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2 A BANALIDADE DO ABANDONO NA URBANIDADE CONTEM PORÂNEA

No documento ÍNDICE DO VOLUME II (páginas 38-41)

ALTERNATIVES TO THE CONVENTIONAL MODELS OF RECOVERY OF THE URBAN LANDSCAPE

2 A BANALIDADE DO ABANDONO NA URBANIDADE CONTEM PORÂNEA

No urbanismo, tradicionalmente, nunca foi o abandono mas sempre o crescimento a grande preocupação e o tema de todas as reflexões. A urbanística moderna surgiu no século XIX ligada à necessidade de encontrar soluções de habitat adequadas para uma população urbana em explosão, e essa permaneceu a sua missão fundamental ao longo da maior parte do século XX. É um facto que, nesse decurso, houve surt os de arruinamento com que os urbanistas tiveram de se confrontar, mas tais devastações ocorreram circunscritamente no tempo e no espaço, em ligação com eventos cataclísmicos e portanto extraordinários - incêndios como o de Chicago em 1871, terramotos, as duas guerras mundiais-, o que ajudou a fixar uma imagem daqueles fenómenos como disrupções, anomalias, ou seja erros na trajetória normal das cidades. No último quartel do século XX, inesperadamente, os urbanistas viram-se confrontados com dinâmicas até então desconhecidas na evolução das cidades. De repente constataram que não só áreas centrais de aglomerações como até regiões urbanas inteiras, em vez de crescerem, perdiam população e atividades económicas. O abandono irrompia como uma nova força modeladora da paisagem urbana, o que pareceu a urbanistas e cientistas urbanos contranatural. Conceitos como o de “ contraurbanização” (Berry 1980) e “ desurbanização” (van den Berg et al. 1982), surgidos então para descrever a nova realidade, exprimem bem a estranheza sentida. Numa primeira fase encontrou-se na metáfora do ciclo de vida uma explicação plausível para a inversão na trajetória secular dominante de crescimento. A teoria do ciclo de vida urbano postulou que as cidades transitavam no seu processo histórico por etapas sucessivas de crescimento (urbanização), apogeu (suburbanização) e declínio (desurbanização), posto o que poderiam entrar numa fase de renascimento e reurbanização, reiniciando o ciclo, ou então involuírem num declínio progressivo até à extinção final (van den Berg et al. 1982). Foi por influência desta teoria que se generalizou a ideia de investir em políticas de regeneração urbana para reverter o declínio e recuperar o crescimento.

Estudos subsequentes vieram desacreditar a teoria do ciclo de vida urbano, comprovando que as cidades podem seguir trajetórias variáveis e com caminhos não necessariamente

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acomodáveis na sucessão de fases que aquele m odelo previa (Cheshire 1995, Turok e M ykhnenko 2007, Kabisch e Haase 2011). Os dados entretant o reunidos sugerem que crescimentos e declínios urbanos não devem ser pensados em termos de fases, antes devendo ser vistos como tendências divergentes que podem decorrer a par em diferentes locais. A abordagem vai hoje muito mais no sentido de assumir que o retraimento demográfico das cidades é um processo estrutural e duradouro (M artinez-Fernandez et al. 2012, Hospers 2014). Pesquisas baseadas em grandes volumes de informação, envolvendo comparações internacionais extensivas e séries estatísticas longas, demonstram que as dinâmicas urbanas regressivas estão pesadamente instaladas em largas partes do globo, sobretudo no Norte Global. Na Europa, segundo concluíram Turok e M ykhnenko (2007), havia no princípio do século XXI três vezes menos cidades a crescer do que nos anos 60, e as taxas de crescimento da população urbana eram mais baixas do que as registadas há quinze ou vinte anos, e ainda mais do que há trinta ou quarenta; os números apresentados apontavam para 62% das cidades europeias terem passado por algum período de retração demográfica desde os anos 70, e 42% estarem no momento do estudo em declínio.

Atualmente usa-se o conceito de ‘encolhimento urbano’ (urban shrinkage) -por vezes traduzido por ‘contração urbana’ - para designar este fenómeno. Embora a forma mais fácil de o captar seja através das estatísticas demográficas, é um fenóm eno multidimensional que não se cinge à diminuição da população residente, envolvendo também, em maior ou menor grau, retração de emprego, diminuição da oferta de funções centrais, e sobredimensionamento de infraestruturas e equipamentos, espaço construído e solo urbano (M artinez-Fernandez et al. 2012, Hospers 2014). Uma cidade em encolhimento (shrinking city) define-se por apresentar uma tendência duradoura e consistente de diminuição demográfica associada a sintomas de crise estrutural (Wiechmann e Bontje 2015).

