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1.5 Discursos de bem-estar social – novos paradigmas

1.5.1 Desenvolvimento social, capacidades e bem-estar social

Retomamos, neste ponto, os argumentos da teoria do desenvolvimento social – social development60 –, situando-os no campo dos discursos de bem-estar social contemporâneos. O

pressuposto teórico do desenvolvimento social se funda nos discursos de produtivismo social como princípio orientador das políticas ativas, orientadas ao bem-estar social (MIDGLEY, 2001).

A teoria61 do desenvolvimento social (MIDGLEY; TANG, 2001) se estrutura com base

no capital humano, que consiste no desenvolvimento baseado nas capacidades pessoais; no capital social62, ou desenvolvimento baseado na comunidade; no desenvolvimento de ativos (assets development); na remoção de barreiras que possam impedir a participação da população na esfera econômica, por exemplo, mobilidade urbana, construção de creches, políticas de inclusão social com abordagem nas diversidades de raça, etnia, gênero, idade, nacionalidade, deficiência; e em programas sociais custo-efetivos.

O capital humano condiz com o livre acesso a programas de qualificação profissional e de educação vocacional, coordenados com oportunidades de emprego, pré-escola, programas de emprego e autoemprego (colocação no emprego, programas de apoio e monitoramento dos resultados, empregos protegidos e arranjos especiais junto a empregadores, investimentos em autoemprego apropriado para aqueles com altas qualificações, mais confiança e alguma experiência). Os mecanismos de participação efetiva no crescimento econômico derivam do investimento nas necessidades materiais humanas ou capacidades humanas vinculadas a programas de investimento social de natureza ativa produtivista. A natureza produtivista é a chave para a inserção econômica do indivíduo no processo de inclusão social com crescimento econômico, promovendo-se a inclusão ativa das pessoas excluídas do mercado de trabalho.

Para a teoria do desenvolvimento social, programas ativos (políticas de ativação) podem ser aplicados em diferentes contextos normativos; contudo, os argumentos são no sentido de melhor adequação quando vinculados a uma abordagem desenvolvimentista da política social (MIDGLEY, 1995; 1997; MIDGLEY; SHERRADEN, 2000). Para os autores, welfare

60 Em 2003, James Midgley apresenta o paper intitulado Assets in the Context of Welfare Theory: A

Developmentalist Interpretation, no Centro de Pesquisa em Desenvolvimento Social da George Warren Brown

School of Social Work, Washington University. Seria um reforço à ideia de harmonização das políticas sociais com as políticas econômicas, para os anos seguintes, a serem implantadas nos países periféricos.

61 Kerstenetzky (2012) ora denomina teoria, ora doutrina do desenvolvimento social. 62 Sobre o capital social, consultar Robert D. Putnam (1994).

desenvolvimentista é ideal para a aplicação do modelo por serem sustentáveis, centrados nas pessoas e possuírem uma abordagem abrangente do bem-estar social, ou seja, universalista, intervencionista e comprometida com a mudança social progressiva.

O desenvolvimentismo63 contemporâneo refere-se aos programas nacionais de

desenvolvimento econômico, engajados na criação de arranjos organizacionais em nível nacional, que harmonizam as políticas econômicas e sociais dentro de um compromisso abrangente com o desenvolvimento sustentável, centrado nas pessoas – atores sociais preparados para integrar a dinâmica do crescimento econômico. Para isso, as políticas macroeconômicas são focalizadas na promoção do emprego e na geração de renda, ou seja, no “desenvolvimento econômico centralizado” (MIDGLEY; TANG, 2001; MIDGLEY, 2003b).

Nesse sentido, os programas sociais dos welfare desenvolvimentistas são de natureza produtivista, com investimento orientado pela promoção da participação econômica e pela geração de renda e, para isso, investem nas capacidades humanas. Dessa forma, enfatizam que há uma compatibilização acentuada e potencialmente importante entre os países que adotam processos desenvolvimentistas como componentes da agenda desenvolvimentista, os ativos que envolvem redistribuição como fomento à igualdade e a justiça social. Em suma, vinculam as políticas ativas como mecanismo de esforço de desenvolvimento econômico.

