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3 “VIVER HABITUALM ENTE”

No documento ÍNDICE DO VOLUME II (páginas 187-190)

“OUTRA M UDANÇA FAZ DE M OR ESPANTO” Henrique Pereira dos Sant os

3 “VIVER HABITUALM ENTE”

Dada a baixa competitividade da economia portuguesa nas primeiras décadas do século XX, e as nuvens carregadas da política internacional, o Estado Novo evita a opção pela exportação com o forma de resolver o défice externo. Concentra-se na satisfação do mercado interno com produtos nacionais, adoptando uma política claramente proteccionista, mas também de moderação do consumo interno, adaptando-o às capacidades produtivas da nação. São opções que Salazar sintetizou na ideia do “ viver habitualmente” , isto é, sem miseráveis e sem arquimagnatas, como ele próprio explicitou.

Esta opção terá tido em conta o facto de a crise económica mundial do fim dos anos vinte ter inviabilizado a válvula de escape que tradicionalmente diminuía a pressão sobre o território, ficando a emigração praticamente fechada entre 1930 e o fim da segunda guerra mundial. A melhoria progressiva das condições de vida e o fecho da emigração tiveram o inevitável efeito de reforçar o aumento populacional que se vinha a verificar.

Em consequência, no início dos anos 30 do século XX as paisagens rurais portuguesas estavam em franca alteração, apoiadas numa política cerealífera fortemente protect ora da produção nacional, na progressiva alteração da fonte de fertilidade - do pastoreio para os adubos - e consequente quebra do vínculo entre a produção animal e a produção agrícola. A penetração do caminho-de-ferro, a rápida passagem dos transportes com animais para os transportes motorizados e uma incipiente mecanização, que acompanham muitas outras alterações tecnológicas, abrem o caminho para a transição de economias de subsistência para economias de mercado.

Estas circunstâncias resultam numa simplificação da paisagem, um recuo dos matos e das charnecas e uma diminuição da já escassa presença da árvore nos campos agrícolas, nomeadamente nas estremas e ao longo dos rios.

Por volta de 1930, quando se dá início à “ campanha do trigo” do Estado Novo (em rigor, da Ditadura Nacional continuada pelo Estado Novo), que reforça a protecção à produção de cereais, a transformação da charneca em área de cultivo de trigo já teria adquirido uma dimensão desconhecida até então.

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É assim que a comparação entre os dados de produção de cereais de 1914 e de 1935 mostra uma intensificação do uso da terra, na sequência da evolução a que se vinha assistindo desde 1889. Esta intensificação de uso verifica-se no aument o da área do trigo e milho que se faz, de uma maneira geral, à custa da diminuição da área de centeio.

No Nordeste transmontano, litoral alentejano e xistos mais pobres, áreas com maior pobreza dos solos e com uma agricultura menos avançada tecnicamente, a arroteia ainda transforma matos em searas de centeio. Nestas circunstâncias, a substituição das áreas de centeio por trigo poderá não ter sido suficiente para anular a expansão da produção de centeio por arroteamento, havendo crescimento da produção de t odos os cereais e diminuição da área de matos. Verifica-se ainda algum aumento do número de animais de trabalho e disponibilização de espaços dos pousios para a sua alimentação.

Nas paisagens dominadas pela produção de milho, em concelhos com relevo mais movimentado, da meia encosta das serras do M inho (Guimarães/ Fafe, por exemplo), aumenta também a produção de centeio. Provavelmente a expansão de socalcos de milho para áreas com menos água, numa tentativa para produzir o máximo possível, criou a oportunidade para a rotação milho centeio, em detrimento da mais tradicional rotação milho/ azevém. Nos terrenos em que a água não é suficientemente abundante para cultivar todos os anos a consociação milho/ feijão - no Verão - e azevém - no Inverno - a produção de centeio pode ser feita em condições razoáveis e compatíveis com os preços administrativamente inflacionados dos cereais.

Na zona dos xistos centrais ocorre, nesta altura, algum crescimento populacional e uma intensificação da produção de milho, com uma diminuição da área de centeio e aumento da de trigo.

