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1.2 Narrativas heurísticas possíveis – o conteúdo do welfare state

1.2.2 A base formativa do welfare state: ideias de proteção social

Desde final do século XIX, os esforços para expandir o envolvimento dos governos com bem-estar público já estavam em andamento. Na Europa, o movimento trabalhista e os políticos liberais e socialistas integraram as vozes em prol da expansão da provisão de bem-estar social pelo Estado, proporcionando diferentes modelos de welfare. Nos Estados Unidos da América,

17 Belloc (2017, p. 43) definiu o “Estado servil” como uma condição da sociedade em que a massa do povo, embora

gozando de um mínimo de “segurança e suficiência” econômica, é “permanentemente desapropriada dos meios de produção” em consequência da assistência estatal.

as pensões para um grande número de veteranos da Guerra Civil já eram custeadas pelo Estado; somaram-se ainda a implementação de políticas do governo com foco na melhoria das condições de trabalho e a proteção de grupos vulneráveis à exploração econômica (MIDGLEY, 1995). A crise econômica de 1929 praticamente impulsionou a organização do welfare estadunidense. Essas atividades lançaram as bases para a expansão do envolvimento do Estado na assistência social que ocorreu durante grande parte do século XX.

Na maior parte da Europa (especialmente nos países do centro europeu) e da América do Norte, o envolvimento dos governos em cuidados de saúde, educação, segurança de renda, habitação e serviços sociais comunitários e familiares aumentaram rapidamente. A América Latina também iniciou seu processo de organização dos welfare, seguindo uma lógica desenvolvimentista à guisa do processo de modernização das trocas de produção, na visão centro-periferia. Apesar da oposição dos mais tradicionais, a institucionalização do welfare state nas décadas seguintes parecia irreversível. Segundo Pierson (1996a), a base formativa do welfare state europeu se consolidou até o ano de 1914 na maioria dos países do centro da Europa, com exceção da Inglaterra, que reformulou as políticas sociais de bem-estar em meados do século XX.

Para o autor, três marcos conceituais são considerados no núcleo formativo de um Estado do bem-estar social: a introdução da Seguridade Social, momento em que o Estado assume o compromisso público de atuar em casos de perda da capacidade do indivíduo de gerar renda (desemprego, discapacidades, velhice, por exemplo); a introdução do sufrágio masculino, ampliando-se os critérios arcaicos de participação política, independentemente da condição de assistência social do Estado; a contrapartida material do Estado, firmada no compromisso de manter reservas para o gasto social público. Esses marcos conformam um núcleo de bem-estar, paradigma das políticas sociais estabelecidas do final do século XIX para o XX, sob o aspecto da responsabilidade pública pelo bem-estar19.

A ideia de cidadania tem origem no campo dos direitos civis, correspondentes à garantia de igualdade formal e de liberdade individual, com origem no século XVII, vindo a se consolidar no século seguinte. Para Marshall (1965), os direitos civis equivalem à primeira dimensão da cidadania; esta seria ampliada para uma nova dimensão apenas no final do século XIX, com o sufrágio universal. Com a cidadania política, o welfare state experimentou uma ampliação importante dos direitos, contudo, recordemos que muito se manteve apenas no

19 Ressaltamos que nos modelos históricos de welfare state nem sempre os elementos constitutivos são instituídos

ao mesmo tempo ou partilham do mesmo arranjo institucional. São, em regra, referências que orientam na compreensão dos diferentes arranjos de bem-estar social.

campo formal; muitas restrições foram mantidas, a exemplo do direito básico de trabalhar, ainda fortemente regulado pelo Estado para o exercício de profissões ordinárias. Na prática, os direitos civis só eram realidade palpável para o grupo social que detinham certo poder econômico (HUNT, 2007).

Quando as propostas de welfare state passaram a integrar as agendas políticas da Europa, na Inglaterra o elemento civil já havia sido afirmado; os demais direitos – políticos e sociais – seguiram uma construção gradativa (MARSHALL, 1965). A cidadania civil inglesa surgiu como resposta ao novo modo de produção e organização social, que exigiu o reconhecimento prévio de direitos necessários para o desenvolvimento social e econômico20.

Ramos (2004, p. 553) enfatiza que o “espaço público” do final do século XIX acabou exigindo certa equivalência aos que dele eram consentidos participar; ou seja, era exigido um “tipo moral e social homogêneo” que legitimaria a pretensão universalista liberal, especialmente aquela que propunha atualizar o projeto de modernidade em pleno vapor na Europa central21. O reconhecimento da cidadania civil, por si só, não foi suficiente, e a ampliação das possibilidades de participação dos indivíduos se estendeu à dimensão política.

