• Nenhum resultado encontrado

3.4 Palavras e contrapalavras

3.4.1 A batalha das ignorâncias

Uma forma de incluir outras vozes discursivas é retomar algum termo utilizado em um enunciado anterior para, numa nova construção enunciativa, dar-lhe uma acentuação diferenciada, reforçando ou contrariando a anterior, ou seja, pode-se reconstruir ou desconstruir o discurso anterior articulando termos utilizados no próprio discurso, dando-lhe nova significação, configurando um novo tema. A este respeito, Bakhtin reflete que:

A linguagem não é um meio neutro que se torne fácil e livremente a propriedade intencional do falante, ela está povoada ou superpovoada de intenções de outrem. Dominá-la, submetê-la às próprias intenções e acentos é um processo difícil e complexo (BAKHTIN, 2002[1934-35], p. 100, grifos do autor).

Nesse viés, um fio discursivo bastante explorado é o termo ignorância, recorrente em inúmeras enunciações que permeiam a polêmica, tanto de um lado como de outro, mas com acentuações distintas, como podemos observar a seguir:

Texto 7 - Reinaldo Azevedo/Veja, em 14/05/2011

Texto 8 - O Estado de S. Paulo, em 18/05/2013

Texto 10 - Gaudêncio Torquato/Estadão, em 22/05/2011

Para os críticos do livro, ignorantes são os que abonam a política educacional que pretende ensinar os alunos a falar “errado”. Esses enunciadores revelam uma

visão da língua baseada s regras de formação de frases e palavras e não na adequação do uso do discurso de acordo com a relação interlocutiva.

Já para o grupo de apoio, ignorantes são os que desconhecem a ciência linguística e os parâmetros que norteiam o ensino de língua materna desde 1998; são ainda os que acusam o livro a partir do que ouviram falar sem ao menos ler a obra.

Essa movimentação da palavra ignorância – retomada inúmeras vezes, com acentuações diferenciadas, definidas pelo querer dizer do sujeito que fala - revela um intenso e tenso diálogo entre essas formações enunciativas. Mais que uma palavra, temos neste exemplo um signo ideológico, cujo valor se dá no processo de comunicação, a partir das intenções dos interlocutores e do contexto de uso, pois, cada vez que o termo é mobilizado, forma-se um novo tema e uma nova significação, refletindo um novo ponto de vista, uma nova visão de mundo, uma nova apreciação valorativa. Os sentidos que o termo ignorância assumem dependem do processo de comunicação e das relações sociais dos interlocutores dentro do contexto.

Texto 12 - Carlos Alberto Faraco/Gazeta do Povo, em 19/05/2011

Texto 14 - Cristóvão Tezza/Gazeta do Povo, em 24/05/201121

Texto 15 - Sérgio Fausto/Estadão, em 29/05/201122

21

Disponível em: http://www.gazetadopovo.com.br/colunistas/conteudo.phtml?id=1129095&tit=O-poder-do- erro, acesso em 07/10/2013.

22 Disponível em: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,educacao-para-o-debate,725367,0.htm,

Os três recortes acima apontam para movimentos de refração de discursos anteriores, dado o avanço do debate em torno do livro, que busca levar o leitor a perceber que a ignorância está exatamente naqueles que criticam o livro, em face de seu desconhecimento, tanto a ciência linguística quanto do contexto de sua inserção nos documentos que regulam o ensino de língua materna.

Como vimos no capítulo 2 desta investigação, o outro desempenha um papel fundamental na construção de sentidos, os quais são atribuídos a partir de atitudes responsivas dos sujeitos nas relações comunicativas. Isso significa que cada um é responsável pela maneira como responde/age em relação ao outro, sendo que esta resposta/ato é resultante de outras relações comunicativas com outros ao longo de sua existência.