Midgley (2001) reforça que a promoção do autoemprego para os clientes (clients) de bem-estar, por meio de programas de microempresas e microcrédito, tem se tornando popular. Programas de capital social que promovem o desenvolvimento de redes sociais também podem ser usados, particularmente em comunidades pobres. O investimento social inclui, ainda, programas que eliminam barreiras à participação efetiva na economia produtiva (políticas de inclusão social). Esses programas são vitais para que os clientes de assistência social e os pobres se engajem, efetivamente, e se beneficiem da economia.

Para Gray (2010), os discursos produzidos desde diferentes raízes teóricas e ideológicas do desenvolvimento social acabaram gerando confusão sobre direitos, redistribuição e participação. Dessa forma, observa que a teoria do desenvolvimento social de Midgley e Tang (2001), mesmo que vinculada a uma ideia de direito e justiça, mantém um viés neoliberal ao

63 Os desenvolvimentistas adotam uma perspectiva mais ampla da política social, propositalmente das políticas

sociais aplicadas no âmbito de um processo de desenvolvimento planejado. Para esses teóricos, o desenvolvimento econômico é essencial para o bem-estar social, e os programas sociais apoiam o imperativo do desenvolvimento. Também propõem um papel ativo para o Estado para promoção do desenvolvimento econômico e elevação dos padrões de vida. No entanto, sua crença em um papel positivo para o Estado é combinada com uma forte crença na participação das pessoas e no envolvimento da comunidade no bem-estar social, refletindo um compromisso mais amplo com o pluralismo (MIDGLEY; TANG, 2003).

prever uma intervenção mínima do Estado e o aumento da responsabilidade da família e da comunidade com o bem-estar social.

Segundo Kerstenetzky (2014, p. 3), para o campo tradicional do desenvolvimento, a política social tem papel coadjuvante, ao passo que, para a política social, “o grau de desenvolvimento é um condicionante à sua expansão”. Sem os recursos materiais, é quase impossível avançar em matéria de proteção e promoção de equilíbrio social, tornando-se imperioso rediscutirem-se as políticas sociais desde as “compensações por riscos e custos sociais” e dos “direitos sociais”. Esse exercício pede o reposicionamento das contribuições da política social para a perspectiva de seus objetivos de bem-estar social.

O Quadro 1, adaptado para esta pesquisa, apresenta os diferentes discursos do bem-estar social contemporâneo64, sob o enfoque do desenvolvimento social.

Quadro 1 – Discursos de desenvolvimento social

Fonte: Elaborado pela autora; adaptado de Gray (2010).

64 Foram destacados os discursos sobre social work.

Welfare

– Direitos sociais como meio inevitável à diminuição das desigualdades sociais (discurso fortemente influenciado por Marshall e Titmuss – "tipo ideal" de welfare state). – Origem do discurso de direitos sociais e justiça social – o sujeito de direitos.

– Ideia de bem-estar social para uma responsabilidade mútua, compartilhada pelos indivíduos e pelos Estados (ideias

neoliberais).

– Bem-estar social para os mais necessitados. – Políticas de indução ao trabalho. – Originalmente redistributivo, orientado ao consumidor. Desenvolvimento social

– Contraponto para crescimento econômico.

– Custos sociais do desenvolvimento designam investimento nas capacidades pessoais e da comunidade. – Posiciona-se em um nível intermediário entre

comunidades e governos para destacar o problema desde um foco unilateral do crescimento econômico.

– Harmonização das políticas sociais com programas de desenvolvimento econômico. – Modernização é a chave para o desenvolvimento da

economia.

– Trabalho social e

desenvolvimento compartilham as mesmas raízes e os mesmos objetivos – a justiça social. – Investimento em programas de criação de emprego e renda. – De natureza produtivista e investimento orientado.

Políticas neoliberais

– Inclusão social com ênfase no trabalho remunerado, na participação econômica e na responsabilidade pessoal (social

integrationist).

– Reintrodução da questão moral e comportamental da pobreza: o pobre merecedor

versus o inservível; ênfase na

coerção.

