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Capítulo 1: A Propriedade da água

1.5 A dominialidade das águas subterrâneas

No que diz respeito à dominialidade das águas subterrâneas, a matéria é mais complexa. Embora a Constituição atribua aos Estados sua propriedade, a extensão desse preceito constitucional tem sido questionada e alguns aspectos do gerenciamento aguardam definições.

O ponto mais polêmico diz respeito à propriedade dos aqüíferos que se estendem por mais de um Estado. Como exemplo, emblemático dessa polêmica, na discussão sobre a crescente escassez de água potável no mundo, a imprensa tem dado ênfase às reservas brasileiras, aludindo ao chamado aqüífero Guarani, um manancial de águas subterrâneas profundas que abrange uma área de cerca de 1,2 milhão de km2 localizada no subsolo de alguns Estados brasileiros (GO, MS, MT, SP, PR, SC e RS), estendendo-se também aos territórios da Argentina, Paraguai e Uruguai.28

27 CASTRO, C. R. de S. O Direito Ambiental e o Novo Humanismo Ecológico, Revista Forense n° 317, p. 65. 28 Conforme: SILVA, S. T. Aspectos jurídicos das águas subterrâneas. Revista de Direitos Difusos nº 16, São Paulo: IBAP; ADCOAS, 2000, p. 2165-2173.

Por outro lado, tratando-se de uma reserva de água limpa, com abrangência internacional, argumenta-se que sua gestão, pelos mesmos princípios que justificam a existência de rios federais, deve ser confiada à União.

Nesse sentido, a Proposta de Emenda Constitucional nº 00043/2000, de 21/11/2000, em tramitação no Congresso Nacional, pretende transferir a dominialidade dos aqüíferos à União Federal.

Em abono a essa alteração, o argumento mais consistente é o de que as águas subterrâneas não podem ter tratamento jurídico diverso das águas superficiais, no que tange à questão da dominialidade, posto que interdependentes; ou seja, o domínio das águas subterrâneas em princípio, deve acompanhar o domínio reconhecido às águas superficiais; porquanto não se justificaria atribuir aos Estados a propriedade sobre parcela de aqüífero, que abrange territórios de outras unidades da federação.

Contrário à citada emenda constitucional e favorável à manutenção da propriedade estadual das águas subterrâneas, incluindo os aqüíferos existentes, pondera-se que a alteração proposta representa um retrocesso institucional e guarda contradição com os princípios da Lei 9.433/97, na medida em que visa centralizar nos órgãos federais, a administração de recursos que, necessariamente, devem ser geridos de forma descentralizada e participativa.

Não há dúvida, que os aqüíferos constituem bens ambientais de valor inestimável e significativa importância estratégica, sendo imperativo reconhecer-lhes a dominialidade pública. São esses mananciais que assegurarão, futuramente, o suprimento de água potável para a humanidade, impondo-se sua conservação.

No caso de aqüíferos interestaduais e internacionais, sua gestão deve ser integrada, envolvendo os Estados e países onde se situa. Deve haver um empenho e esforço comum visando aprofundar os estudos e pesquisas que permitam o conhecimento do comportamento hidrodinâmico do aqüífero, sobretudo quando este estiver sendo explorado intensivamente.

Ressalte-se que há sérios riscos de sobreexploração de aqüíferos, ou mesmo sua contaminação, principalmente nas áreas de recargas, situadas em regiões onde ocorrem fraturas nas camadas da rocha que protege o aqüífero; a sobreexploração do aqüífero, agravada com a perfuração de poços em área já em exaustão, tem danosas conseqüências ambientais. Na medida em que as águas subterrâneas e superficiais são interdependentes, a explotação dos mananciais subterrâneos, em níveis superiores à recarga, repercute sobre as vazões dos cursos d’água superficiais, comprometendo o abastecimento humano, e os outros usos possíveis, além de ampliar a possibilidade de infiltração de águas superficiais contaminadas, ocasionando a deterioração da qualidade de suas águas e reduzindo sua capacidade de armazenamento.29 Nos aqüíferos localizados próximo ao litoral, pode também ocasionar a intrusão da cunha salina, com danos significativos aos manguezais. Resulta daí a importância de compartilhar os conhecimentos relativos ao comportamento hidrodinâmico do aqüífero, bem como a definição de medidas visando resguardar as áreas de recarga. Essas áreas, uma vez identificadas, devem ser especialmente protegidas, impondo-se, preventivamente, restrições à instalação de atividades suscetíveis de causarem danos significativos às águas subterrâneas, como pólos petroquímicos ou cloroquímicos e atividades que operem equipamentos atômicos, entre outras.

Nesse esforço cooperativo, com vistas à proteção de um bem de uso comum, cuja dominialidade, como no caso do Aqüífero Guarani, ultrapassa fronteiras de países, sendo portanto, internacional, os Estados interessados devem desenvolver uma estratégia de gestão conjunta, envolvendo parcerias técnicas e institucionais e regras comuns que permitam a proteção e a exploração sustentável e integrada do aqüífero.

29 Sabe-se que a contaminação das águas subterrâneas possui impactos diferenciados, inclusive nos casos de contaminantes persistentes. O comportamento da pluma contaminante varia de acordo com as características do solo e do aqüífero, e a remediação depende de cada caso, exige conhecimento do aqüífero e nem sempre é possível integralmente.

Não há nenhuma necessidade de que a propriedade das águas subterrâneas subjacentes a mais de um Estado da Federação seja transferida à União. Essa alteração dominial pode ter interesse exclusivamente do ponto de vista da outorga e arrecadação, sem contudo, repercutir no gerenciamento dos aqüíferos. Ou seja, a União deve exercer uma coordenação intergovernamental, podendo legislar sobre a matéria e estabelecer normas para a cooperação interestadual na administração das águas subterrâneas de uso comum, de forma a evitar a sobreexploração. Nessa mesma norma federal, podem estar previstos instrumentos econômicos que assegurem a compensação pela utilização desses aqüíferos, destinando o valor arrecadado nesses casos à efetiva proteção das áreas de recarga. Vale dizer, a ação administrativa dos órgãos federais ligados à política de recursos hídricos, no apoio à administração integrada das águas subterrâneas interestaduais, deve existir independente de integrarem elas, o domínio da União.

Como parte da política ambiental, a política de recursos hídricos pressupõe o esforço cooperativo e a gestão integrada, independente de expressa previsão legal, em decorrência, outrossim, da própria natureza do bem ambiental a ser protegido e dos interesses que devem ser resguardados.