Com a concepção da cidadania política, tivemos a outorga do sufrágio primeiro para as pessoas do sexo masculino, independentemente da assistência pública recebida do Estado e em um segundo momento, também para as mulheres, aproximando-se assim, os pobres (homens e mulheres) de uma ideia de igualdade possível no espaço institucional. Saes (2001) destaca, contudo, que o aval da universalização da cidadania política para o processo de desenvolvimento do capitalismo numa formação social teve forte influência da dimensão especificamente econômica desse processo, ou seja, precisamos investigar as bases que levaram à ampliação do direito para além das propostas do bem-estar social.

Em outras palavras, abolir as restrições ao exercício da cidadania política significou a expansão do projeto de modernidade, que concentrou, na dobra do século XIX para o XX, inovações importantes para os welfare states. Nesse período, deu-se a legitimação do sindicalismo e a extensão do direito de voto à classe operária; vejamos também que a institucionalização dos conflitos e o sufrágio universal podem ser localizados na Europa

20 No setor econômico, o direito civil básico é o direito a trabalhar, isto é, o de seguir a ocupação de seu gosto no

lugar de escolha, sujeito apenas à legítima exigência do treinamento técnico preliminar. Esse direito tinha sido negado pelo costume e pelo uso do aprendizado como instrumento de exclusão em vez de recrutamento (MARSHALL, 2002).

21 Politicamente, durante quase todo o transcorrer do século XIX, o acesso ao sistema de decisões esteve fechado

aos grupos de trabalhadores; a legitimação da participação política e sindical da classe ocorreu quando a industrialização se encontrava relativamente avançada, e os trabalhadores já constituíam amplos setores da população. Correlatamente, o Estado esteve praticamente ausente do processo de industrialização e das questões sociais; na área trabalhista, sua intervenção foi geralmente de natureza antissindical (RODRIGUES, 2009a).

Ocidental por volta do início do século XX – nos EUA, na década de 1830, apenas os homens brancos tinham direito ao sufrágio. Tais mudanças marcaram o processo de modernização22 social que, em termos gerais, pressupôs “la racionalización de la autoridad política; la diferenciación de estructuras políticas; la participación de las masas en la política” (HUNTINGTON, 1996 apud GARCIA JURADO, 2003, p. 20), modificando também o campo das políticas sociais.

A participação política se deu de forma gradual, de “las élites sociales; después, se incorporan las clases medias y, por último, se dá la incursión de las masas” (HUNTINGTON, 1996 apud GARCIA JURADO, 2003, p. 21), protagonistas das políticas de bem-estar social do contexto das democracias capitalistas. Para o autor, a modernização conservou seus aspectos negativos, já que, no trânsito das sociedades tradicionais para as modernas, a extensão universal dos direitos políticos representou a abertura dos canais de participação popular, mas com pouca efetividade na participação política.

Em meados do século XX, a cidadania passou por outro processo de extensão, somando- se às dimensões civil e política a dimensão social, a partir da institucionalização dos direitos sociais. O conceito central na explicação de Marshall (1965) é que a origem e o desenvolvimento do Estado do bem-estar social fazem parte de um processo definido, fundamentalmente, pela evolução lógica e natural da ordem social em si mesma. Tal processo é realizado pela ação política, condicionada a um processo de autodesenvolvimento da política social no qual os atores sociais são submissos. Numa estreita relação do Estado de bem-estar com o capitalismo, focando no sistema econômico e social.

Cidadania e classe social são a fonte intelectual da explicação na qual se baseia a ideia de ampliação progressiva da noção de cidadania. Para Marshall (1965), a noção de cidadania compreende três tipos de direitos: civis, políticos e sociais. A evolução de cada dimensão dos direitos é explicada pela universalização, isto é, a ampliação progressiva das camadas sociais que a eles tinham acesso. A origem das “políticas igualitárias do século XX” segue a trajetória da história, na qual o escopo dos direitos alarga-se progressivamente. Segundo Marshall (1965, p. 97), o uso da expressão Estado de bem-estar social designa uma “nova entidade com elementos já conhecidos”.

O terceiro elemento constitutivo do Estado de bem-estar corresponde aos gastos públicos em programas sociais, utilizados como indicador de desenvolvimento. A partir do

22 Para Huntington, modernização é diferente da ocidentalização. A importância atribuída a essa diferenciação está

em sopesar a ideia do fenômeno global da ocidentalização, um fenômeno de uniformidade cultural encabeçado pelo ocidente e que é mais amplo que a própria modernização (GARCIA JURADO, 2003).

século XX, juntamente com outros indicadores23, essa variável irá balizar as mudanças dos welfare states contemporâneos, desde pontos de vistas diferentes, por exemplo24, em Titmuss

(1965) e Esping-Andersen (1990).