– Incentivo ao perfil cidadão do ativo, as capacidades pessoais e a responsabilidade pelo próprio desenvolvimento. O capital social está centrado nas capacidades pessoais e da comunidade.

– Valorização das forças de trabalho a partir da capacidade pessoal e das comunidades, as quais têm potencial para vencer a pobreza por seus próprios esforços.

– Bem-estar social segmentado; caráter focalizado da provisão social. Presença dos programas nos modelos workfares (década de 1990).

Um dos pontos mais criticados na teoria do desenvolvimento social refere-se às soluções de desenvolvimento, focadas no campo pessoal e da comunidade. Em vez de corrigir as falhas estruturais decorrentes dos processos históricos de desenvolvimento, principalmente dos países mais atrasados, os mecanismos propostos são constituídos como alternativas de provisão de serviços com pouca participação dos Estados (GRAY, 2010). Consequentemente, seria preciso repensar e redefinir as regras dos diferentes atores sociais do bem-estar (PIERSON, 1996a).

Ainda sobre a teoria do desenvolvimento, outro ponto a receber críticas (KERSTENETZKY, 2011) foi o uso do conceito de Capacidades, de Amartya Sen (2000), como pressuposto estrutural do desenvolvimento social65. As Capacidades definiriam os atores

sociais – indivíduo/comunidade – com base em atributos ou aptidão formativa para alcançar “capacidade produtiva66”. Tais abributos são considerados requisitos para inserção no mercado

de trabalho, com viés de interesse econômico.

Kerstenetzky (2011) explica que o conceito de Capacidades em Midgley difere daquele empregado por Amartya Sen. Em Midgley, Capacidades referem-se ao campo “pessoal” dos indivíduos, aos mecanismos de que o Estado dispõe para que os indivíduos possam integrar a economia por meio de produtividade. Em Amartya Sen, Capacidades referem-se aos atributos de um “agente participativo” e têm a ver com as liberdades reais ou substantivas “com que contam os indivíduos para levar adiante seus diferentes projetos de vida (inclusive não produtivistas)” (KERSTENETZKY, 2011, p. 146). A condição de agência é do inteiro arbítrio dos indivíduos; por isso, para Sen, liberdades designam o livre arbítrio para escolher, o que condiz com a liberdade real de participar ou não. É, pois, um agir qualificado, de alguém que atua ativamente para mudar sua condição social.

Segundo Sen (2000), o bem-estar social realiza-se a partir das liberdades desfrutadas pelos indivíduos em uma sociedade: liberdade política, facilidade econômica, oportunidades sociais, garantias de transparência e segurança protetora. É considerada “determinante principal da iniciativa individual e da eficácia social [...]; e o “fim primordial e o principal meio do desenvolvimento” (SEN, 2000, p. 33, 52).

65 Consideram-se: a) capital humano (programas de qualificação profissional e de educação vocacional,

coordenados com oportunidades de emprego; pré-escola); programas de emprego e autoemprego (colocação no emprego, programas de apoio e monitoramento dos resultados, empregos protegidos e arranjos especiais junto a empregadores; investimentos em autoemprego apropriado para aqueles com altas qualificações, mais confiança e alguma experiência); b) capital social (desenvolvimento baseado na comunidade); c) desenvolvimento de ativos (asset development); d) remoção de barreiras à participação econômica (transporte, creches, preconceito e discriminação baseados em raça, etnia, gênero, idade, nacionalidade, deficiência); e) programas sociais custo- efetivos (MIDGLEY; TANG, 2001).

66 “Um programa social é produtivista se focaliza nas necessidades materiais, investe no que Sen chama de

capacitações humanas, promove participação efetiva na economia e contribui positivamente para o desenvolvimento econômico” (MIDGLEY; TANG, 2001, p. 247, tradução nossa).