Com variações de pormenor, o panorama para o conjunto do país é de aumento de produção dos cereais mais valiosos - trigo e milho -, acompanhando o crescimento da população e a melhoria das condições técnicas de exploração, o que se traduz no aumento da pressão sobre os espaços menos produtivos que garantiam a reposição da fertilidade nas áreas de cultivo, mesmo tendo em atenção a progressiva substituição da estrumação por adubos industriais. A redução de pequenos ruminantes, mais de cabras que de ovelhas, resulta da mesma intensificação agrícola, que reduz o espaço disponível para a alimentação destes animais. Por outro lado, a progressiva penetração dos adubos reduz o papel do pastoreio na manutenção da fertilidade das terras agrícolas.

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A Sul terá havido uma expansão forte das áreas de seara e uma expansão suave dos montados, à custa da compressão da charneca - por arroteia - e dos pastos - por encurtamento dos pousios. Esta evolução e a progressiva mecanização da produção de trigo abrem espaço à diminuição das boiadas, tornadas menos essenciais no trabalho agrícola, ao mesmo tempo que a compressão da charneca provoca a diminuição do número de cabras, permitindo ao porco adquirir um papel preponderante nas explorações alentejanas na primeira metade do século XX, em especial na área do azinho, até à chegada da peste suína africana que liquida, por largos anos, o porco de montanheira.

Esta alteração da paisagem provocada pela intensificação agrícola pode também ser verificada pelas mudanças das produções complementares.

O aumento das três principais produções de leguminosas, fava, feijão e grão-de-bico, produções subordinadas à produção de cereal, seja em consociação, no caso do milho/ feijão, seja entrando na rotação da produção de cereais de Inverno - cereal/ leguminosa -, aponta também para um progressivo aumento de pressão sobre o território.

A diminuição da produção de grão em terras pobres, como em algumas zonas de centeio, pode estar relacionada com o aumento da área de cereal e com a concentração produtiva no milho, no caso dos xistos centrais, limitando o espaço para pequenas produções complementares. No Oeste, mais próximo do grande mercado consumidor de produtos diferenciados, há diminuição de vacas e aumento da produção hortícola, com excepção da zona envolvente de Lisboa.

Esta zona envolvente de Lisboa seria mais sensível às prováveis alterações de hábitos alimentares, conduzindo a uma valorização do leite, da batata, dos frescos e da fruta, para além da expansão da área de trigo que naturalmente se reflectiria na diminuição de produções tradicionais menos valiosas, como a fava e o grão. O crescimento de Lisboa introduzirá alguma pressão para a criação de vacas de leite mas, mesmo assim, só depois da Segunda Guerra M undial se viram fundadas a UCAL e a marca Vigor, em Odrinhas, demonstrando que até essa altura o consumo de leite de vaca era ainda marginal, mesmo nas zonas urbanas.

Apesar do crescimento da área agrícola implicar mais trabalho e consequentemente aumento da necessidade de gado graúdo, a evolução do número de animais está longe de acompanhar a expansão da área agrícola e não tem um padrão uniforme em todo o país.

Se, no Sul, nas áreas de maior produção de trigo, há uma diminuição ou estabilidade no número de vacas, correspondendo quer à mecanização, quer à diminuição de pastos por expansão e

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intensificação agrícola, nas serras do Norte, os principais solares das raças autóctones de trabalho, parece haver uma estabilização no número de vacas.

Esta estabilização pode corresponder à resposta a duas pressões de sentido contrário:

a) por um lado, o crescimento da necessidade de animais de trabalho e o aumento de intensificação agrícola apontam para um crescimento na produção de animais;

b) por outro, a competição pelo espaço, quer para a produção de batata, quer pelo aumento da necessidade de estrume obtido com recurso ao pastoreio de gado miúdo - que reduz a disponibilidade alimentar para o gado bovino -, aponta para a diminuição do número de vacas.

No documento ÍNDICE DO VOLUME II (páginas 187-190)