Os três elementos – a Seguridade Social, a cidadania política e os gastos sociais –, ora isoladamente, ora em conjunto, compõem o núcleo formativo e paradigmático do welfare state (PIERSON, 1996a), representando o escopo das ideias de bem-estar social do século XIX que, em um processo “evolutivo” (KERSTENETZKY, 2012), incorpora outras dimensões de bem- estar social para os séculos seguintes.

Para nós, as políticas que antecedem a fase formativa do welfare, especialmente as inglesas, possuem sentido diferente do bem-estar social pretendido para o século seguinte. São políticas que expressam a visão do Estado descapacitado para lidar com as condições de pobreza e miséria e cuja atavia, por séculos, o levou a destinar aos mais necessitados diversas intervenções de segregação e exclusão social. Tais ações, estigamatizadoras por natureza, indicaram a necessidade de o Estado pensar o campo institucional e normativo de maneira distinta daquela das velhas fórmulas de combate à pobreza.

Do passado, as velhas políticas disciplinadoras. O legado, os modelos de bem-estar social forjados desde os contextos das lutas da classe trabalhadora, davam espaço para a origem do Estado social do século XX, que surgia não por uma ruptura radical com o Estado liberal, até porque esse não foi um processo contínuo na Europa, tampouco nas outras regiões do mundo. No século XX, testemunhamos a organização de Estado social capitalista, a partir da mudança de perspectiva do próprio Estado, que já não se reportava aos princípios liberais conservadores e seguia os rumos dos princípios sociais e democráticos. Vale lembrar que o Estado social que surgiu nesse novo contexto ainda carecia de amadurecimento das instituições, inclusive para dar sustentação ao welfare state para os anos seguintes. Logicamente, o seu caráter mais social se deu com a assunção de investimento em políticas sociais (MARTÍNEZ DE PISÓN, 1998), ou seja, com a responsabilidade pública pelo bem-estar.

Ainda segundo Martínez de Pisón (1998, p. 64, tradução nossa), as políticas sociais surgem gradualmente, diferenciando-se de país para país, dependendo dos “movimentos de organização e pressão da classe trabalhadora e do grau de desenvolvimento das forças produtivas e das correlações e das composições de força no âmbito do Estado”. No final do

23 Em uma análise sobre os diferentes sistemas de bem-estar social, Kerstenetzky (2012) correlaciona dezenove

indicadores sociais para Estados Unidos, Alemanha e Dinamarca (países representativos de regimes de welfare

states) (ESPING-ANDERSEN, 1990).

24 Ambos os autores produziram tipologias de seguridade social e do Estado de bem-estar social, partindo de

século XIX, desde o campo das políticas sociais, inicia-se a conformação do Estado do bem- estar social, o que se convencionou chamar welfare state (PIERSON, 1996a), mas sua expansão como será visto, “situa-se na passagem do capitalismo concorrencial para o monopolista”, no pós-segunda guerra (BOSCHETTI, 2003, p. 47).

As mudanças dos paradigmas das políticas sociais são sintetizadas sob três aspectos: com a institucionalização da Seguridade Social, na Alemanha, fundada, basicamente, no contrato de trabalho; com a ampliação da concepção de cidadania (MARSHALL, 1967) para outras dimensões ou esferas de direitos sociais; com a mudança do paradigma, da pobreza como causa individual para o reconhecimento de problemas estruturais que levam ao surgimento de causas de pobreza ou de aprofundamento das causas de pobreza existentes.

Seguindo a lógica de Pierson (1996a), as inovações da fase formativa e as mudanças introduzidas na fase de consolidação das ideias de bem-estar social levam o welfare state a experimentar uma idade de ouro, ou golden age, que vai de 1940 até meados de 1970, marcada por intensa expansão das instituições e da área geográfica de incidência de arranjos de bem- estar social. Nesse sentido, exemplificamos a fase de consolidação do welfare state com dois modelos paradigmáticos, o modelo dos Estados Unidos da América, ou New Deal (1933-1937), e o modelo de welfare state desenhado pela Suécia, ou a Aliança Red-Green. Ambos representam um conjunto de intervenções balizadoras de arranjos de bem-estar social contemporâneos, sobre os quais dedicamos um espaço descritivo neste estudo.