A Abordagem da Capacitação (Capability Approach) vem sendo desenvolvida desde a década de 70, por Amartya Sen, e, na década de 80, em conjunto com Martha Nussbaum (2012 apud BOUFFARD, 2013). Não se restringe à análise da pobreza, mas trata das condições de igualdade e oportunidade. As contribuições para a Teoria do Bem-estar Social e para a Teoria do Desenvolvimento Socioeconômico se dão, assim, no princípio da igualdade de oportunidades e da liberdade substantiva, ou seja, da realização dos direitos67. Para Sen (2000), a pobreza é entendida como privação de capacitações básicas, estas pensadas desde o campo do desenvolvimento humano.

Para Kerstenetzky (2011), podemos pensar as Capacidades como sinônimos do próprio welfare state; logo, no sentido de conteúdo das políticas sociais, ambos os constructos teóricos requerem a prévia institucionalização da responsabilidade pública pelo bem-estar, desde um conjunto de políticas que garantam ao indivíduo acesso à proteção social. A participação econômica socialmente segura, ou consciente dos riscos do mercado de trabalho, seria uma decisão do agente, não podendo ser colocada pelo Estado como requisito ao acesso à proteção social.

Ao ser aplicada ao mercado de trabalho, a abordagem das Capacidades teria implicações práticas. Como afirma Deakin (2009) isso se daria, primeiro, pela precondição de existência de legislação social para respaldar a decisão do indivíduo de participação no mercado de trabalho; em segundo lugar, porque as escolhas dos indivíduos não estão adstritas à regulação do Estado. Portanto, como agência, o indivíduo pode consentir ou não na assunção das incertezas do mercado econômico (DEAKIN, 2009).

Questionamos, sobretudo, se as Capacidades – o conjunto de capacidades e habilidades (SEN, 2009) – abrem espaços para novas ressignificações nas dimensões do bem-estar social e, consequentemente, se poderiam inovar nos arranjos de welfare state. Concordamos com a ideia de que esse conceito amplia verticalmente o sentido das políticas sociais desde uma abordagem multidimensional das vulnerabilidades sociais. Nesse sentido, possuem aptidão para plasmar outras formas possíveis de bem-estar social, pautadas pela concertação de uma dupla garantia social e econômica para a ampliação e a manutenção dos direitos.

De pronto, as liberdades reais não prescindem de um sistema regular de proteção social – welfare as we know it68. Ao contrário, essa seria uma precondição necessária. Qualquer que seja o modelo, aqui entendendo as tipologias e os arranjos, espera-se que esteja preparado para

67 Sobre o assunto, consultar também Sen (1997).

68 Expressão atribuída ao então presidente norte-americano, Bill Clinton, em sua campanha política de 1992/1993.

acompanhar as vicissitudes das economias e dos mercados de trabalho, atento aos diferentes ciclos de vida e às diversidades, aberto às ressignificações, condizente com as capacidades de escolha dos modos de vida dos indivíduos. Não importa, com isso, se o welfare state dispõe de políticas sociais passivas e/ou ativas, mas que seja efetivo na promoção do bem-estar social (KERSTENETZKY, 2011).

De todo modo, abrimos um parêntese para uma observação sobre a discussão travada entre o sentido das Capacidades em Amartya Sen (2009) e aquele adotado pela teoria do desenvolvimento social. Aceitando-se como paradigma de interpretação que a teoria se pauta na lógica do workfare, na obrigatoriedade de adesão às medidas ativas, condicionando-se a não adesão do indivíduo ao desligamento de qualquer tipo de benefício recebido, o conceito de capacidade como apresentado por Midgley e Tang (2001), em tese, não condiz com a proposta de Sen (2000).

Figura 1 – Bem-estar social e capacidades

Fonte: Elaborado pela autora; adaptado de Pierson (1996a) e Sen (2000).

Se, contrario sensu, estando o livre arbítrio do indivíduo preservado, como condição de equidade estaríamos diante de uma nova proposta de bem-estar social, ressignificando-se, assim, o conteúdo do welfare state para um núcleo mais extensivo ou alargado. Seguindo a metodologia de Pierson (1996a), o conteúdo do bem-estar social poderia ter outra dimensão, a das capacidades do agente. Neste ponto, o conteúdo do welfare state se confunde com o

conteúdo das capacidades (KERSTENETZKY, 2011), justificando uma abordagem mais equânime69.