essa tendência de se estabelecer uma tutela tecnocrática pelo poder publico, pode efetivamente comprometer o funcionamento dos comitês de bacia, e adicionalmente transformar o gerenciamento das águas em uma competição entre municípios, reduzindo a gestão à esfera local. Uma administração competente dos recursos hídricos, enquanto res communis (embora de domínio público), que assegure seus usos múltiplos, em bases sustentáveis, só é possível se o gerenciamento da bacia acontecer de forma integrada e participativa e nunca de forma fragmentada e pontual. Vale ressaltar que a gestão descentralizada e participativa, preconizada pela Lei 9.433/97, somente se

efetiva com a democratização dos comitês, de forma a assegurar igualdade de oportunidades aos participantes, seja no acesso às informações, seja nos debates e nas deliberações. Acresça-se que os Comitês são, por excelência, instituições vocacionadas à participação da sociedade civil e quanto mais marcante for essa base participativa, tanto maior serão a legitimidade e possibilidade de êxito no desempenho desses órgãos colegiados.

O desafio que se coloca à atuação dos Comitês é o de funcionarem como agentes reguladores dos recursos hídricos, em um Estado sem tradição no gerenciamento das águas. Nenhum modelo contempla as inúmeras peculiaridades da realidade física e política do nosso país. São grandes bacias hidrográficas, com características próprias, que banham regiões diferenciadas e que deverão ser geridas a partir de algumas diretrizes e princípios, com os quais nem o poder público, nem a sociedade civil, estão familiarizados.

Daí a importância da estreita interação entre os comitês, que podem trocar experiências, partilhar dúvidas e uniformizar conceitos e práticas que contribuam para melhorar sua eficiência. Organizações como o Fórum Nacional de Comitês de Bacias desempenham um importante papel nessa tarefa de congregar esses novos organismos de gestão administrativa pública e, pela cooperação e difusão de experiências, fortalecê-los.

Não se ignora que a gestão dos recursos hídricos pressupõe negociação e participação. O exame da gestão dos recursos hídricos em nosso país, ao longo desses anos, demonstra que entre os motivos que impediram a implementação de uma política de águas, estão a falta de estrutura para esse gerenciamento e a complexidade das questões que devem ser enfrentados. Parte desses problemas foi revertida com a aprovação da Lei 9.433/97, que aponta alternativas concretas, para que esse quadro de omissão pública possa ser revertido, ao reconhecer a co- responsabilidade da sociedade civil e dos usuários nesse processo, confiando-lhes um destacado papel no gerenciamento dos recursos hídricos.

Porém alguns fatores subsistem, limitando a efetivação de uma gestão em bases participativas; entre esses, podem ser apontados a falta de transparência na Administração Pública e da prática da cidadania no seio da sociedade civil. O

processo de democratização em curso, no país, é ainda incipiente e algumas estruturas políticas resistem, cultivando práticas autoritárias e avessas à participação pública; trata-se de um fenômeno histórico e cultural que demanda tempo, para ser superado. Por outro lado, a sociedade civil, ainda não resgatou inteiramente os valores da cidadania exercendo uma atuação política ocasional e pontual.

Também é questionada a falta de recursos financeiros que assegurem o funcionamento dos Comitês de Bacia. Na verdade, esse quadro demonstra que falta ao Poder Público vontade política para implementar uma gestão participativa dos recursos hídricos. Parte dos montante arrecadado com a compensação financeira, decorrente da exploração de recursos hídricos para fins de geração de energia elétrica, ou ainda, os valores recebidos a título de compensação ambiental devida no caso de obras com significativo impacto nos recursos hídricos, deveriam ser utilizados para dar suporte à criação e funcionamento desses Comitês.

Inobstante, para que os Comitês possam ser efetivamente “parlamentos

da água”, faz-se necessária uma revisão estrutural dessas instâncias colegiadas,

visando permitir a participação de “todos” e não apenas dos interessados com maior representatividade econômica. Os aspectos dessa participação, bem como os mecanismos existentes para sua efetivação, serão analisados de forma pormenorizada no Capítulo V.