Há territórios que parecem ser particularmente vulneráveis ao encolhimento urbano. Nas grandes metrópoles o encolhimento é menos percetível do que nas pequenas cidades (Kabisch e Haase 2011). Na Europa de Leste e nos Balcãs há maiores percentagens de cidades a encolherem do que na Europa Ocidental e do Norte: se em países como o Reino Unido, a Suécia ou a Holanda não chegam a 10%, na Alemanha e em França andam em torno dos 20%, na Hungria, na República Checa, na Croácia e na Grécia sobem para mais de 40%, e em países como a Lituânia, a Letónia, a Bulgária ou a Roménia atingem-se valores extraordinários de mais de 80% das cidades em encolhimento (M artinez-Fernandez et al. 2016). Em todo o caso, mesmo em aglomerações urbanas que estatisticamente não são classificadas como cidades em encolhimento por, globalmente, manterem taxas de variação positivas da população, é

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frequente encontrarem-se no seu interior circunscrições ou bairros em encolhimento (Audirac et al. 2012), o que confirma e reforça a ideia de que as paisagens abandonadas se tornaram banais nas cidades contemporâneas.

O encolhimento urbano é um fenómeno multicausal. A literatura é prolixa na identificação de fatores diversos que podem ser responsáveis pelo abandono urbano, desde razões ambientais a motivos sociais, políticos e económicos. Como recordam Reckien e M artinez-Fernandez (2011), razões epidemiológicas e fome são causas de encolhimento urbano na África Subsariana, na China há cidades abandonadas por ordem política, e desastres ambientais (Nova Orleães, Prypiat, etc.) e esgotamento de matérias-primas e recursos (o que é comum, por exemplo, em cidades mineiras) desencadeiam por vezes abandonos massivos pontuais; a isso, porém, juntam- se outras causas estruturais e difusas, que são hoje as preponderantes no Norte Global, relacionadas umas com mudanças de estilo de vida, como a suburbanização e a segunda transição demográfica (baixa fecundidade e envelhecimento demográfico), outras de índole política e económica, nomeadamente o colapso do socialismo nas sociedades da Europa de Leste e a desindustrialização associada à reestruturação global do capitalismo. Bontje e M usterd (2012) sistematizaram essa diversidade de motivos em três categorias essenciais de causas, a saber: (i) destruições (i.e., guerras, epidemias, desastres ambientais, poluição); (ii) perdas (i.e., escassez de recursos e perdas massivas de emprego, normalmente associadas a regiões monofuncionais ou dependentes de uma grande empresa); (iii) e transições e mudanças, título onde incluem as causas relacionais com alterações societais (como a suburbanização ou o novo regime demográfico) e com a globalização e reestruturação económica, este último um aspeto que tem sido especialmente sublinhado em vários estudos onde se liga o encolhimento urbano à periferização dos territórios perdedores da globalização (Lang 2012, M artinez-Fernandez et al. 2012).

As vacâncias em larga escala de edifícios e até por vezes de bairros inteiros, que de repente ficam excedentários, são consequências diretas do encolhimento na paisagem a que a literatura tem aludido (Couch e Cocks 2013). Novos espaços vazios resultantes de demolições e terrenos urbanizáveis expectantes que perduram no tempo sem serem edificados por falta de procura formam, em muitas áreas urbanas, reservas abundantes de solo. Nos EUA, esse valor cifra-se em 16,7% da área t otal das cidades, segundo um est udo recente que inventariou os espaços urbanos vacantes, número que nas regiões do M idwest e do Sul sobem para 21,2% e 23,5% respetivamente (Newman et al. 2016). Perceber que vocação e utilidade estes espaços podem ter numa ótica de desenvolvimento urbano sustentável adaptado a um contexto de encolhimento urbano é, por isso, essencial. Isso significa, como têm defendido alguns autores,

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saber substituir as velhas preocupações focadas em contrariar o encolhimento por abordagens novas que saibam aceitar este fenómeno e utilizá-lo em prol da melhoria do ambiente urbano, tanto mais que, como dizia G.-J. Hospers (2014, 1514), “ a qualidade de vida numa cidade não depende necessariamente da densidade populacional” .

Dentro desta perspetiva, o argumento que vamos defender nas partes seguintes deste artigo é que os espaços vacantes urbanos têm valor ecológico e paisagístico e podem servir positivamente na construção de uma cidade mais resiliente, ambientalmente sustentável e biofílica.

3 - O VALOR ECOLÓGICO E PAISAGÍSTICO DOS ESPAÇOS ABANDONADOS

No documento ÍNDICE DO VOLUME II (páginas 38-41)