Porém, tendo claro que a expressão do sujeito que fala é resultado da sua compreensão da expressão do outro, e que a compreensão só é possível se os interlocutores compartilharem de um conhecimento comum do contexto social e histórico em torno do objeto do discurso, concluímos que, neste debate, cada sujeito fala de um lugar específico. Os interlocutores não compartilham horizontes comuns, logo, apresentam níveis diferenciados de compreensão, o que resulta em formações enunciativas antagônicas. Esta plurivocalidade presente no diálogo é representada pela maneira como o discurso alheio entra no discurso próprio, formando discursos com várias vozes, as quais refletem outras vozes com as quais esses sujeitos estabelecem relações.

3.4.2 “Coisa de petista”

Outro exemplo que demonstra claramente essas relações dialógicas e ideológicas nessas formações enunciativas é uso de rótulos políticos presentes na maioria dos discursos selecionados nesta pesquisa. Além dos exemplos citados nas seções anteriores, podemos citar inúmeras ocorrências, tanto nos discursos de apoio quanto nos discursos de repúdio ao livro. Vejamos:

Texto 11 - Augusto Nunes/Veja, em 22/05/2011

Texto 7 - Reinaldo Azevedo/Veja, em 14/05/2011

Texto 16 - Reinaldo Azevedo/Veja, em 15/05/201123

É importante destacar aqui a produtividade da adjetivação em “ismo” e “enta”, em petismo, neoesquerdismo, pobrismo, sindicalentas. O sufixo “ismo” é utilizado para adicionar um novo sentido à palavra-raiz (geralmente de base adjetiva ou substantiva), muito utilizado para rotular ou classificar um indivíduo como pertencente a uma doutrina, orientação política ou filosófica, etc. Já o sufixo “enta”, em sindicalentas, utilizado para adjetivação neste contexto, parece tornar o termo um tanto pejorativo, remetendo, por exemplo, a “mulambenta”, “nojenta”, “intriguenta”...

23 Disponível em: http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/geral/eles-odeiam-e-a-civilizacao/, acesso em

Notemos que o termo ignorante foi substituído pelo sinônimo apedêuta (que significa “desprovido de conhecimento acadêmico”, no caso). Enquanto na Coluna de Augusto Nunes (Texto 11) o escritor Dionísio da Silva declara que o presidente Lula tudo pode, inclusive gerir o uso ou as normas da língua nacional, Reinaldo Azevedo (Texto 7 e 16), em consonância, aponta para uma possível questão histórica na formação ideológica do PT que teria levado o partido a se tornar patologicamente representante de uma esquerdopata-sindical, a qual, segundo ele, odeia a civilização e, por conta disso, estaria mobilizando poderes para libertar o povo da opressão burguesa.

Na sequência, observemos como os discursos dos grupos em defesa do livro respondem a tais apontamentos sob o tema da luta política ora instaurada.

Texto 17 - Helio Schwartsman/Folha de São Paulo, em 16/05/201124.

Texto 18 - Marcos Bagno/O Globo, em 23/05/2011

Aqui, Bagno vai buscar nas proposições de outrem, pelo uso de aspas, o fio dialógico para tecer seu discurso, respondendo a seus outros que tal pedagogia foi proposta durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, derrubando a denúncia de que seria “coisa de petistas”, buscando assim evidenciar a falsidade da polêmica.

24 Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/916634-uma-defesa-do-erro-de-

Assim como Bagno, Hélio Schwartsman, classifica os enunciadores que se pronunciaram sobre a intenção oculta do livro em propagar a língua do Lula e difundir a ideologia petista, utilizando adjetivações marcadas pelos sufixos ados e idos, como espevitados, outros, comedidos, na tentativa de desqualificar o discurso de outrem.

Esses dois enunciadores apontam claramente para uma aparente manobra política de grupos que se utilizam da polêmica em questão para tentar desacreditar o governo do PT, logo, podemos inferir que os discursos veiculados na Coluna de Augusto Nunes e de Reinaldo Azevedo (Textos 11, 7 e 16, anteriormente comentados) são agora objetos dos discursos de Bagno e Schwartsman, pois estes estão avaliando as noções e posições daqueles sobre a polêmica em questão, num diálogo muito evidente.